Para o promotor Rogério Leão Zagallo, a denunciada cometeu ato com dolo eventual ao assumir o risco de perder o feto quando quis tirar a própria vida
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A decisão de tirar a própria vida veio após ser expulsa da casa da tia, com quem morava de favor e não aceitava a sua gravidez. A gestação não estava nos planos dela nem do namorado que estava desempregado na época. Sem poder mais trabalhar como vendedora e com quadro avançado de depressão, ela ingeriu veneno para matar ratos com a validade vencida no penúltimo dia do ano de 2016.
Passando mal, mandou uma mensagem para o companheiro em tom de despedida se desculpando pela atitude que tinha acabado de tomar. Desesperado, o homem voltou para casa a tempo de resgatar a sua namorada e levá-la para receber atendimento médico. Conseguiu salvá-la, mas o feto que estava há sete meses no ventre da companheira não resistiu a um parto induzido ocorrido no dia 4 de janeiro de 2017.
Por este motivo, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) quer que essa mulher vá para o banco do réus e seja submetida a júri popular sob a alegação de aborto com dolo eventual (quando a pessoa teoricamente assume o risco de cometer algum crime ao tomar uma atitude). O pedido, feito pelo promotor Rogério Leão Zagallo junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), coloca a mulher como responsável pelo aborto a partir do momento em que decidiu cometer suicídio.
“Verte dos autos que a ora denunciada queria cometer suicídio e, para tanto, ingeriu certa quantidade de veneno usado para matar ratos comumente chamado de chumbinho [ao contrário do que afirma o promotor, chumbinho não é um veneno, mas um agrotóxico usado de maneira indevida para matar ratos]. […] Manifestamente demonstrado nos presentes autos que assumiu o risco de causar a morte de seu feto, uma vez que sabia que estava grávida e, mesmo assim, ingeriu o aludido veneno, sendo ele a causa efetiva do abortamento”, descreve o promotor no documento encaminhado ao TJSP no dia 5 de novembro de 2020, quase quatro anos após a tentativa de suicídio e nove meses depois do encaminhamento do inquérito policial feito pelo delegado da Polícia Civil Marcos Paulo Bueno Prado.
Para o advogado Renan Bohus, que defende a mulher denunciada, o Ministério Público, em vez de acolher uma pessoa que passou por um momento delicado da sua vida, agrava ainda mais o quadro de saúde mental da sua cliente, querendo levar este caso para o tribunal do júri, o que ocorre em casos de crimes considerados “contra a vida”, o que inclui, na lei brasileira, o aborto.
“Tecnicamente essa denúncia é um absurdo. Ela não tem fundamento jurídico. Ela quis se matar, ela nunca quis abortar. A intenção dela era tirar a própria vida. Ela não estava em plena capacidade das suas atividades mentais. Não tem como punir alguém que tenta tirar a própria vida e não está em sua plena capacidade mental”, argumenta o defensor.
Segundo Ana Carolina Moreira Santos, que faz parte da Comissão da Mulher Advogada da OAB de Pinheiros (SP) e pesquisa a descriminização do aborto em eu mestrado na Universidade Santo Amaro, as leis penas não prevêem nenhuma punição a alguém que atente contra a própria vida, e o que ocorre na denúncia feita pelo promotor Rogério Leão Zagallo é a revitimização da mulher.
“Essa mulher, que por algum motivo veio tentar o suicídio, já está em uma posição de sofrimento e transtorno mental que a levou a esse ato. O Juduciário, ao invés de acolhe-la, está levando ela a ser julgada por algo que ela fez contra o próprio corpo e não contra terceiros. Compreender que no ato praticado ela assumiu o risco de perda do feto é, na minha opinião, ir muito além do que a prática processual admite”, analisa a advogada.
Machismo judicial
Tanto o defensor da mulher denunciada, quanto a representante da comissão de mulheres advogadas da OAB veem esse caso como mais uma forma de controle sobre os corpos femininos no Brasil. Não só por parte dos homens, mas de todo um sistema que está estruturado para julgar e punir mulheres por suas condutas.
Ana Carolina Moreira Santos, que é mestranda em direito médico, afirma que a falha no processo se inicia quando a médica que atendeu a mulher informou aos policiais sobre o aborto. Segundo ela, o depoimento da profissional de saúde nem deveria ser considerado como prova.
“Foi uma divulgação ilegal. Essa prova ocorre por meio da violação do sigilo médico. O próprio Tribunal de Justiça de São Paulo tem jurisprudência de casos que não tiveram prosseguimento por conta da violação do sigilo médico em casos de aborto”, lembra a advogada.
O advogado de defesa afirma que na literatura do direito no Brasil não há nenhum caso parecido com este. O mais próximo disso, segundo ele, foi um caso de 1997 onde um homem atirou em uma mulher que estava grávida. Como o autor dos disparos alegou não saber da gestação da vítima, não lhe foi imputado o crime de aborto.
“Vamos mudar de lado. Pense se um homem que engravidou sua companheira tenta se matar e não consegue. Ele seria denunciado por abandono de incapaz?”, questiona Renan Bohus.
“A dificuldade de ser mulher em uma sociedade machista é que as instituições nos culpabilizam por nossos atos e nesse caso fica muito evidente como não só o sistema de justiça, como o sistema de saúde e a sociedade em geral, quer controlar os corpos femininos”, avalia Ana Carolina.
Processo arrastado
Quase dois anos após a denúncia feita pelo MP ao TJSP e mais de cinco depois dos acontecimentos, nesta segunda-feira (15/8) houve a primeira audiência de instrução do caso, onde foi ouvido o marido da mulher denunciada, que reafirmou que a mulher passava por graves problemas na época agravando o quadro de depressão que já tinha.
“A gente sabe que processos são realmente demorados no Brasil e não sei dizer ao certo o motivo por esses prazos, acredito que a pandemia também deu uma atrasada em tudo e por isso só agora que as pessoas estão sendo ouvidas”, comenta Renan Bohus.
Porém, o advogado lamenta que o caso não tenha sido arquivado desde a conclusão do inquérito da Polícia Civil e diz não entender qual a intenção do Ministério Público em querer levar este caso para frente.
“O promotor ainda pediu para que a médica que fez o atendimento da minha cliente preste depoimento nas audiências de instrução. Ela não foi localizada ainda e só depois de tudo isso é que a mulher vai poder ser ouvida pelo juiz. O magistrado pode levar o caso para o júri ou compreender que não há provas suficientes para levar a questão adiante. Eu tenho muita esperança que ele encerre o caso nas instruções, mas não há como saber como se dará esse processo no futuro.”
Além do acompanhamento psicológico, nestes seis anos a mulher fez tratamento para voltar a engravidar. Mesmo com as complicações causadas pela tentativa de suicídio, ela deu a luz a um bebê há poucos meses e casou com o mesmo companheiro que a salvou.
Promotor com histórico de punições
Insatisfeito pelos atos ocorridos em vários pontos do país em julho de 2013, Rogério Leão Zagallo escreveu em sua conta no Facebook que a Polícia Militar de São Paulo poderia matar todos os manifestantes que ele arquivaria todos os inquéritos contra os policiais.
O motivo do destempero foi ter ficado preso durante duas horas em um engarrafamento por conta dos protestos. Pelo texto, Zagallo foi suspenso das suas funções por 15 dias após determinação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Pela postagem, o promotor também foi demitido de uma faculdade particular onde dava aulas.
Essa não foram as únicas punições sofridas pelo membro do MPSP devido às suas palavras. O CNMP o suspendeu em uma outra ocasião, quando Zagallo disse que uma magistrada teria cara de faxineira. O comentário, feito em uma rede social, foi direcionado a uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Amazonas. “Pela carinha, quando for demitida poderá fazer faxina em casa. Pago R$ 50,00 a diária”, escreveu o promotor.
Em 1997, Zagallo pediu o arquivamento do processo que julgava quatro policiais militares pela morte de três militantes da causa por moradia na Fazenda Juta, na zona leste da cidade de São Paulo. O promotor afirmou não ter provas suficientes para acusar os PMs e por isso não foram levados a julgamento popular. “Não havia por parte dos milicianos intenção de enfrentar ou desafiar os sem-teto”, disse o Zagallo à época, segundo reportagem da Folha de S. Paulo.
Zagallo também foi o responsável por pedir o arquivamento do processo onde um policial militar foi acusado de ser um dos autores de uma chacina em que oito pessoas foram mortas dentro da sede da torcida Pavilhão 9 do Corinthians, em 2015.
Quatro anos antes, ele também pediu o arquivamento para um caso onde um policial civil era acusado de matar uma pessoa mesmo depois de investigação da própria corporação que fazia parte pedir o seu indiciamento. No texto do pedido, o promotor fez ataques a defensores do direitos humanos e defendeu que a morte de “bandidos”.
“Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer. Lamento que tenha sido apenas um dos rapinantes enviados para o inferno. Fica aqui o conselho ao Marcos Antônio (Martins, policial civil acusado no episódio): melhore sua mira”. Zagallo disse ainda que, “para desgosto dos defensores dos Direitos Humanos de Plantão”, a vítima tinha sido morta “para a fortuna (sorte) da sociedade”, segundo consta em matéria do UOL da época.
Em seu histórico ainda constam ofensas a gays em seus pedidos junto ao Tribunal de Justiça. O promotor afirmou que duas vítimas de homicídio haviam se conhecido em um local com pessoas “modernas e abertas a novas experiências, sobretudo aquelas ardentes e capazes de ruborizar aos mais indiferentes moais da Ilha de Páscoa” e ainda se referiu a um deles como “homossexual cheio de entusiasmo, de ardor e de vivacidade” e que isso teria levado o reú para sua para ser “penetrado” por ele.
Outro lado
A Ponte pediu à assessoria de comunicação do Ministério Público de São Paulo uma entrevista com o promotor Rogério Leão Zagallo e foi informada que ele “prefere não se manifestar no momento”. A reportagem também pediu um posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o caso, que respondeu por e-mail que o “processo tramita em segredo de justiça, assim, não temos informações disponíveis”. A assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, por sua vez, questionada sobre o inquérito policial, afirmou por telefone que “não se pronuncia em casos de suicídio”.