Promotora aplicou entendimento do STF de que LGBTfobia se equipara a crime de racismo; homem fez postagens contra vereadoras de São Paulo Erika Hilton e Carolina Iara
O Ministério Público de São Paulo acusou, nesta quinta-feira (25/11), o garçom Guilherme Henrique Neles Silva por racismo, transfobia, injúria e discriminação contra portadores de HIV por conta de postagens que fez, entre fevereiro e julho deste ano, contra as parlamentares travestis negras Erika Hilton e Carolina Iara, ambas do PSOL.
Guilherme, que se intitula como “garçom reaça”, publicou mensagens transfóbicas dizendo que “mulher trans não é mulher”, junto a uma foto de Hilton, e respondendo a um comentário de Iara sobre a denúncia de invasão ao gabinete da colega dizendo que a vida dela “tá fudida” por ser portadora de HIV. Ele também fez comentários homofóbicos ao postar que era contra pessoas do mesmo sexo se beijarem na rua.
A promotora Maria Fernanda Balsalobre Pinto, do Gecradi (Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância), argumentou que o STF (Supremo Tribunal Federal) em decisão de 2019 equiparou a LGBTfobia ao crime de racismo. “Ao negar o gênero feminino às mulheres transexuais, o denunciado exprime preconceito e discriminação de raça, sob o aspecto da transfobia e, ao mesmo tempo, ao dirigir o ataque também à vítima Erika Hilton, ofende-lhe a dignidade por meio da utilização de elementos de transfobia, razão pela qual a conduta encontra subsunção nos crimes de injúria racial e racismo”, escreveu.
Ela também apontou que Neles ofendeu a dignidade de Carolina Iara por ser portadora de HIV, crime que é previsto lei de 2014, cuja pena pode variar de um a quatro anos de reclusão, além de pagamento de multa. O crime de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, previsto na Lei de Crimes Raciais, determina reclusão de um a três anos e multa; o de injúria, no Código Penal, é de detenção, de um a seis meses, ou multa.
Balsalobre aponta que Neles cometeu discurso de ódio. “Importa ressaltar que as publicações do denunciado não consubstanciam liberdade de expressão, mas sim discurso de ódio, na medida em que hierarquizam grupos humanos e exprimem juízo de supressão e redução de direitos fundamentais de grupos LGBTQIA+”, sustentou. Cabe ao Tribunal de Justiça decidir se aceita ou não a denúncia (que pode ser lida na íntegra abaixo).
À Ponte, as parlamentares apontaram como uma vitória o reconhecimento da violência que sofreram. “É importante porque estamos em um país que nega a transfobia, que nega o racismo, que nega direitos a essas populações”, declarou Erika Hilton.
A co-vereadora da Bancada Feminista do PSOL Carolina Iara indica que a transfobia, o racismo e a “aidsfobia” precisam ser discutidas estruturalmente. “A gente tem que pensar também em formas estruturais de se evitar esse tipo de coisa porque eu tenho percebido que tem aumentado esses comentários nocivos, isso foi muito intenso para mim na campanha, e apenas punir não é o caminho para coibir na raiz, mas é importante essa ação do Ministério Público de responsabilizar esse homem que desferiu esses ataques”, aponta. “Desde 2014, temos uma legislação que coíbe a discriminação das pessoas vivendo com HIV e Aids no país, então, isso acontecer com uma parlamentar é muito grave”.
“O Ministério Público abrindo essa ação demonstra o compromisso de combate ao racismo e à transfobia, estimula que as pessoas tenham coragem e força para denunciar, porque uma das coisas mais tristes no Brasil é a gente denunciar e as nossas denúncias não darem em nada, as instituições fecharem os olhos e se silenciarem diante do que ocorre, para que esses criminosos não se sintam na liberdade de discriminar e que as pessoas repensem seu ódio e de fazer ataques a qualquer pessoa em qualquer lugar que seja”, complementou Hilton.
Invasão de gabinete
Neles também foi investigado, em um outro processo, por ameaça contra Erika Hilton. Ela abriu um boletim de ocorrência após se sentir intimidada quando garçom o tentou invadir seu gabinete nos dias 26 de janeiro e 1 de fevereiro deste ano, portando bandeiras religiosas e proferindo frases transfóbicas, dizendo que a acompanhava quando participava de um mandato coletivo na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), e que queria entregar um bilhete pedindo desculpas pelos ataques nas redes sociais.
À Polícia Civil, o garçom disse que “não é racista tampouco homofóbico” e que não foi agressivo com a vereadora nem com a assessora do gabinete e que “entregou uma carta para a assessora da vereadora pedindo desculpas a toda a equipe e deseja consignar que nunca ameaçou qualquer pessoa tampouco a vereadora Erika Hilton e apenas manifestou o seu direito de cidadão e solicitou o atendimento da vereadora para expressar seus pensamentos e ideologias”. No dia, alegou que queria conversar com ela “devido alguns projetos, os quais discorda tais como ‘ideologia do gênero'”.
A promotora Regiane Vinche Zampar Guimarães Pereira entendeu que não havia crime de ameaça, mas entendeu haver “provas da prática de contravenção penal de perturbação da tranquilidade, posto que o autor, de forma reiterada e forçosamente, tentou ingressar no gabinete da vereadora”, que poderia se configurar em perseguição, e pediu para reinstaurar o inquérito para apurar o crime de racismo. “O temor nutrido pela vítima com relação ao autor, por si só, não configura os elementos do tipo penal em tela [ameaça], pois houve mera suposição daquela de que sua integridade física seria atingida, inexistindo elementos concretos aptos a justificar esse receio”, argumentou.
Roberto Cabal, outro promotor do mesmo processo, porém, alegou que, pela contravenção penal (infração de menor potencial ofensivo) de perturbação de sossego ter sido revogada pela Lei 14.132/2021, que cria o crime de perseguição, então não haveria ilícito a ser investigado no Jecrim (Juizado Especial Cível) e requereu o arquivamento em julho. O juiz José Fernando Steinberg acatou a solicitação ao justificar que “a perturbação por acinte ou motivo reprovável não se deu de forma reiterada em desfavor da mesma vítima”, que configuraria perseguição, e julgou extinta a ação no mês seguinte.
A promotora Regiane Pereira pediu para que a decisão fosse reconsiderada, assim como a defesa da vereadora também pediu, mas o juiz manteve o veredito. Cabe recurso à decisão, já que ainda não transitou em julgado.
A Ponte tentou contato com Guilherme Neles Silva, mas não teve retorno até a publicação.