Ato realizado nesta sexta-feira (11) no Masp, centro da capital paulista, exigiu justiça e o fim do genocídio da população negra, morta “pela bala, fome ou Covid-19”
Justiça por Kathlen e Gibinha e o fim do genocídio do povo negro eram algumas das frases estampadas em cartazes que compunham o cenário cinza e frio desta tarde de sexta-feira (11/6) no Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, centro de São Paulo. Além das velas, revolta e dor, cerca de 100 manifestantes reuniram-se no local para protestar contra as mortes recorrentes que aconteceram nos últimos tempos no Brasil, sejam elas por balas, fome ou Covid-19 que já deixou mais de 480 mil brasileiros mortos. O ato foi convocado pela Coalizão Negra por Direitos, iniciativa que reúne mais de 150 entidades antirracistas e de defesa dos Direitos Humanos.
A jornalista Simone Nascimento, 28 anos, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU) veio de Pirituba, região da periferia da zona noroeste de SP, para manifestar sua solidariedade e indignação com a morte de Kathlen. “É muito importante ter vindo nesse ato contra a violência e o genocídio que o povo negro vem enfrentado, a gente sente isso em todas as quebradas de São Paulo, é por isso que a gente se movimenta ocupa o centro mas também as nossas periferias porque a nossa luta é todo dia em primeiro lugar pela sobrevivência e por dias melhores é isso que me moveu vir de Pirituba até aqui hoje”.
Kathlen Romeu, modelo e designer de interiores de 24 anos, morreu após ser baleada durante uma ação da Polícia Militar da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Lins, comandada pelo governador Claudio Castro (PSC) do Rio de Janeiro, em uma comunidade localizada na região da Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá, na zona norte do Rio.
Ela estava grávida de 4 meses e já chegou ao hospital sem vida. Conforme apurou a Ponte, o tiro teria partido de PMs que teriam invadido uma casa da comunidade para fazer uma emboscada e acabaram matando jovem na tarde de terça-feira (8). Segundo a PM do Rio, não houve operação, mas sim um confronto após policiais serem “atacados a tiros durante patrulhamento”.
A narrativa da bala perdida também foi criticada fortemente pelos manifestantes, como disse a bióloga e ativista da Coalizão, Maria José Menezes, 58 anos. “Estar aqui é contestar a barbárie de mais de 500 anos nesse país, com esse sistema tão perverso que é o neoliberalismo, em que há a morte premeditada da população negra, que está morrendo por Covid-19, de fome, pela bala do Estado. Essa bala não é uma bala perdida, é sempre direcionada para o corpo negro, é por isso que eu estou aqui, prestando a minha solidariedade, a minha dor e a minha vontade de lutar cada vez mais.”
O sentimento é de desamparo e tristeza, mas alimenta a luta. “É algo que nos impulsiona a mudar, pensar na família dela é pensar em uma filha, ela teria idade pra ser minha filha, então é muito doloroso, revoltante. É preciso mais do que tudo que a população brasileira se revolte, não só a negra, somos nós que estamos tomando, mas o país está se desfacelando e essa destruição atinge a todos, nós somos os alvos prioritários mas ninguém sairá a salvo nesse sistema tão perverso, exceto o sistema econômico”, finaliza Maria José.
Leia também: ‘Os policiais desceram atirando’: família e moradores contestam versão da PM sobre morte de Kathlen
A morte de Kathlen aconteceu cerca de um mês depois da Chacina do Jacarezinho, na qual 28 pessoas foram mortas pela Polícia Civil. A operação aconteceu mesmo com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proibiu operações policiais no Rio de Janeiro durante o período pandêmico. Para Douglas Belchior, membro do movimento de educação popular Uneafro Brasil, a situação é inadmissível. “Hoje a grande instituição fora da lei no Estado são as polícias, as polícias que são dirigidas pelos estados, portanto os governadores têm responsabilidades na sua atuação e no caso do RJ o governo tem inteira responsabilidade pelo fato de a polícia desobedecer às ordens do STF, o que a gente tem são governos milicianos, governos militarizados.”
Leia também: ‘Barbárie das barbáries’: operação policial deixa mais de 20 mortos no Jacarezinho
A vigília também foi um grito contra a fome que assola 20 milhões de pessoas, segundo Belchior. “Milhões de pessoas não conseguiram fazer as 3 refeições diárias Isso é resultado das políticas econômicas do governo Bolsonaro e de anteriores, mas sobretudo de como esse governo decidiu lidar com a pandemia, não colocando o Estado a serviço de garantir condições mínimas para a sobrevivência da população, cortou o auxílio emergência e se recusa a colocar em prática um auxílio que garanta minimamente as condições básicas da população.”
Nas ruas de São Paulo, a Coalizão também protestou contra o assassinato de Gibinha, como era conhecido Gilberto Amâncio. O tatuador e artista de 30 anos morreu após ser atingido por 6 tiros de dois policiais em 14 de maio, em uma viela da Favela da Felicidade, distrito do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo. Ele estava a caminho de um cliente para fazer uma tatuagem quando foi assassinado por policiais civis que estariam fazendo uma operação. A morte de Gibinha também gerou protestos na capital nas últimas semanas. O crime segue sem respostas até hoje.
Leia também: Policiais matam homem negro no caminho do trabalho com seis tiros na zona sul de SP
Seu irmão Jefferson Lima, 24 anos, que trabalha como analista de dados, esteve presente na vigília e, emocionado, lembrou da morte do irmão. “Meu irmão era uma pessoa do bem. Ele foi assassinado por seis tiros por policiais civis em pleno meio-dia, horário que várias pessoas saem para comprar pão e várias crianças no meio da comunidade”.
Em coro, os manifestantes gritavam “Kathelin e Gibinha vivem” e “Povo negro vivo é povo negro forte, que não teme a luta, que não teme a morte”. Frases que o sociólogo Diogo, 24 anos, morador do Jardim São Luís, zona sul de SP, recitou junto aos demais manifestantes. “Não é algo que aconteceu de forma isolada. Como a Kethlen aconteceu à luz do dia mostrando que a polícia não tem vergonha nenhuma de intervir e colocar que as vidas negras são as que menos importam, nossas vidas são vistas como objetos. Estamos aqui para mostrar que não vamos aceitar o genocidio. A periferia está cansada”.
Assim como Diogo, a empregada doméstica Ilza Fortunato, 45 anos, saiu da zona sul para ir à vigília junto com a filha adolescente. “Eu vim pelos nossos direitos, para dar apoio, falar sobre o negacionismo da sociedade pela morte da Kathlen, minha filha veio para participar e entender, conhecer o movimento. Achei um absurdo, fiquei chocada, não acreditei que aquilo tinha acontecido com a Kathlen”.
A estudante de cursinho pré-vestibular Rozana Barroso também expôs a sua revolta pela condição da juventude negra precarizada pela pandemia da Covid-19. “Querem ver nossa juventude morta. O único caminho que Bolsonaro reserva à juventude brasileira, principalmente a negra, hoje é a morte. Nós precisamos nos revoltar, sentir dor, esse ato é pra doer, porque está doendo nas nossas famílias, eu não aguento mais sair de casa com medo de não voltar, de ser a próxima, eu não aguento mais ver minha irmã de oito anos que está há um ano sem estudar, que não sabe ler, que está pensando em desistir dos estudos. Esse não é o presente, nem o futuro que nós queremos para as famílias negras no Brasil.”
Para a jovem é possível mudar a história do país que há anos mata o povo negro de tantas formas. “Nós podemos conquistar um Brasil mais justo. Nós podemos conquistar um Brasil de vida. Inclusive, esse é o nosso recado hoje. Se o único caminho que desenham para nós é a morte, o povo negro brasileiro vai desenhar com as próprias mãos o caminho da vida”.
Conforme solicitado pelos organizadores do ato, o uso de máscaras e o distanciamento social foram respeitados durante a vigília, que contou com a presença dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU), Milton Barbosa e Regina Lúcia.
A geógrafa que há mais de 40 anos milita na causa dos negros do Brasil estava emocionada e chorou quando falava ao microfone. “Eu não quero morrer antes de ver todos esses assassinos na cadeia, eu não quero mais chorar Kathlens, João Pedro, Luanas, Marieles, eu quero que esse Estado seja desintegrado pelas forças do povo negro porque nós temos a proposta de vida e alegria coletiva, e nós temos direito a isso. A gente luta incansavelmente contra a violência policial, contra o encarceramento em massa, pelo direito à vida”, disse Regina, revoltada.
Para ela, o Estado nega ao povo preto pobre e de periferia o direito a uma vida digna porque o país é racista. “Não aguento mais chorar os nossos, mas nós, o povo negro desse país, temos que incendiar, botar esse homem [Bolsonaro] na cadeia para que o meu neto tenha direito a vida, com educação, com cultura, lazer, saúde. Esse homem é um assassino de pelo menos todos os mortos a partir de maio, se ele tivesse comprado as vacinas, quando elas foram oferecidas a população brasileira estava toda vacinada, esse homem e os governadores do Rio e de SP são assassinos, eles dizem que é só mirar na cabecinha, para eles, preto, pobre e periférico é tudo bandido, tem que ser morto num país que não existe pena de morte”.
A vigília terminou de forma pacífica, por volta das 20h, com velas colocadas na calçada do Masp em referência às vidas negras perdidas, e não contou com interferência da Polícia Militar.