Leandro foi morto em operação da PM na favela do Moinho, localizada no centro de SP, e testemunhas afirmam que, além de tiros, o jovem levou marteladas
O Ministério Público Estadual pediu, em junho deste ano, o arquivamento do inquérito da morte de Leandro de Souza Santos, 19 anos, por policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), durante uma operação na Favela do Moinho em 27 de junho do ano passado.
Para a promotoria, os dois policiais investigados que dispararam seis tiros dentro de uma casa na comunidade agiram em legítima defesa. Para o promotor Rubens Andrade Marconi, que pediu o arquivamento, as testemunhas reforçam o relato dos PMs Pierre Alexandre de Andrade e José Carlos Paulino da Costa.
Segundo o boletim de ocorrência, os dois perseguiam Leandro pelas vielas da favela quando o jovem se refugiou na casa de uma vizinha. Lá, ele teria disparado dois tiros com um revólver calibre .38 contra os policiais que o perseguiam, que revidaram com seis tiros. Quatro deles atingiram Leandro e causaram sua morte, segundo o laudo criminalístico a que a Ponte teve acesso.
No dia do ocorrido, no entanto, as testemunhas relataram outra história. “Tentei entrar na minha casa e eles [policiais] não deixaram, meu marido também não conseguiu entrar. Não houve troca de tiros, a gente estava ali fora, se tivesse, todos teriam escutado. Ficou um entra e sai de polícia aqui; eles ficaram quase uma hora e meia dentro da minha casa”, contou, à época, Lucimar Oliveira Santana, dona do imóvel onde Leandro foi morto, para o portal R7.
Além disso, familiares afirmam que ele foi torturado com um martelo, também encontrado na cena do crime, mas periciado 8 meses depois do ocorrido, conforme documento abaixo. O laudo do Instituto de Criminalística revelou que o sangue de fato era humano, mas não conclui de quem era o sangue. O exame do IML em Leandro afirma que ele não possuía marcas de agressões além das balas que atingiram o peito e causaram sua morte.
A mãe de Leandro e a irmã dele, Letícia Souza, chegaram logo depois dos disparos. Odete contou, à época, que, ao perguntar sobre Leandro para os policiais que estavam do lado de fora do barraco, em apoio aos PMs da Rota, ouviu apenas mentiras. “Seu filho está bem, mãe, não fizemos nada de errado com ele”.
Letícia relatou ter ouvido sons abafados de tiros: “Eu o vi quando a PM entrou; ele estava com amigos sob efeito de cocaína, e assim que apontaram a espingarda, se assustou e correu para dentro da casa do vizinho. Entraram muitos policiais no barraco, e eles ficaram com meu irmão lá por uns 30, 40 minutos, quando escutei os barulhos abafados”, contou.
Coordenador da Comissão da infância e da juventude do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo), Ariel de Castro Alves critica a ação do MP. “As versões das testemunhas na época não foram levadas em consideração nas investigações da polícia civil, nem no parecer do MP. Os PMs dizem que no dia, na hora dos fatos, não encontraram os familiares, mas os irmãos dele foram expulsos do local e faltaram testemunhas que reforçassem os depoimentos dos familiares”.
Para ele, o relatório apresentado pela polícia civil ao MP não é claro: “Eles só deixam à disposição o passo-a-passo da investigação; em caso de dúvidas, como o levantado pelo laudo residuográfico, ou as divergências das testemunhas, o MP deveria ter pedido mais diligências, mas preferiu aceitar o relato oferecido”.
O inquérito policial militar assinado em 18 de setembro de 2017 considera que o caso é inconclusivo, aponta fragilidade nas provas de que houve alteração da cena do crime e encaminha o caso para análise do Ministério Público Militar recomendando que a Corregedoria peça novas diligências a fim de conseguir novas provas. A Promotoria Militar, no dia 3 de outubro do ano passado, remeteu o caso à Justiça comum.
Sem evidência de disparo
O laudo residuográfico feito pelo Instituto de Criminalística não encontrou nas mãos de Leandro traços de chumbo metálico nas mãos, provenientes de disparos de arma de fogo. O exame também não detectou resíduos nas mãos dos policiais, porém observa que estas ausências podem ser explicadas por falta de “preservação adequada da região de interesse do momento do disparo até a coleta da amostra”. A coleta só foi realizada três dias depois da operação, quando foi solicitado pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa).
“Os policiais teriam condições de lavar as mãos, já o Leandro, não, já que estava morto e o corpo à disposição da perícia e do IML. Além disso, os policiais admitem que realizaram os disparos contra ele”, afirma Castro Alves.
Essa situação de laudos falhos ou inconclusivos da perícia de armas e munições apareceu em pesquisa feita pela Ouvidoria das polícias na segunda-feira (13/8). O estudo “Pesquisa sobre o uso da força letal por policiais de São Paulo e a vitimização policial” traz laudo de um caso em que a perícia informa que “em face do lapso de tempo decorrido entre a data da ocorrência e a entrega das peças neste núcleo para exame, bem como a pouca estabilidade dos produtos oriundos da combustão da pólvora, o resultado deste exame ficou prejudicado para as armas em questão”. A situação foi corroborada pelo ouvidor Benedito Mariano: “Há casos em que havia disparo de arma do policial, inclusive registrado no b.o., mas não aparece no exame. O laudo residuográfico é imprestável”, declarou.
Além disso, não foram encontrados pelos peritos legistas duas balas de calibre .38, como do revólver supostamente usado por Leandro, dentro do barraco. Um fragmento em procedência clara foi identificado como sendo desse calibre, enquanto outro pedaço de chumbo não pode ser reconhecido pelos peritos. Ao todo foram apresentados seis cartuchos disparados, dois de pistola .40, pertencente aos policias, e dois de revolver que supostamente pertencia a Leandro.
“Durante todo o inquérito o MP não solicitou nenhum esclarecimento, produção de prova ou diligência. É um caso que mostra que o Ministério Público muitas vezes dá aval para a violência policial, não questionando ou fiscalizando os inquéritos policiais. Simplesmente acatando as conclusões e as versões policiais civis e militares. Pela falta de outras provas, acabou prevalecendo a versão dos policiais, como de costume nos casos de mortes envolvendo militares”, critica Castro Alves.
A ação da PM começou às 10h10, de acordo com os documentos oficiais, e segundo os moradores, Leandro foi retirado pelos fundos da favela por volta das 11h30. Segundo o relatório da Santa Casa, para onde foi levado, ele já estava morto às 11h14, portanto antes de ser removido. Uma resolução de 2013 da SSP (Secretaria de Segurança Pública) proíbe policiais de socorrerem vítimas em confrontos com a própria polícia.
Vizinhos que presenciaram a ação policial apontam outras irregularidades. Um jovem de 16 anos afirmou na época da morte que “estavam todos [policiais] sem patente, sem numeração, sem nada. Havia mais ou menos cinco carros e nenhum policial tinha identificação. Eu fiquei parado um tempo na frente e nenhum tinha nada que os identificasse”.
Um mês depois do ocorrido, reportagem da Ponte – vencedora do Prêmio Vladimir Herzog do ano passado – mostrou que, segundo relatos dos moradores do Moinho, a repressão policial aumentou na região. Além disso, a reportagem mostra que o local do crime não foi preservado, sofrendo, portanto, alterações.
Os dois policiais que, de acordo com o boletim de ocorrência, assumiram o disparo de quatro tiros cada contra Leandro, já estiveram envolvidos em outros episódios de “morte decorrente de oposição a intervenção policial”, como são registrados os casos em que o suposto criminoso é morto ao disparar contra policiais. O policial da Rota José Carlos Paulino da Costa estava em um caso em 2009, e Pierre Alexandre de Andrade tem dois casos de morte de suspeito.
A reportagem da Ponte tentou desde segunda-feira conversar com o promotor Rubens Andrade Marconi, mas até a publicação não obteve retorno. Houve também tentativa de contato com os familiares de Leandro Souza Santos, mas até o momento, sem sucesso.