Gabriel foi preso por foto 3×4 usada em RG falso, diz família

Gabriel Hernandes Souza Santos, motorista de aplicativo, foi condenado a oito anos de prisão por extorsão; RG falsificado com foto do jovem foi usado em roubo e ‘golpe do Pix’

Gabriel tinha o sonho de ser policial federal e tinha se inscrito em concurso que ocorreu dias depois da prisão | Foto: Arquivo pessoal

O motorista de aplicativo Gabriel Hernandes Souza Santos, 22 anos, foi condenado a oito anos de prisão por extorsão. Para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), uma foto 3×4 do jovem usada em RG falso foi suficiente para considerá-lo culpado de participação em um roubo ocorrido em maio do ano passado. A vítima teve R$ 1.480,86 transferidos via Pix para uma conta bancária aberta com o documento falsificado. A família diz que a foto de Gabriel foi pega sem autorização da casa dele por um primo, que seria o verdadeiro responsável pelo crime. 

“É uma prisão injusta. Meu filho está pagando por um crime que não cometeu. Não tem nenhuma prova. A única coisa é uma foto 3×4 que foi roubada no apartamento do Gabriel”, lamenta Rosilene Porfirio dos Santos, 55 anos, mãe do jovem.

O crime ocorreu em maio do ano passado, quando um entregador foi roubado durante o trabalho no bairro Cidade Ipava, na zona sul de São Paulo. O homem contou em depoimento à polícia, ao qual a Ponte teve acesso, ter sido abordado por duas pessoas que estavam armadas. Ele foi levado para uma casa em construção onde foi mantido refém por três horas. Neste período, foi obrigado a passar senhas de contas bancárias e teve um Pix de R$ 1.480,86 feito pelos assaltantes. A mercadoria que estava com ele também foi levada. 

O crime foi registrado no 100º DP (Jardim Herculano) em inquérito conduzido pelo delegado Bruno Barros Maciel. As investigações partiram do depoimento e do comprovante do Pix apresentado aos policiais pela vítima. Nele foi possível verificar o nome do destinatário de uma conta no banco Pagseguro (para onde o dinheiro da vítima foi transferido), um e-mail e um endereço.

À esq., RG falso usando a foto 3×4 de Gabriel; à dir., foto usada para abrir conta virtual no PagSeguro | Foto: Reprodução

O nome que constava no documento era de Rodrigo Gentil Falcão, um delegado da Polícia Civil de São Paulo. Falcão foi listado no inquérito como vítima, por ser descartada a ligação dele no crime. Segundo a investigação, o endereço cadastrado na conta não seria o da sua residência. Através de quebra de sigilo bancário, a polícia teve acesso ao documento usado para abrir a conta no Pagseguro. O RG, que leva o nome do delegado, tinha foto de Gabriel.

Os investigadores tiveram acesso a uma selfie exigida no protocolo de abertura de conta pela plataforma. Pagseguro. Na imagem, também é Gabriel quem aparece. A foto, segundo a advogada Fernanda Monique de Jesus, teria sido retirada de um grupo WhatsApp de motoristas de aplicativo onde o jovem e o primo participaviam. 

“Eles mandavam selfie [no grupo] para caso alguém sumisse ou acontecesse alguma coisa eles teriam fotos para divulgar. O Gabriel falou que essa foto que está no reconhecimento fotográfico da conta bancária teria sido essa selfie que ele encaminhou nesse grupo”, diz Fernanda Monique. 

Foi a partir das fotos que a polícia chegou a Gabriel. Já por meio do endereço cadastrado na conta, chegou a outro suspeito, o primo do motorista de aplicativo, que já estava sido preso por roubo. A localização indicada constava no sistema Detecta — um integrador de informações que reúne dados do registro civil e criminal, por exemplo — como moradia dele.

O e-mail cadastrado para a conta também foi um elemento usado pela polícia para incriminar Gabriel. Parte do endereço do e-mail fazia referência ao nome e sobrenome do motorista de aplicativo, apontou a investigação. Já outro trecho do endereço do e-mail, segundo a polícia, poderia ter ligação com um segundo suspeito. 

Esse suspeito foi preso em agosto do ano passado em São Paulo por roubo de carga e associação criminosa. Na ocasião, o inquérito já estava em andamento, mas Gabriel, ainda em liberdade, sequer sabia ser investigado, relata a família à Ponte

Outro aspecto levantado pela investigação foi a relação entre Gabriel e o outro suspeito. Os investigadores anexaram ao inquérito prints do Instagram que mostram que a dupla se seguia e curtia fotos um do outro. 

Apesar disso, apenas Gabriel foi indiciado e teve um pedido de prisão temporária solicitado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP). O documento é assinado pela promotora Maria do Carmo Galvão de Barros Toscano. Em resposta à Ponte por meio da assessoria de imprensa, o MPSP informou não haver elementos para denunciar o outro suspeito. 

“Nenhum elemento concreto de seu envolvimento nos fatos foi colhido durante as investigações. Meras suspeitas ou presunções revelam-se insuficientes para embasar a propositura de ação penal”, disse o MPSP (a nota completa está no fim da reportagem). 

Gabriel foi preso em 14 de dezembro do ano passado e teve a casa em que vivia com a esposa alvo de mandado de busca e apreensão. No local, a polícia apreendeu e usou como prova para o indiciamento três fotos 3×4 do motorista. A imagem é a mesma usada para a abertura da conta no Pagseguro.

A família de Gabriel diz que o primo é o responsável por abrir a conta e que ele tinha acesso à casa onde o jovem morava. A foto teria sido encontrada pelo suspeito e usada no crime. Eles negam que o motorista tenha recebido algum valor ou participado de algum roubo.

“Ele detestava tudo que fosse errado. Até o fato de comprar fiado o Gabriel não gostava, ele detestava essas coisas. Foi um susto para gente quando isso tudo aconteceu”, relata Alinne  Rayane dos Santos, 25 anos, irmã do jovem. 

A investigação também apontou Gabriel como suspeito de participação em pelo menos outros dois roubos com extorsão. As informações foram obtidas por quebra de sigilo do e-mail indicado na conta do Pagseguro. 

Um deles ocorreu em janeiro e outro em março do ano passado. Em um deles foi transferido R$ 4 mil para a conta, no outro foi feito um Pix de R$ 1 mil e compras com o dinheiro da vítima. Nesse caso, segundo a polícia, o nome da vítima foi usado em uma tentativa de abrir uma conta no banco Inter. Neste segundo caso, o valor transferido não foi para a conta com a foto de Gabriel, mas sim para o de uma mulher de 75 anos. Ela não foi investigada pela polícia. 

“Trata-se de uma pessoa idosa, sem antecedentes criminais, o que faz com que a possibilidade de seu envolvimento seja baixa, porém, é possível que devido à idade e grau de instrução, outra pessoa movimente a conta”, escreveu o investigador Marcus Vinicius de Quintela. Gabriel também não tinha ficha criminal. 

Em um terceiro caso, um valor de R$ 1.900 foi transferido em abril para uma conta de Gabriel no banco Itaú. A vítima que apresentou a queixa, no entanto, não deu seguimento ao procedimento. O caso foi incluído no relatório de investigação. 

Para a advogada de Gabriel, Fernanda Monique de Jesus, os policiais trouxeram o caso ao inquérito para dizer que o motorista vivia da criminalidade, o que é falso, defende ela. “É um boletim de ocorrência que não tem investigação, fica só em uma ocorrência que a vítima registra e fica só por isso mesmo, não tem nem que ser mencionado. Para uma pessoa ser acusada de alguma coisa tem que existir o contraditório, ampla defesa, um julgamento”, diz a advogada. 

Golpe comum 

Afonso Morais, especialista em fraudes digitais e CEO da  Morais Advogados, explica que golpes com contas que usam documentos falsos são comuns, mas que os bancos e fintechs que operam em sistema digital têm aprimorado as confirmações de segurança. 

“Hoje nós sabemos que existem muitos bancos digitais e fintechs de financiamento, que acabam, para agilizar os financiamentos, fazendo tudo de uma forma digital, tanto os documentos que são enviados são de forma digital, quanto a aprovação. Muitas vezes a aprovação é feita mediante o reconhecimento facial digital. Até essas empresas de assinatura digital hoje estão adicionando, além da assinatura digital, o reconhecimento facial através de uma foto”, conta Morais.

Uma forma de aprimorar esse reconhecimento a fim de evitar golpes é o que o especialista chama de prova de vida. 

“Isso funciona em você fazer o reconhecimento facial com movimento. Você olha para um lado, para o outro e sorri. São três etapas, olha para direita, para esquerda, frente e sorri. Isso ainda não dá para falsificar”, diz o especialista. 

Ele diz que sistemas que selfie na confirmação, como no caso da conta aberta com a foto de Gabriel no PagSeguro, são passíveis de adulterações. 

“O que tem em muito sistema que você tira uma foto com a identidade do lado pode ser falsificado, pode ser uma montado. Hoje em dia já se falsifica até impressão digital. Ao roubar seu celular eles conseguem pegar sua impressão digital. Eles [criminosos] conseguem pegar fotos das pessoas nas redes sociais e conseguem fazer a selfie”, afirma Morais. 

Outro elemento presente no caso de Gabriel é o RG falso. Segundo o especialista, “Espelho de identidade na Praça da Sé vende, qualquer lugar vende. Ou eles compram na darkweb. Hoje em dia, para você ver, esses escritórios do crime nem compram, eles fazem uma franquia. Os hackers fazem um sistema com dados e dão para eles e vão dividindo o lucro”, explica. 

Diante dos golpes, Morais diz que é preciso ter cuidado ao se expor na internet, porque os criminosos se aproveitam muitas vezes de informações disponibilizadas online. 

“O crime digital é um crime organizado em grande escala e a polícia não tem recursos para investigar esse crime organizado digital”, completa. 

No site do PagSeguro (que no caso do banco é chamado de PagBank), o envio de documentos para abertura da conta leva menos de 10 minutos. Na primeira etapa é necessário informar se a conta é pessoal ou para um negócio e o primeiro dado exigido é o número de celular. Depois é necessário informar e-mail, que será a chave para acesso e movimentação da conta. 

Abertura de conta no Pagbank pede foto de documentos e que seja tirada uma selfie. Modelo não segue prova de vida, apontada por especialista como mais segura | Foto: Reprodução

Uma terceira etapa pede o nome, CPF, data de nascimento e informações sobre valor de patrimônio, renda mensal e se o dono da conta é politicamente exposto. 

Após isso, uma verificação é enviada para o e-mail cadastrado e depois é preciso baixar um aplicativo e a partir dele enviar os documentos (frente e verso). O próprio aplicativo tem uma pergunta clicável explicando o porquê da selfie. “É uma medida de segurança para assegurar sua identidade e garantir que só irá habilitar o celular para usar os serviços financeiros”, diz o texto. 

Após pedido para abertura da conta é necessário baixar um aplicativo e site diz que dados podem levar até um dia para serem aprovados | Foto: Reprodução

A foto, no entanto, não segue o método considerado mais seguro pelo especialista ouvido pela Ponte. A foto é tirada apenas de frente, sem orientações para mover o rosto ou sorrir.

MP omisso

Especialistas em direito criminal e direitos humanos que analisaram o processo a pedido da Ponte afirmam ser possível falar em prisão injusta no caso de Gabriel e também de uma atuação omissa do Ministério Público neste caso. 

“O MP não faz justiça, ele é parte, ele acusa, então ele olha as provas de acordo com o entendimento que ele pretende. Raros são os promotores que realmente fazem justiça e têm uma visão imparcial de casos criminais”, afirma a advogada criminalista Thais Rego Monteiro. 

A visão é corroborada por Damazio Gomes da Silva, advogado e mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP . Ele diz que o MP não pode “ter um caráter exclusivamente só para acusar”. No caso específico de Gabriel, “houve alguns elementos que não podem ser esclarecidos. Por exemplo, o advogado argumenta que o Gabriel menciona que o primo pode ter sido quem pegou a foto e eles não tocam para frente, não vão pedir diligência”, comenta Damasio. 

O julgamento que terminou com a condenação de Gabriel ocorreu em fevereiro deste ano. Na sentença, o juiz Antonio Maria Patiño Zorz chega a citar que o fato do primo de Gabriel ter sido posto sob suspeita na investigação “não exclui a responsabilidade do réu”.

A advogada Fernanda Monique, que assumiu o caso após a condenação, aguarda data para o julgamento da apelação. Gabriel também é réu em outros dois processos que envolvem dinheiro transferido para a mesma conta bancária. O julgamento de um deles está previsto para setembro. 

Estudioso e obediente 

Gabriel é descrito pela mãe como estudioso e obediente. Rosilene conta não ter tido trabalho com o jovem durante a infância e adolescência. “Não é porque é meu filho. Eu criei meus filhos com muito sacrifício e incentivei sempre a estudarem”, comenta. 

O jovem chegou a cursar Direito por quatro semestres. Os estudos foram pausados na pandemia, quando ficou caro manter as despesas pessoais e a mensalidade. No período universitário, estagiou em um escritório. Gabriel passou a trabalhar como motorista de aplicativo para ter renda quando o combate à Covid-19 demandou isolamento.

O sonho do jovem, segundo a irmã Alinne, era ser policial federal. “O Gabriel sempre foi um menino muito inteligente, sempre gostou de estudar. Desde que  ele terminou o ensino médio, ele estava estudando para prestar concurso para a polícia”, conta. 

“Ele era fissurado naquele programa Polícia 24 horas, ele amava. O sonho dele era prestar [concurso] para a polícia, tanto que ele foi preso dia 12 e no dia 20 tinha prova que ele tinha se inscrito”, completa Alinne. 

Ajude a Ponte!

A irmã conta que desde que foi preso Gabriel adoeceu por algumas vezes. No período inicial da pena, ele ficou no Centro de Detenção Provisória de Itapecerica da Serra, onde contraiu sarna e teve furúnculos pelo corpo. Atualmente, o jovem está na penitenciária de Reginópolis, no interior do estado. 

Outro lado 

A Ponte procurou o MPSP, o TJSP e a Secretaria de Estado da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) para comentar o caso e solicitar entrevistas com o delegado Bruno Barros Maciel, a promotora Maria do Carmo Galvão de Barros Toscano e o juiz Antonio Maria Patiño Zorz. O TJ respondeu que os magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento. 

A SSP, por meio da assessoria, disse que o inquérito já foi concluído e que detalhes caberiam ao judiciário. 

“O caso citado pela reportagem foi investigado pelo 100º Distrito Policial (Jardim Herculano). Todos os inquéritos policiais relacionados aos fatos já foram concluídos e encaminhados ao Poder Judiciário em 2022. Inclusive, já existe uma audiência marcada para setembro deste ano. Demais detalhes devem ser consultados com o Poder Judiciário”, diz o texto.

Em nota, o MPSP respondeu que inquérito demonstrou que Gabriel foi o responsável pela abertura da conta investigada e que não houve elementos para considerar o primo suspeito. 

Veja nota na íntegra:

O MPSP ofereceu denúncia contra Gabriel porque apenas em relação a ele foram colhidos indícios suficientes de participação no crime de extorsão. Nos autos do inquérito ficou demonstrado que ele abriu uma conta bancária  em nome de terceiro para que os valores subtraídos da conta da vítima fossem transferidos.  

No caso d[o primo], nenhum elemento concreto de seu envolvimento nos fatos foi colhido durante as investigações. Meras suspeitas ou presunções revelam-se insuficientes para embasar a propositura de ação penal. A Promotoria ressalta que, caso haja notícias de novas provas do envolvimento de Rafael no crime, devem ser levadas ao conhecimento da autoridade policial para prosseguimento das investigações.“

A reportagem também buscou a defesa do primo de Gabriel, mas não conseguiu contato até a publicação deste texto.

A Ponte procurou o PagSeguro questionando se há algum em andamento aperfeiçoamento da verificação de segurança para abertura da conta, nos moldes da prova de vida. Em nota, o PagBank informou que apenas que segue padrões de segurança.

O PagBank segue padrões rígidos de segurança, um dos principais pilares da companhia. Se identificado algum ponto suspeito pelo PagBank, o saldo é bloqueado por questões de segurança e liberado após comprovação de licitude dos recursos recebidos pelo nosso cliente“, escreveu.

*Reportagem atualizada às 20h15 do dia 18/8/2023 para adicionar análise de especialista sobre processo de abertura de conta em bancos digitais. Texto novamente atualizado em 21/8/2023 para incluir a nota do PagBank.

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