Em passagem pela Argentina para formação em direitos humanos, Monica Benicio recebe homenagens em nome da eterna companheira e confirma, cada vez mais, que a luta de Marielle é agora dela
Ao entrar pela porta contígua do Salão Belgrano, no histórico edifício que sedia o Senado argentino, Monica Benicio teve certeza de que teria um infarto fulminante. Havia se esquecido de tomar o antidepressivo prescrito pelo psiquiatra bem no dia em que dividiria um painel de debate com personalidades de peso como a fundadora do movimento das Mães de Maio, um Senador da Nação admirado no campo progressista local e ainda um vencedor do prêmio Nobel da Paz. Sua respiração estava mais ofegante a cada minuto e o semblante sério, fechado. Monica sempre odiou falar em público, mesmo que apenas para os oito companheiros da turma do mestrado em arquitetura, com o qual trava uma batalha para concluir.
Não obstante, desde que quatro tiros – três deles na cabeça e um no pescoço da vereadora carioca Marielle Franco – extirparam-lhe a vontade de viver, Monica entendeu que todo medo, a partir de então, ficara no passado. Sua própria existência já não lhe pertence. Hoje, a única razão pela qual a viúva de Marielle Franco segue viva é a continuidade do legado de sua eterna companheira.
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Mônica havia chegado a Buenos Aires na noite anterior. Passos duros e descompassados, como os de quem acaba de viajar por mais de 3 horas num voo de classe econômica. Cabelos de cachos grandes cuidadosamente desorganizados, resultado do novo creme para pentear que testou e aprovou. Pañuelo verde, da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, amarrado à bolsa que pende sobre o ombro esquerdo. Por baixo do casaco de sarja de cor escura, uma camiseta preta com dizeres em letras brancas, garrafais, e que vai acompanhá-la em todas as atividades na Ciudad de la furia, como é conhecida Buenos Aires: “Lute como Marielle Franco”. Um só beijo no rosto para os que a recebem – contradizendo a clássica tradição carioca – seguido de forte e apertado abraço, desferido apenas com o braço direito. Com toda essa força, claramente, Monica é destra.
“O senhor tem sangue nas mãos”, diria ela, meses antes, num evento público ao governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão. Sua revolta é gigantesca: com quem matou Marielle, quem mandou matar, com o Estado, com o destino, com a vida. À ocasião da sua chegada à Argentina, passaram-se 174 dias de um assassinato que atravessou de morte também a democracia brasileira. Não apenas mais uma mulher, negra, lésbica e favelada fora vítima da violência que martiriza milhares anualmente no Brasil. Dessa vez, tombava uma proeminente figura política legitimamente eleita pelo voto popular. E muito além disso: a filha, a esposa, a mãe Marielle Franco para quem, sob a invejável resiliência de Mônica, o Brasil e o mundo agora reclamam por justiça.
O sorriso tímido da viajante logo dá lugar a gargalhadas largas, muitas vezes motivadas pelas piadas que ela mesma faz. A capacidade de rir de si mesma e de tudo o que está ao seu redor é uma das impressionantes habilidades de Monica que, para além da firmeza na fala grave e rouca, no andar, no aperto de mãos, no abraço e no olhar, carrega consigo a leveza do riso fácil e do humor cáustico e inteligente.
Aquariana com ascendente em áries e lua em escorpião, absolutamente despojada e espirituosa, Monica é a típica carioca sarrista. Se ela fuma marijuana? “As únicas drogas que eu uso são álcool e mulher. E já me dá muita ressaca!”. Se ela entende espanhol? “Éééé.. entendo”, diz com pouca convicção. “Mas, também, o que eu não entender, eu falo ‘num entendi!’ e pronto’. Ela não come carne, mas é vegana ou vegetariana? “E lá pobre pode ser vegano, viado? Isso é luxo!”. E qual sua reação quando o táxi para no trânsito, impedido de seguir por uma manifestação contra a “ideologia de gênero”? “O mundo tá me dando muita preguiça. Será que só eu tenho louça para lavar?”, diverte-se.
Informada de que teria uma agenda de formação em Direitos Humanos bastante intensa, contesta prontamente: “Mas dá pra botar alguma coisa divertida aí nessa agenda? Se é pra chorar, a gente chora, mas no fim do dia vamos numa festa!”. Porém, adverte: “eu não admito que alguém insinue que eu estou aqui num momento de diversão”. E defende este seu julgamento com três apontamentos nevrálgicos: “a gente segue com dor, mas segue”, “o silêncio não nos protege” e “resistência se faz na rua.” Ácida, sarcástica, excelente oradora, enérgica, direta ao ponto, irredutível em suas convicções. Papo reto, simples assim.
Seu olhar vago e distante, em diversos momentos, abre margem a múltiplas interpretações. É difícil afirmar com precisão o que passa pela mente de Monica enquanto ouve as falas dos figurões que integram a mesa de debates no Senado argentino, composta especialmente para homenagear a militância de Marielle em direitos humanos e pedir justiça e verdade em memória dela. Mas é possível arriscar-se. Talvez esteja com saudades de seu cachorro Madocs, já um senhor de 12 anos, um presente de Marielle pela ocasião do Dia dos Namorados. Quem sabe esteja preocupada com as plantas de sua casa sob a supervisão da amiga Amanda, que prometeu cuidar bem delas. Ou ainda tenha sido acometida pela terrível recordação da mochila que Marielle usava no dia em que foi assassinada, a qual teve de ir pessoalmente buscar da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro. E como o estofado de espuma dessa bolsa, mesmo depois de ter sido lavada por 12 dias consecutivos com arruda e sal grosso numa tentativa de arrancar de lá as más energias, ainda sangrava.
Mas pode não ser nada disso. É possível que ela esteja apenas atenta ao que a tradutora lhe sussurra ao ouvido, porque, como sabemos, ela não entende bem o castelhano. O fato é que Monica anda aflita. Afinal, estamos ainda em período eleitoral e com uma polarização cada vez maior nos discursos e atitudes, que amparam a ascensão do candidato de extrema-direita. Afinal, como impedir a barbárie se referendamos o fascismo? “A resposta à barbárie do 14 de março [data do assassinato de Marielle] a gente dá nas urnas”, alerta. Mal saberia Monica, que participava dessas atividades na Argentina no início de setembro, que a aflição se tornaria próxima da concretude com a votação expressiva de Jair Bolsonaro (PSL), que representa justamente bandeiras extremistas, no último dia 7 de outubro. O candidato foi para o segundo turno com mais de 50 milhões de 45% dos votos e enfrenta o petista Fernando Haddad no próximo dia 28.
No segundo dia em Buenos Aires, Monica foi convidada para um almoço oferecido por representantes da organização feminista Ni Una Menos. À mesa, foi questionada sobre como conhecera Marielle: ambas de formação católica, lembra-se da primeira vez que se viram na porta igreja antes de uma viagem de carnaval com um grupo de amigos; Monica tinha apenas 18 anos à época e quanto mais tempo passava junto à futura amante sentia que “a vontade crescia, como tinha de ser…”, para citar uma canção de Legião Urbana, sua banda preferida. Dormiam numa mesma cama de solteira juntas quase todas as noites e, numa delas, passada a meia-noite do dia 31 de janeiro, ou seja, já 1º de fevereiro – aniversário de Monica – o primeiro beijo, enfim, aconteceu…
– Gente, perdão interromper, mas esfaquearam o Bolsonaro! – anunciou de sobressalto a jornalista Marta Dillon, que havia desviado brevemente sua atenção da história de Monica para checar o celular.
– O que? – reagiram todos os presentes, que também correram para seus smartphones.
Se Monica não se entristeceu com a notícia, também não ficou feliz. Considera lamentável essa escalada de ódio fascista que vem tomando conta do Brasil. A informação chegou a ela horas antes de uma roda de discussão sobre corpos e sexualidades dissidentes da qual iria participar como convidada emérita. Na situação, revela um talento que até então não havia ficado claro: o de ser líder. Antes de iniciar sua fala, reúne rapidamente o grupo de pessoas que a acompanha para discutir qual a maneira ideal de, coletivamente, amarrar um discurso de repúdio sobre o que acabara de acontecer com o candidato fascista. O conteúdo pode ser resumido na resposta que Monica deu à imprensa argentina no dia seguinte, quando questionada sobre sua leitura deste episódio em comparação ao assassinato de Marielle: “Fazemos política com afeto para que não haja nem mais Marielles, nem mais ataques como esse”.
“Por sua valiosa prática da ‘política com afeto’, seu maior legado”, inclusive, foi uma das frases impressas no Diploma de Honra que, sob fortes ovações e frenéticos cliques e flashes das câmeras daqueles que cobriam a solenidade, foi concedido pelo senador Pino Solanas à Marielle. Foi Monica quem o recebeu. Marielle sempre acreditou muito mais no potencial de Monica do que ela própria. “Se eu fosse como você, já teria chegado muito mais longe”, confessou a vereadora certa vez à companheira.
E quem diria? Marielle, que em vida nunca viajara ao exterior para defender suas ideias, tem hoje seu rosto e discurso estampados em todas as partes do mundo, de Paris a Buenos Aires. Em poucos meses, Monica viu-se engolida por viagens e compromissos internacionais dos quais nunca, nem em seus planos mais ambiciosos, poderia acreditar que faria parte. Nem ela nem Marielle sonharam que chegariam tão longe, física e simbolicamente. Monica constata que a potência de sua companheira, hoje, salva mais vidas do que quando ela era vereadora em pleno exercício de seu mandato. Sabe que seu discurso e atuação política como embaixadora da política com afeto de Marielle é reflexo da transversalidade de lutas que ela simboliza.
É pelas pretas e pretos, povos originários, LGBTs, faveladas e favelados, militantes. É para que não haja mais casos como o de Santiago Maldonado, jovem militante anarquista que desapareceu depois entrar em confronto com a Guarda Nacional Argentina durante um protesto e foi encontrado morto boiando num rio – com cujo irmão, Sergio Maldonado, que também luta para manter viva essa história, Monica recentemente fez amizade. É para pedir justiça por Kevin, garoto de apenas 9 anos, villero – como é chamado quem nasce na favela na Argentina -, morto por bala perdida durante uma invasão da polícia em sua comunidade, cuja mãe abraçou fortemente aos prantos. É pelos Direitos Humanos, pelo Brasil, pela América Latina. É por Marielle que, apesar da dor, Mônica não esmorece.
Para definitivamente amplificar essa força redentora, Monica quer uma foto ao lado do Papa Francisco. Já pensou? A Igreja Católica, na figura de seu pontífice, reconhecer que Marielle Franco deixou uma viúva? “Daí a gente faz história. Quer fazer pressão política? Bota a viúva do lado dele!”, argumenta. Pessoalmente, simpatiza com a figura de Francisco. Não apenas por ser, palavras dela, fofinho. O que lhe chamou a atenção de verdade foi a escolha do nome. Apesar de ter conhecido Marielle na porta da igreja e ter sido crismada por insistência dela, Monica trabalha sua espiritualidade de maneira independente de sua religião de batismo. Ainda assim, sempre que possível pelas manhãs, coloca para tocar a Oração de São Francisco, de quem é devota:
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz
Onde houver ódio, que eu leve o amor
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão
Onde houver discórdia, que eu leve união
Onde houver dúvida, que eu leve a fé
Onde houver erro, que eu leve a verdade
Onde houver desespero, que eu leve a esperança
Onde houver tristeza, que eu leve alegria
Onde houver trevas, que eu leve a luz
Ó mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado
Compreender, que ser compreendido
Amar, que ser amado
Pois é dando que se recebe
É perdoando que se é perdoado
E é morrendo que se vive
Para a vida eterna
Para tentar aplacar a insuportável saudade, Monica traz consigo as lembranças que pode: a camiseta já mencionada; sob a pele do antebraço esquerdo, o rosto da companheira tatuado; e, para se divertir e nunca deixar de sorrir, Mariellinha, a boneca de pano de pele negra e cabelo blackpower alourado e que tem o mesmo perfume da vereadora – o qual Monica se nega veemente a revelar. “Já pensou se eu falo? Amanhã vai ser o Rio de Janeiro inteiro cheirando à Marielle!”.
A boneca tem simulações de selfies sacadas por Monica e publicadas em sua conta pessoal no Instagram. Os destinos já incluem Lamezia, na Itália; o Museu do Louvre, o Arco do Triunfo e a Torre Eiffel, em Paris; a Acrópole grega, em Atenas; um passeio de bicicleta nos canais de Amsterdã; e, agora, poses em frente ao Obelisco portenho e também no Parque da Memória, construído como tributo à memória das vítimas da Ditadura Militar argentina. Depois daqui, Genebra, Lisboa, Londres, Paris novamente. E uma curiosidade: a inspiração para criar a #MariellinhaPeloMundo, hashtag oficial, foi o gnomo viajante do filme francês “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, um clássico “cultbacaninha”, para usar o jargão carioquês sarrista de Monica.
Depois de uma das mais vigorosas programações de sua agenda, que incluiu a visita a um dos mais conhecidos centros de tortura da época da Ditadura Militar, o dia terminou num bar do boêmio bairro de San Telmo. Lá, Monica – que não dispensa um misticismo – foi introduzida ao I Ching, livro milenar da cultura chinesa que pode ser usado como oráculo. A dinâmica, ligeiramente complexa, consiste em formular uma questão e lançar 3 moedas 6 vezes. Disso, será formada uma imagem, cujo significado pode ser consultado no livro, que funciona como resposta à questão feita. A pergunta partiu o coração dos presentes: “Como faço para ser feliz de novo?”.
A imagem-resposta do Oráculo? Sob o título “A retirada”, os seguintes dizeres: “Montanha abaixo do céu: a imagem da Retirada. Assim o homem superior mantém o inferior à distância, não com raiva, porém com reserva”.