Polícias Civil e Militar de SP mataram 432 pessoas de janeiro a julho, um aumento de 56% em relação ao mesmo período de 2023: “Há um descontrole total do uso da força”, afirma pesquisadora
As polícias Civil e Militar mataram 432 pessoas de janeiro a julho deste ano, segundo dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) na sexta-feira (30/8). Isso significa um aumento de 56% do número de vítimas sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite, em relação ao mesmo período de 2023. Só em julho, as mortes passaram de 56 para 59 em 2024, representando uma alta de 5,3% no mês.
A maioria das histórias de mortes causadas por policiais contadas pela Ponte nesse período foram de vítimas da Operação Verão, que ocorreu no primeiro trimestre deste ano na Baixada Santista. Foram 56 vítimas: Hildebrando Simão Neto, de 24 anos, e Davi Gonçalves Júnior, 20, que tiveram a casa invadida por PMs quando esperavam o café; José Marques Nunes da Silva, 45, abordado quando voltava para casa após um dia de trabalho como catador de latinhas; Leonel Santos, 36, e Jefferson Miranda, 37, amigos de infância que foram baleados após se encontrarem na rua depois que Leonel tinha ido a uma pizzaria; o pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30, foi morto dentro de casa, que teria sido lavada diante de PMs antes de a perícia chegar.
Há também os casos de Tiago Henrique de Oliveira Batan, 27, agredido e morto por policiais durante uma abordagem no interior paulista durante o Carnaval; Matheus dos Santos Silva, 19, baleado no rosto em uma abordagem no Guarujá, poucas semanas após o encerramento oficial da Operação Verão; Gicélio de Souza Filho, 15, morto quando ia comprar um refrigerante em Santos; e Matheus Menezes Simões, 21, que teve o pescoço perfurado pela ponta de um fuzil de um PM em São Paulo.
Esses episódios também representam a maioria dos casos: policiais mataram 78,7% a mais durante o serviço em comparação com os sete meses de 2023.
O mês de julho também marcou um ano da Operação Escudo, a primeira que teve alto índice de letalidade no governo Tarcísio com 28 mortes. Além disso, das 27 investigações, 23 foram arquivadas e apenas oito policiais militares viraram réus por quatro homicídios no período, como a Ponte revelou.
Para o coordenador de advocacy da Plataforma Justa, Felippe Angeli, existe uma carta branca para matar por parte do governo estadual, especialmente pelas declarações de menosprezo às denúncias de abuso policial. “A gente sabe muito bem que, na coordenação das polícias, as mensagens passadas pelo comando, e obviamente pelo Guilherme Derrite, que é o comando superior da Secretaria de Segurança Pública, têm um impacto concreto nas pontas. A partir do momento que o comandante supremo dessa força passa pano, flexibiliza ou legitima a violência policial de alguma forma, isso é com certeza transmitido na cadeia de comando”, aponta.
Ariadne Natal, que é pesquisadora do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF), concorda e indica que o componente ideológico está entre os fatores que ditam a política de segurança. “Aquele que está sentado na cadeira de governador e aqueles que estão sentados nos comandos e na cadeira de secretário da Segurança Pública têm que ter uma intenção muito clara de exercer esse controle do uso da força letal. Se isso não acontece, e mais do que isso, se há uma promoção ou um incentivo das mortes, o resultado é isso que a gente vê: um aumento e um descontrole total do uso da força”, avalia.
Ela aponta, por exemplo, que a Polícia Federal tem uma incidência muito maior no impacto ao crime organizado “sem derramar uma gota de sangue” do que a polícia paulista, quando comparadas as apreensões de drogas e os números de mortes praticadas, como a Ponte também revelou. “A sensação e o resultado que a gente vê é uma polícia menos profissional, mais bélica e com pouco impacto de fato naquilo que é importante e que se relaciona a garantir a segurança da população”.
Os especialistas também destacam um “sucateamento” dos controles do uso da força, como o elogiado programa de câmeras nas fardas. Em 2023, o governador deixou de investir de R$ 57 milhões ao transferir a verba para outras ações, como o pagamento de diárias de policiais. Neste ano, em maio, a gestão anunciou um novo contrato com a previsão de substituir as 10 mil câmeras existentes por outras 12 mil. Porém, tanto o edital quanto o contrato homologado foram alvo de críticas, especialmente por retirar o recurso de gravação ininterrupta por uma manual — ou seja, o PM escolhe quando começa a gravar a ocorrência, o que na prática inviabiliza o controle e o registro das ações policiais.
Uma das formas de medir o excesso da letalidade policial é comparar esse índice com o número de vítimas de homicídios dolosos. De janeiro a julho, as mortes pelas polícias representaram 22,5% dos homicídios dolosos. No mesmo período do ano passado, o índice foi de 15,1%.
Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que a proporção ideal é de 10% de mortes pela polícia em relação ao total de homicídios. Os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que um índice maior que 7% já seria considerado abusivo.
Outra maneira de avaliar a letalidade é comparando as mortes de policiais com as mortes que as polícias praticaram. Esses estudiosos indicam que se as mortes de civis for 10 ou 15 vezes superior a de policiais, já é um indicativo de abuso. Considerando os casos em serviço e na folga, é como se 19 pessoas tivessem sido mortas para cada policial assassinado. Quando dividimos apenas pelos casos em serviço, essa proporção fica quase duas vezes maior: 37 pessoas para cada policial morto.
Nos primeiros sete meses do ano, houve uma queda de 26,6% do número das mortes de policiais, passando de 30 para 22, considerando os casos em serviço e na folga. Nos em serviço houve uma pequena alta de oito para 10 no mesmo período.
Felippe Angeli avalia que essa proporção corrobora com o aprofundamento da violência policial. “Quando você começa a ter um descolamento disso, ou seja, o maior número de mortos suspeitos e o menor número de policiais em confronto ou mesmo fora de serviço, tem mais indícios, de acordo com a literatura, de que a letalidade policial está ultrapassando a fronteira para o abuso policial”, critica.
Ariadne também aponta que uma política de segurança que prioriza a vida deve priorizar a vida de todos. “Ela precisa priorizar a redução do homicídio, a redução das mortes por intervenções policiais e a redução da morte de policiais. Todas as vidas deveriam ser o foco. Então, não há possibilidade de você fazer a defesa da vida se você circunscreve quais são as vidas que valem mais e as que valem menos”.
O que diz o governo Tarcísio
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre os indicadores. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte resposta:
Para reduzir a letalidade, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) tem investido continuamente em treinamento e capacitação dos policiais, além de adquirir e utilizar equipamentos de menor potencial ofensivo, como tasers. Há um forte trabalho de correição das forças de segurança, com todas as ocorrências desse tipo sendo rigorosamente investigadas pelas respectivas corregedorias, com o acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário. Em casos de irregularidades, os envolvidos são responsabilizados administrativa e criminalmente.
Paralelamente, as forças de segurança mantêm um processo contínuo de atualização e modernização dos procedimentos operacionais, assim como das grades curriculares das academias de formação e dos cursos de educação continuada dos policiais, com a ampliação da carga horária das disciplinas voltadas aos direitos humanos e à cidadania. Além disso, a atual gestão está ampliando o uso das câmeras operacionais portáteis (COPs), com a aquisição de 12 mil novos dispositivos, representando um aumento de 18,5% em relação ao número atual de equipamentos.
A SSP está comprometida no combate aos crimes contra a vida, e realiza uma análise constante das variações dos índices desses delitos. Esse acompanhamento é feito por meio do SP Vida, que contribui para a formulação de políticas públicas direcionadas ao enfrentamento desses crimes.