Mestre de capoeira é acusado de receptação por celular que encontrou no lixo

    Jefferson Camillo da Silva, que trabalha como catador de materiais recicláveis e na manutenção eletrônicos, foi denunciado pela promotora Rafaela Trombini. Dono do celular não o reconheceu

    Jefferson Camillo da Silva é professor de capoeira há 18 anos e atua em projetos sociais no extremo norte da cidade de São Paulo. Foto: Arquivo pessoal

    “Me sinto frustrado e acuado sabendo que estou sendo acusado por algo que não fiz. Não roubei, nunca comprei produto de furto, ilícito. Não posso ser preso injustamente”. A voz agoniada de Jefferson Camillo da Silva, 36, ao telefone, retrata um pouco a sensação de revolta que o catador de materiais recicláveis vem sentindo nos últimos meses, após a acusação de ter cometido o crime de receptação imprópria, isto é, quando se adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio ou alheio, algo que sabe ser produto de crime.

    Mestre de capoeira e catador de materiais recicláveis há quatro anos, Jefferson encontrou dois celulares no lixo durante um dia de trabalho em agosto de 2020. Um deles estava quebrado, o outro estava funcionando, mas não possuía a Identificação Internacional de Equipamento Móvel (IMEI).

    Por estar fazendo um curso de conserto de aparelhos celulares na época, resolveu tentar reparar as peças do telefone, mas, sem sucesso, decidiu devolver o aparelho à sucata e o guardou em sua pequena loja de acessórios e conserto de eletrônicos recém inaugurada. 

    Em 27 de outubro do mesmo ano, durante a “Operação Mobile” da Polícia Civil, o celular quebrado foi encontrado em sua loja, localizada no bairro Vila Nova Galvão. De acordo com a IMEI e com o boletim de ocorrência, o aparelho foi roubado de Jonas de Lima Ferreira em maio de 2019. Apesar disso, Jonas não identificou o mestre de capoeira como o ladrão de seu celular. 

    Jefferson em um dia de trabalho, ele faz coleta há quatro anos. Foto: Arquivo pessoal

    Jefferson reitera que não teve nenhum contato com a vítima do roubo. “Infelizmente não puxei o número de registro do celular que tem um suposto B.O. Houve uma abordagem na loja que eu recentemente montei para trabalhar com acessórios de celular, troca de tela e alguns reparos. O celular era para ser jogado fora, inclusive eles levaram a caixa de sucata junto. Eu não tive contato com a vítima. Recebi a denúncia do Ministério Público no dia 6 de fevereiro, na qual eu sou acusado de ter receptado o aparelho, sabendo que era roubado”, explica.

    Ele foi denunciado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), em 11 de janeiro. A acusação feita pela promotora Rafaela Trombini, alega que “tendo em vista que o acusado não apresentou qualquer documento que comprovasse a origem lícita do bem, além de ser profissional do ramo de conserto de celulares, evidencia-se que ele tinha ciência de que o bem supramencionado era produto de crime anterior”. No documento a promotora também retira a possibilidade de um acordo de não persecução penal, uma vez que “não houve a confissão integral dos fatos”.

    Leia também: Catador é preso em casa por roubo de celular que afirma ter encontrado na rua

    Em julho de 2020 a Ponte revelou outro caso parecido, no qual o catador de recicláveis Kaique Alves da Silva foi preso em casa por roubo de um celular que afirmou ter encontrado na rua. Imagens mostravam que, minutos antes do crime ocorrido dentro de um ônibus, Kaique estava voltando a pé para a casa com a família. Desde então, ele está no Centro de Detenção Provisória I de Chácara Belém, na zona leste da cidade.

    Na visão da advogada criminalista Fernanda Peron, integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, os casos de receptação involuntária não são incomuns.

    Para ela é preciso uma interpretação conforme a Constituição, os princípios do Direito e os valores que a sociedade quer defender. “Nesse caso, mesmo que ele tenha sido encontrado com um celular que foi roubado, falta um critério importante que é a intenção de cometer o crime. Ele fez provas de que trabalha com coleta de materiais recicláveis, e disse que foi assim que encontrou o aparelho celular no lixo. Ou seja, até onde ele sabia, o objeto estava abandonado e ele o recolheu para tentar consertar. É uma versão totalmente plausível e confirmada pelas provas do processo”.

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    A advogada ainda destaca a importância de considerar a desproporcionalidade da medida. “A acusação pede que ele seja condenado à pena de 3 a 8 anos de prisão. Como ele é primário, tudo indica que, mesmo se for condenado, poderá cumprir a pena na rua, assinando em regime aberto. Porém, os efeitos práticos dessa condenação serão ainda piores, porque um cidadão com ficha limpa sofrerá a pecha de ter uma passagem criminal, o que dificultará vários aspectos da sua vida e o colocará em risco”. 

    Capoeira e projetos sociais

    Além da capoeira, dos materiais recicláveis e da manutenção de aparelhos, Jefferson conseguiu recentemente um trabalho registrado como controlador de acesso em uma empresa.

    As diversas ocupações fazem parte de uma vida na qual sustentar a família é uma prioridade, para isso, ele já trabalhou como educador em um projeto de horta, cabeleireiro, pintor, jardineiro e ajudante geral. O trabalho na coleta começou com a ajuda prestada aos seus pais na feira, quando decidiu recolher o papelão espalhado na rua.

    Jefferson afirma que quer transmitir seus conhecimento aos moradores do Jaçanã. Foto: Arquivo pessoal

    Casado e pai de dois filhos, o catador de materiais recicláveis é conhecido há 18 anos por realizar projetos sociais dando aulas de capoeira nas comunidades do distrito de Jaçanã, localizado no extremo norte do município de São Paulo, conforme ele explica. “Tenho um projeto social dentro do Centro de Integração da Cidadania (CIC) Norte, no Conjunto Habitacional Jova Rural. Dou aulas nas associações na comunidade dentro da Fábrica de Cultura do Jaçanã, entre outros projetos que eu tenho na região do Jaçanã Tremembé. Todos os projetos são desenvolvidos com crianças de 3 anos até um idoso de 73”.

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    Há mais de 20 anos praticando capoeira, ele destaca que quer transmitir seus conhecimento aos moradores do Jaçanã. “Minha vida toda fui orientado pelos meus pais a nunca fazer nada de errado. Sempre tentando o máximo dentro do caminho do bem. Eu vim de um projeto social e a capoeira me ajudou muito com a minha formação, por isso eu decidi retribuir isso à minha comunidade, levando o que eu tenho de melhor, a nossa cultura popular e a capoeira. Hoje temos muitos alunos que estão estudando a capoeira e acreditando em seu potencial”, destaca.

    Procurados pela Ponte, a Polícia Civil e o Ministério Público não responderam aos questionamentos enviados até a publicação desta reportagem.

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