Para a coordenadora do Movimento Negro Unificado, prisões de militantes políticos brancos, como Rodrigo Pilha e Matheus Machado Xavier, segue a mesma lógica de violação de direitos praticada contra a população negra
No momento em que a expressão “prisão política” ganha força para se referir a prisão de militantes políticos brancos, como Rodrigo Pilha e Matheus Machado Xavier, a Ponte entrevista a jornalista e estudante de direito Luka Franca, integrante da Coordenação Estadual do Movimento Negro Unificado São Paulo, para falar sobre um lema adotado pelo MNU desde sua fundação, em 1978: “todo preso é um preso político”.
Rodrigo Grassi Cademartori, o Rodrigo Pilha, 43 anos, foi detido após expor uma faixa com a inscrição “Bolsonaro Genocida”, em 18 de março, e mandado para a prisão, em Brasília, em razão de duas condenações anteriores, por desacato e embriaguez ao volante. Nesta semana, Pilha divulgou uma carta afirmando que está fazendo greve de fome para “denunciar e chamar a atenção da sociedade para os maus-tratos” do Centro de Progressão Penitenciária do Distrito Federal, onde permanece detido apesar de ter obtido direito ao regime aberto. Já Matheus Machado Xavier, 25 anos, foi detido por levar o capacete de um segurança do Metrô, após um confronto durante um protesto contra Bolsonaro na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, no último dia 3, e autuado por furto e lesão corporal.
Nesta entrevista, Franca comenta que Pilha e Xavier sofrem “a mesma coisa que todos os outros presos do país vivenciam” e explica a posição do Movimento Negro Unificado de não fazer distinção entre prisões políticas e comuns. Para ela, “a não garantia dos direitos que estão previstos, por exemplo, no Código de Processo Penal e na Constituição Brasileira, para quem é preso por conta de uma manifestação política, são os mesmos direitos que são negados aqueles que são conhecidos como preso comum”. Segundo a militante, “o processo de encarceramento em massa sempre serviu para tirar nosso povo da rua”.
Ponte – Movimentos sociais e alguns veículos de esquerda chamam pessoas brancas presas, como Rodrigo Pilha e Matheus Machado, de “prisões políticas”. O próprio Pilha, contudo, deixa claro na carta que escreveu que os abusos que ele sofre na prisão são os mesmos aplicados contra qualquer prisioneiro. Desde sua fundação, em 1978, o MNU questiona essa distinção e afirma o lema de que “toda prisão é política”. Por quê?
Luka Franca – Primeiro porque faz parte de uma compreensão de que o processo de encarceramento em massa sempre serviu para tirar nosso povo da rua, dos espaços. A sociedade nos marginalizou. Com a Lei Áurea não tem criação de emprego, a gente é jogado cada vez mais às margens da sociedade. Nós temos instituições como manicômios e prisões, que vão sendo cheias de pessoas pobres, pessoas negras, que são colocadas cada vez mais à margem. Então, dentro desse aspecto a gente não faz uma distinção entre os presos “comuns” e aqueles que são chamados de “presos políticos”. Porque a não garantia dos direitos que estão previstos, por exemplo, no Código de Processo Penal e na Constituição Brasileira, para quem é preso por conta de uma manifestação política, são os mesmos direitos que são negados àqueles que são conhecidos como preso comum. Por exemplo, o caso do [Rodrigo] Pilha, que teve agora o direito de progressão de pena para o regime aberto: isso é uma coisa comum no sistema carcerário, não foi apenas com o Pilha. Acontece com milhões de outras pessoas que estão encarceradas e, em geral, seus familiares não sabem nem em que pé estão os processos. A população carcerária em nosso país, em geral, não é branca, é negra ou indígena, por conta de toda a marginalização e racismo estrutural que existem em nosso país.
Ponte – Como o lema de que toda prisão é política está ligado à própria fundação do MNU?
Luka Franca – O MNU, que tem 43 anos, surge com dois casos de racismo. Um contra os meninos do Clube de Regatas Tietê e o outro foi o assassinato Robinson Silveira da Luz, que era um feirante. Em cima disso, vários coletivos que existiam e intelectuais se organizaram para construir uma articulação, um movimento mais amplo que desse força para a discussão racial no país, em meio à ditadura militar, e para resgatar algumas coisas que tinham de debate desde os anos 30. Se apresenta a necessidade de reagir à violência racial e se coloca a necessidade de implementação de uma democracia e que ela não fosse uma democracia com prisões, justamente por essa compreensão de que quem era assassinado pelos pés-de-pato [grupos paramilitares de “justiceiros”] ou preso era justamente o nosso povo, que não tinha direito naquele momento a voto e não tinham direitos básicos universais assegurados. Desde a origem, a gente tem essa compreensão de que o debate de enfrentamento ao racismo é necessariamente um debate de enfrentamento à estrutura de poder.
Ponte – A esquerda brasileira, de modo geral, ainda é punitivista? Como é o apoio à crítica do encarceramento?
Luka Franca – Sim. As saídas de recrudescimento penal ainda estão postas. A gente pensa a questão de pena muito à privação de liberdade. A gente não consegue pensar, por exemplo, na questão do processo penal do ponto de vista de que, quando você paga um multa, isso também é uma pena que você está cumprindo. A gente tem a falsa sensação, por conta da narrativa que se coloca, muitas vezes, de que regime semiaberto e regime aberto são uma espécie de liberdade, quando não são: ainda são cumprimento de pena. A gente debate muito pouco o que significa o processo de encarceramento em massa. Hoje existe um questionamento muito grande sobre o processo de encarceramento em massa, por exemplo, nos Estados Unidos, que é o país que mais encarcera no mundo, e no Brasil a gente avançou em alguns debates, muito por conta do significado de quem depende do recrudescimento penal se demonstrou o principal aliado do bolsonarismo e do ultraconservadorismo dentro do país. O que está acontecendo com Matheus e com o Pilha demonstram nitidamente qual é o problema de todo sistema. Porque não é só com eles. Obviamente a gente acaba notando mais porque tecnicamente o que eles cometeram foi ter uma posição política sobre determinado tema e não outras questões que são vistas como problemas, como tráfico de drogas, que são naturalizadas se justificar que precisam ser presos ou mortos. O que eles estão vivenciando é a mesma coisa que todos os outros presos do país vivenciam. Piora ainda mais na pandemia, porque a gente não tem notícia do que acontece nos presídios, justamente porque para a sociedade não importa. Aquelas pessoas que estão ali elas são indesejáveis. Isso é o processo das prisões e dos manicômios, também, de não conseguir lidar cotidianamente com as mazelas e vulnerabilidades que o capitalismo diz que garante com nos direitos.
Ponte – O fato de o principal nome da esquerda brasileira ter sido alvo de uma prisão arbitrária ajudou a ampliar a crítica às prisões pela esquerda?
Luka Franca – Eu acho que abriu espaço. Abriu-se mais espaço para esse debate. Não chegou no campo necessário ainda. Ainda acho que há alguns setores que fazem muita distinção entre o preso comum e o preso político, inclusive dentro dos debates juntos aos movimentos sociais. À época da prisão do Lula, esse era um debate importante, não só conosco do MNU, como com outros movimentos negros. Então, “a gente precisa falar da prisão do Lula, é um absurdo, é antidemocrático, tudo isso, mas a gente precisa virar e falar que o que está acontecendo com o Lula, a seletividade penal que ele está sendo tratado, é a seletividade penal está colocada para todo mundo”.
Ponte – O apelo às prisões como solução ainda é muito popular mesmo entre a militância política de esquerda. É muito comum pedir que a família Bolsonaro seja presa, por exemplo. É possível apoiar a prisão em determinadas circunstâncias e ainda ser antirracista?
Luka Franca – Eu acho que sim. Porque a gente tem que lembrar qual é o debate que a gente está travando como sociedade. É possível você apresentar uma política antirracista e com uma agenda de desencarceramento e tentar dialogar com o senso comum que foi criado pelos programas policialescos. A gente está enfrentando justamente um discurso muito vazio. O bandido bom é o bandido morto ou tem que prender mesmo? Ele é um discurso vazio. Ele é só um espetáculo. É um Datena com o helicóptero. Acho que quem pede a cadeia para o Bolsonaro está tentando fazer algum tipo de diálogo. Não acho que é quebra de princípio, porque a gente está disputando com o fascismo, efetivamente falando.
Ponte – A população pobre e negra, que frequentemente é alvo da violência urbana, costuma apoiar o encarceramento em massa. Como você explica para essa população que prisões não são uma solução?
Luka Franca – Esse é o desafio mais difícil. Porque nós, que estamos numa luta antirracista, num processo de enfrentamento ao Estado, ao encarceramento em massa, a questões ideológicas, estamos a todo momento sendo disputados pelo status quo. As pessoas a todo momento ligam na TV aberta e olham como é dado o jornalismo policial. E quando essas pessoas , e infelizmente é o que acontece, se deparam com o processo de genocídio e o processo de encarceramento em massa, é um choque, porque elas se consideram pessoas de bem, mas para o Estado elas não são. E a gente tem visto muito isso e especialmente a Ponte tem coberto muito isso nesse último período: o assassinato de jovens, como as mães viram e falam desses jovens. Quando você vira e ouve as mães falando de seus filhos que foram perdidos para a polícia ou nesse processo de genocídio, é justamente como se concretiza da pior forma de que eles não estão ali para nos proteger, estão ali para nos matar e nos vigiar. Apesar de haver essa discussão de que bandido bom é bandido morto e que precisa ter leis mais duras e afins, se sabe desde pequeno como você precisa se portar para não dar motivo. Os meninos negros têm que estar com seu documentos.
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