Morte de João Pedro completa 4 anos: ‘essa espera por justiça nos mata aos poucos’, diz mãe

Adolescente de 14 anos foi morto dentro de casa em operação das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), em maio de 2020; Justiça ainda vai decidir se três policiais civis irão a júri popular

João Pedro Matos Pinto estava dentro da casa de familiares quando foi baleado, em 2020 | Foto: arquivo pessoal

A proximidade do dia 18 de maio volta, mais uma vez, a trazer dor e angústia para a professora Rafaela Matos, de 40 anos. “Todos os dias, a gente aguarda essa justiça para que traga pelo menos um alento ao nosso coração. Mas estamos esperando e é uma espera que nos mata aos poucos”, lamenta.

Há quatro anos, seu filho João Pedro Matos Pinto foi morto aos 14 anos com um tiro na barriga dentro da casa de parentes, enquanto brincava com um primo, após uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

Três policiais civis foram acusados pelo crime e agora a família aguarda o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) decidir se eles serão ou não levados a júri popular.

A data da morte do adolescente passou, neste ano, a fazer parte do calendário oficial do estado como “Dia de Luta Jovem Preto Vivo” a fim de que sejam feitas campanhas e eventos que discutam sobre racismo, genocídio da população negra e periférica e encarceramento em massa.

Enquanto falava com a Ponte nesta sexta-feira (17/5), Rafaela estava a caminho da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), onde esteve com outros familiares de vítimas da violência do Estado. O intuito foi discutir, durante reunião da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional, a criação de um memorial para os que perderam a vida para a violência policial.

O caso de João Pedro, morto dentro de casa no auge da pandemia, tomou tamanha repercussão que foi citado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, como ficou conhecida a ADPF Favelas, em que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), restringiu em junho de 2020 a realização de operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais. A ação virou uma demanda por um plano de redução da letalidade policial no Rio de Janeiro, que ainda não se efetivou.

“A gente, enquanto família, não espera que nenhuma outra família sofra da forma que nós sofremos. Mas realmente isso não aconteceu”, desabafa. “Depois do João, tiveram muitos outros jovens que já perderam suas vidas pelo Estado e não vimos nenhuma mudança”.

De acordo com Rafaela, a única instituição que tem prestado apoio à família é a Defensoria Pública, que atua no caso. “Ela nos deu atendimento psicológico”, diz.

Em outubro de 2023, a 8ª Vara Cível da Vara de São Gonçalo do TJRJ condenou o governo estadual a pagar R$ 300 mil de indenização por danos morais, além de dois terços de salário mínimo de pensão aos pais e à irmã mais de nova de João Pedro até a data que ele completaria 65 anos, mas não acatou os pedidos de oferecimento de auxílio psicológico nem de que o Estado deve fazer um pedido formal de desculpas.

A Procuradoria Geral do Estado argumenta que não caberia a indenização pois não foi possível analisar de que arma partiu o projétil que atingiu o adolescente, o que foi rechaçado pela juíza Larissa Pinheiro Schueler Pascoal ao apontar que as forças policiais também são responsáveis mesmo indiretamente quando a ação policial agrava os riscos da ocorrência.

“O Brasil e, principalmente, o estado do Rio de Janeiro, normalizou a letalidade policial e quem sofre é a população, seja pela perda de entes amados, como é o caso dos autos, seja pela insegurança até mesmo no interior de seus lares. É indispensável um maior compromisso do Estado com o treinamento e apoio psicológico a seus policiais, para o fortalecimento e eficácia da segurança pública”, escreveu a magistrada.

Isso não significa que os parentes receberam os valores. A decisão está em recurso e, caso seja mantida, após esgotadas todas as formas de contestação, a família ainda vai ter que aguardar a fila dos precatórios, ou seja, a fila de dívidas que o Estado tem a pagar.

Para Rafaela, o Estado precisa mudar a política de segurança pública para não ceifar mais vidas. “É preciso arrumar um meio para que a polícia não entre nas favelas da maneira que eles entram. O Estado tem que entrar com educação, ver as questões sociais nas favelas”, diz.

Relembre o caso

João Pedro foi baleado dentro da casa de parentes enquanto brincava. O adolescente chegou a ficar horas desaparecido após ser resgatado por um helicóptero do Corpo de Bombeiros. A família só o encontrou no dia seguinte, no Instituto Médico Legal de Tribobó, na mesma cidade.

Na época do assassinato, a família de João Pedro já denunciava a alteração de provas. O adolescente também foi levado por um helicóptero após ser baleado e só foi localizado por parentes no IML (Instituto Médico Legal) 17 horas depois. “Os policiais invadiram a casa”, declarou na ocasião à Ponte o autônomo Neilton Pinto, 41, pai de João Pedro. “Se tivesse bandido para o lado, como alegaram que estava no quintal, era para o helicóptero dar suporte para a pessoa não fugir e cercarem a casa. Entraram com morador, já atirando. Como quem pulou no quintal fugiu com vários helicópteros dando rasante? Forjaram muitas coisas ali dentro [da casa]. Fizeram uma bobagem, a casa está cravada de bala. Se aquilo foi fora da casa, o tiroteio, por que dentro estava cravado de bala?”

jornal Extra apontou, em agosto daquele ano, uma série de falhas na perícia e irregularidades na cadeia de custódia da investigação, como transporte inadequado de provas, acesso às evidências pelos investigados e entrega das armas dos agentes uma semana depois do crime. Também houve mudança de depoimento por parte dos policiais civis que atuaram na operação. Segundo o Extra, que acessou o inquérito, os agentes disseram primeiro que deram, ao total, 23 disparos. Uma semana depois, mudaram para 64.

A Polícia Civil entendeu que os policiais praticaram homicídio culposo (quando não há intenção de matar), mas o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) discordou e apresentou a denúncia por homicídio qualificado e fraude processual. A promotoria não pediu a prisão dos agentes, mas solicitou o afastamento das atividades na Polícia Civil e a não aproximação de testemunhas.

Segundo os promotores Paulo Roberto Mello Cunha Jr., Allana Alves Costa Poubel e Andréa Rodrigues Amin, os agentes Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, lotados na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), atuaram por motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa da vítima por terem efetuado diversos disparos contra um grupo de jovens desarmados, atingindo o menino, e, depois, de manipular a cena do crime para se eximirem da responsabilidade.

Os promotores afirmam que o trio plantou artefatos explosivos, uma pistola Glock calibre 9 mm, além de posicionar uma escada “junto ao muro dos fundos do imóvel em questão” e produziu “marcas de disparos de arma de fogo junto ao portão da garagem” para simular confronto.

Os três estavam em um helicóptero e desceram até um campo de futebol no bairro Itaoca, juntamente com o delegado e coordenador da Core Sergio Sahione Ferreira e o policial civil Jair Correia Ribeiro, “com a intenção de interceptar homens armados que teriam sido observados” durante o sobrevoo fugindo da residência atribuída a Ricardo Severo – conhecido como Faustão, um dos integrantes da facção criminosa Comando Vermelho. De acordo com a polícia, o objetivo da operação era cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão.

A pedido do MPRJ, o tribunal determinou que os policiais fossem afastados das atividades de polícia e não pudessem acessar as dependências da corporação, não ter nenhum tipo de contato com a família da vítima ou com testemunhas, nem se ausentar da cidade por mais de 30 dias sem autorização e devem comparecer mensalmente em juízo. Em caso de descumprimento, o Tribunal de Justiça pode decretar a prisão preventiva (sem tempo determinado).

Em janeiro deste ano, a promotora Silvia Regina Aquino do Amaral pediu que os policiais sejam pronunciados, ou seja, levados a júri popular. Ela argumentou que “os acusados assumiram o risco de matar inocentes, visto que efetuaram disparos de arma de fogo em um imóvel que nem sequer tinham visibilidade do seu interior”.

O que dizem os policiais

A Ponte não localizou a peça com as alegações finais da defesa dos policiais no processo, ou seja, a petição com as justificativas para que o trio seja ou não levado a júri. A reportagem procurou o advogado Raphael Mattos, um dos que representam os policiais, para pedir um posicionamento. Ele disse que já apresentou a defesa e que aguarda a sentença. Durante o processo, um dos principais argumentos dos advogados é de que o fragmento de projétil retirado do adolescente não permitiu verificar de qual arma partiu o disparo.

Também buscamos a assessoria da Polícia Civil para entender a situação funcional dos agentes, mas não houve resposta.

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