Militares deixam estado após 10 meses, com queda de crimes contra o patrimônio e aumento de mortes por policiais; mãe fala sobre primeiro Natal e Ano Novo sem o filho, morto por PMs em junho
O dia 24 de dezembro foi diferente para Bruna Silva, mãe de Marcus Vinicius. O garoto tinha 14 anos quando levou um tiro e morreu no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, em junho deste ano. O que antes era uma ceia repleta de sorrisos largos, este ano não aconteceu. Bruna passou a noite sentada no sofá ao lado de seu esposo e da sua filha mais nova, de 12 anos. Um dia sem presente e sem jantar, mas com a saudade de Marcus Vinicius.
“Meu primeiro natal sem meu filho foi péssimo. Fico imaginando com será o ano novo. Pior ainda! Penso como vai ser fevereiro, mês que ele faria 15 anos. Essa polícia bandida ainda fala que quem atirou no meu filho foi bandido. Foram eles mesmos, os bandidos fardados”, disse Bruna, em conversa com a Ponte. “Eu achei essa intervenção federal uma covardia com a gente, povo da favela. Não funcionou como tinha que funcionar. Eu e meu filho não sabíamos que iríamos ser vítimas da intervenção”, completou Bruna, em seu desabafo.
A revolta da mãe contrasta com a opinião dos militares responsáveis por liderar a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Desde o dia 16 de fevereiro de 2018, os militares assumiram o controle da pasta a pedido do governador Luiz Fernando Pezão (MDB), cabendo ao general Walter Souza Braga Netto o papel de interventor – escolha do presidente Michel Temer (MDB), quem assinou o decreto da intervenção em fevereiro.
“Temos a convicção de que trilhamos um caminho difícil e incerto, mas cumprimos a missão”, definiu Braga Netto, em cerimônia simbólica que decretou o fim da “missão”, com prazo real até o dia 31 de dezembro, a próxima segunda-feira. Para ele, o trabalho “atingiu todos os objetivos propostos”, sem detalhar quais eram as metas.
O Observatório da Intervenção, coordenado pela faculdade Cândido Mendes, divulgou um relatório dos dez meses da intervenção. Entre os números estão 668 operações monitoradas, com 204 mortos nestas ações dos braços armados do Estado, 53 chacinas (um total de 213 motos), 1.203 pessoas mortas no Rio de Janeiro neste período, mais 1.090 feridos e 103 agentes de segurança mortos. Ainda houve aumento expressivo nos tiroteios: de 5.238 de fevereiro a dezembro de 2017 para 8.193 no mesmo período de 2018, volume 56% maior.
No lado dos crimes, os números foram comemorados pelos militares, em especial a queda nos roubos de carga, com recuo de 14%, e nos homicídios dolosos, com recuo de 5,5% comparado com o mesmo período do ano anterior. Entretanto, houve 40% de aumento nas mortes em ações de policiais, com mais de 1,5 mil mortos ao longo do ano no RJ e aumento 3,9% nos roubos comuns, de rua.
Além do Observatório, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro divulgou um relatório do projeto Circuito de Favelas que teve como objetivo analisar a rotina de quase 30 favelas durante a intervenção. Com 500 relatos de moradores, o relatório aponta 30 tipos diferentes de violações de direitos, entre eles até mesmo denúncias de estupros cometidos por policias, casas invadidas e a prisão de inocentes, acusados de contribuírem com as milícias.
De acordo com o ouvidor-geral da Defensoria, Pedro Strozenberg, o objetivo do relatório é contribuir com uma agenda da segurança com maior reconhecimento de direitos e menor letalidade, ao convidar as pessoas e as instituições a conhecer os relatos e intervir por mais direitos, respeito e empatia.
“O Circuito de Favelas por Direitos mostrou um lado silenciado pela qual uma imensa parcela da população vive cotidianamente. Não ter com quem partilhar e não confiar nas instituições é uma dupla vitimização. Você sofre a violação e não tem onde recorrer. Escutar e cobrar são medidas fundamentais”, afirmou Strozenberg.
No curto prazo, o relatório propõe maior integração entre os envolvidos na temática, por meio de reuniões com corregedores e ouvidores das forças de segurança da Defensoria Pública e do Ministério Público do Estado, Militar e Federal. Outra sugestão visa a elaboração e a apresentação de um plano estadual de segurança pública para as instituições do sistema de justiça, da academia e das organizações da sociedade civil. Há ainda proposta para realização de cursos de capacitação para policiais, com defensores e promotores.
‘Piada de mau gosto’ e ‘modelo a não se repetir’
Especialistas consideram os resultados da intervenção como catastróficos, como avaliaram anteriormente. Repelem até usar a palavra “legado” para o que ficará ao governador Wilson Witzel (PSL), eleito em outubro de 2018 e com posse para a próxima semana. Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção, rebate a fala de Braga Netto sobre “missão cumprida”.
“É um discurso baseado no prestígio das forças armadas com a população e de que existe um modelo bélico de combate para a segurança pública. O que verificamos é que os crimes contra a vida, principalmente de mortes causadas por policias, explodiram. Teria vergonha de liderar uma intervenção cuja principal resultado fosse reduzir roubo de carga”, critica a professora da Cândido Mendes.
“É uma vergonha. Atenderam a demanda dos empresários, de proteger cargas e não proteger vidas. Esse é outro efeito da intervenção: o aprofundamento de que a política de segurança é a de proteção dos bens dos ricos e, para isso, pode atirar em cima dos pobres e favelas se necessário. Foram grandes ações em favelas atrás de um caminhão de cigarro ou bebida, muitas vezes usando até helicóptero para atirar”, exemplifica. “Isso que é segurança pública, que militares deixam de exemplo para o Brasil? O modelo não deve ser repetido e não é um bom caminho”, continua Silvia.
O ex-comandante da PM e coronel da reserva Robson Rodrigues concorda que a intervenção não deixa bons frutos para o estado. Para ele, o que se viu foi a concretização de todas as hipóteses citadas em fevereiro, no decreto que liberou a ação dos militares, de que era uma decisão “mais política do que técnica”.
“Não tem legado nenhum, a intervenção foi uma inconsequência, uma piada de mal gosto. Desperdício de tempo, de dinheiro, falta de foco, de visão estratégia e tudo possivelmente a ser dissolvido pelo próximo governo. É justo que próximo governo mude tudo, planeje para quatro anos ou, no máximo, para os próximo oito anos. Me espanta estes resultados. Geralmente, o Exército não costuma errar nestas questões de médio prazo”, analisa.
O ex-comandante destaca a letalidade policial, que “já havia aumentado e é uma preocupação”, apontando que o interventor não foi capaz de reduzir um dos crimes graves que estava mais a sua mão. “Se não quebrar o círculo de violência e repressão de forma inteligente e técnica, vai se investir em violência de médio e longo prazo. Vitimizando os jovens e, também, os policiais”, diz.
“Os mesmos problemas estruturais continuam: corrupção, falta de meios para investigações elucidativas… Sem falar nos crimes em si. Todos estes problemas continuam. Não tem indicador nenhum pra comemorar, não tem nenhum objetivo cumprido. Comprovamos que nada foi feito, é mais do mesmo e rezar para o próximo governo ser eficiente. E o discurso é de que vem coisa pior ainda”, aponta Robson, que destaca o assassinato da vereadora Marielle Franco como exemplo para os problemas na segurança do estado.
“A execução da Marielle põe em evidência uma das fragilidades não tocadas. Todas as mortes são importantes, evidentemente, mas a dela deu mais luz a esse tipo de fragilidade: a falta de meios de se investigar crimes. É um problema estrutural, não adianta chegar como força repressiva se não tiver investimento na investigação”, finaliza.
Seguir na luta
A sensação de insegurança não só se manteve como estava antes da intervenção como aumentou. As vítimas têm como explicar este temor, de acordo com relatos colhidos pela Defensoria Pública do RJ. “Eles [militares] atiram para o alto durante o dia, de madrugada… Não tem tiro com bandido”. “Cismam com tudo, entram em casa e bagunçam tudo”. “Eu agora só vivo tomando [remédio] tarja preta porque não aguento mais. Como a gente vai ficar aqui, com medo a vida toda?”. “As pessoas estão saindo daqui por causa da falta de esperança já que a polícia se aliou com uma das facções e a comunidade não tem nem mais a quem recorrer”, apontam os moradores.
Vítimas como Bruna revivem os momentos de dor e pânico a todo o momento. Para ela, é pior ainda quando há operações policiais. A mãe denuncia ser perseguida por agentes do Estado. “Os policiais querem abrir minha bolsa, me perseguem armados, pegam no meu braço. Eu tenho testemunhas. Eu virei o arquivo vivo do meu filho. Eles querem me apagar, mas não vou desistir de lutar”, declarou Bruna.
Segundo ela, essas ações de tentativas de reprimir a luta não diminuem sua vontade de buscar Justiça e ir para as ruas é irreversível. “Eu não tenho medo deles. Vou continuar fazendo o que eu tenho que fazer, que é denunciar o que eles fazem aqui dentro. Já teve caso de abuso sexual com filha de morador. Eles pedem para as meninas levantarem a blusa para ver o peito delas. Além disso, eles roubam também. Já pegaram R$ 4 mil de um morador que vende roupa aqui”, comentou Bruna.
“Eu nunca pensei que fosse ter meu filho morto este ano pela polícia. A gente espera essas coisas do tráfico, mas a polícia é pior que o tráfico. Meu filho quando foi atingido ainda estava acordado no hospital. Foi lá que ele virou para mim e disse que foi a polícia que atingiu ele. Perguntou para mim: ‘Mãe, mas eles não me viram com roupa de escola?’ Eu estou sofrendo, mas eu vou colocar na parede quem matou meu filho”, acrescentou.
“Dia 31 acaba a intervenção, mas dia 1 vai continuar tendo mortes. Não viu o que o nosso futuro governador Witzel disse? Vai ser só na cabecinha. Esse presidente também eleito é uma decepção. Mas eu vou seguir, estou no caminho certo, vou lutar. A polícia já não presta desde o tempo de Jesus. Esqueceram que quem matou Jesus foi um soldado romano?”, lembrou Bruna, ao fim da entrevista.