Comerciante afirma que recebeu golpes de cassetete junto com familiares por causa de caixa de som no litoral de SP. Vídeo mostra grupo de policiais em cima dela, um deles dando socos. Tenente alegou que ela resistiu à prisão e o xingou; vítima nega
No fim de 2020, a comerciante Lígia*, 36, desceu a serra para Caraguatatuba, no litoral paulista, para passar o ano novo na casa que havia comprado 10 meses antes. Na madrugada do dia 30 para o dia 31 de dezembro de 2020, ela e dois familiares foram agredidos por policiais militares, segundo ela, por causa de uma caixa de som. Meses depois, após receber uma intimação, soube que estava sendo processada por desacato e lesão corporal.
Ela conta que estava com familiares sentada na calçada na frente da residência. “É um local que fica a 100 metros da praia do lados de prédios. Como estava muito calor, ficamos do lado de fora para ver o jogo do São Paulo e esperar meu sobrinho chegar. Além da gente, tinha outras casas com pessoas com cadeira na porta”, lembra. Nas fotos encaminhadas à reportagem, a comerciante está com mais oito pessoas. “Tinha policiais passando, com blitz, normal, quando por volta de meia-noite, 1h, veio um PM perguntando de quem era a caixa de som falando que o volume estava alto, mas não estava, e que a gente estava desrespeitando a presença da polícia”, afirma.
Em seguida, o marido dela, Rogério*, 43, confirmou que o aparelho era dele. “O policial veio até mim e ele disse ‘você não está vendo a presença da polícia?’ e agarrou meu braço, puxando, levando eu e a caixa. Falei que não precisava daquilo porque fui policial, sabia como era o procedimento, mas ele não quis nem saber, já me levou para orla e ficaram comigo lá. Não vi mais o que aconteceu”, conta Rogério. De acordo com ele, os PMs não fizeram a medição do som com decibelímetro, aparelho usado para medir a intensidade sonora. “Se tivessem medido mesmo, ia aparecer no boletim de ocorrência o número de decibéis”.
Lígia aponta que tentou questionar os policiais para saber para onde estavam levando seu companheiro, mas que tanto ela quanto outros familiares foram agredidos. “Voltamos para trás porque fiquei com medo e eles voltaram gritando, dizendo que iam me prender, para que eu calasse a boca, começaram a me bater e a bater em todo mundo. Me jogaram no chão, os policiais em cima de mim”, lembra.
Um dos vídeos gravados por um parente mostra um homem com a cabeça ensanguentada e depois Lígia gritando para anotar a placa da viatura. Em seguida, retornam cinco policiais com cassetetes nas mãos que vão em direção ao grupo. Um dos familiares que filma grita “a gente está na porta de casa, você vai bater na gente ainda?”. Na sequência, um deles se dirige a Lígia e diz “você está presa”. As imagens tremem e dá para ouvir um rapaz falando “é a minha avó”. Lígia disse à reportagem que naquele momento empurraram sua mãe. O irmão também foi agredido ao tentar intervir.
A filmagem mostra trechos em que Lígia está no chão, sentada, um PM dá um murro na sua cabeça e outro policial espirra spray de pimenta no rapaz que se aproxima para registrar as agressões. Outros dois com cassetetes nas mãos também tentam se aproximar mandando se afastarem. O rapaz que está gravando ainda vai para trás de uma grade da casa e um dos policiais bate com um cassetete no portão. Um homem ao fundo grita “filho da puta” e uma menina chama pela mãe.
Lígia denuncia que na viatura os policiais ainda a xingaram e ameaçaram agredí-la. “Me chamaram de puta, vagabunda e perguntaram se eu não queria um segundo round”.
No boletim de ocorrência, os PMs Victor Oliveira Guerra, Evandro Florentino e Elias de Souza Fagundes, do 20º Batalhão da Polícia Militar do Interior, disseram que estavam pela orla da Praia Martim Sá, em operação de bloqueio pelas imediações, “devido às várias solicitações de aglomeração e perturbação do sossego”.
De acordo com eles, havia uma família na calçada que fazia uso de uma caixa de som com volume bem alto e que, ao usar um decibelímetro, “foi constatado que o volume das músicas perpetradas era maior que o permitido pela legislação municipal”, mas não há indicação precisa da medição.
Em seguida, apreenderam o aparelho e, por isso, afirmam, Lígia “se exaltou e começou a proferir palavrões à vítima tais como ‘filho da puta, vagabundo'” e teria partido para cima do tenente Victor. Declararam que foi “necessário força física moderada para contê-la” e que foi dada voz de prisão. A mulher, alegam, teria se exaltado mais e ofendido os outros policiais e resistido à prisão.
No BO, consta que o tenente passou por exame de corpo de delito, mas não informa sobre as lesões contra a comerciante, que foi indiciada por desacato, lesão corporal e resistência e teve prisão em flagrante decretada. O laudo do Instituto Médico Legal apontou que o tenente teve escoriações leves no pescoço, ombro esquerdo, braços e cotovelos. Ela nega ter agredido e ofendido o PM.
Lígia, segundo o exame de corpo de delito, também tinha lesões apontadas como leves: apresentava marcas roxas nos dois braços, escoriações no cotovelo direito e antebraço, muitas lesões nas costas e nas coxas.
Em audiência de custódia, no dia 31 de dezembro de 2020, o juiz Gilberto Alaby Soubihe Filho determinou a soltura mediante cumprimento de medidas cautelares: manter o endereço atualizado, não se ausentar da cidade sem autorização judicial e permanecer em casa entre 22h e 6h.
Em 3 de março, o promotor Valter Luciano Leles Júnior acusou Lígia pelos crimes de desacato, resistência e lesão corporal. A denúncia foi aceita, em 12 de abril, pelo juiz Júlio da Silva Branchini, da Vara Criminal de Caraguatatuba.
Ainda não há audiências marcadas para esse processo. Lígia também afirma ter procurado a Corregedoria da PM. “Foi um trauma muito grande, fui agredida na frente dos meus filhos menores de idade”, lamenta. “Antes eu me sentia segura perto de polícia, via na rua e ficava tranquila, mas eu me enganei, agora eu tenho”.
O que diz a polícia
A Ponte procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública e da Polícia Militar sobre o caso, mas não houve retorno até a publicação.
*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados que temem represálias.