Há 11 anos no centro de São Paulo, Ocupação Mauá abriga mais de 200 famílias e virou símbolo da disputa por espaço na cidade em meio à incertezas depois que a prefeitura comprou o imóvel
Em frente à Estação da Luz, em meio ao zigue-zague de passos apressados na Rua Mauá, no centro da capital paulista, uma placa anuncia o cardápio: cuscuz, beiju, bolo e canjica. “Entregamos marmitex”, segue o aviso. Um pouco mais acima e estampado na camiseta de Maria Eunice Araújo, 60 anos, o nome do empreendimento: Cantinho da Nice. “Quando eu vendia gelinho, tinha o sonho de abrir um restaurante, não consegui, mas arrumei esse ‘pontinho’ aqui já faz três anos”, sorri Dona Nice.
Em uma das mesas dispostas na calçada, conversamos por alguns instantes, até que o companheiro dela se aproximou, mostrando uma sacolinha com um isopor e suspira:
“Vou conseguir almoçar só agora.”
“Agora às 16h?”, pergunto.
“É. Emendei o trabalho na feira e vim ajudar aqui”, responde.
Albano José Pereira de Oliveira, 65 anos, é feirante. “Tudo que a gente faz é pensando lá na frente. Acho que já fizemos o possível, os filhos estão criados, mas ainda preciso acertar minha aposentadoria, meus papéis na prefeitura por causa da feira pra voltar”, pondera. A companheira divide com ele o desejo de regressar à Bahia. “Eu ainda volto. As condições estão muito difíceis. O custo está muito alto. Lá para dezembro, janeiro, tô querendo ir embora”.
Decidida, há 19 anos, Dona Nice resolveu sair sozinha de Itabuna, cidade a 400 km de Salvador, para tentar a vida em São Paulo. Do emprego de ascensorista de elevador na sua cidade no qual ganhava R$ 120 por mês, passou a receber sete vezes mais como cuidadora de idosos na capital paulista. Depois de quatro meses na cidade, mandou dinheiro para buscar o marido, Seu Albano, e os filhos, quando conseguiu alugar um apartamento no Bom Retiro. Quando o dinheiro passou a ser insuficiente para esse custo, foi para a ocupação do Edifício Mauá, a aproximadamente 15 passos do “cantinho”, onde o casal mora há nove anos. Dois filhos do casal estão em Sorocaba, no interior, e outros dois estão na cidade natal.
“Mas agora eu já estou de idade, não quero mais trabalhar em algo que eu tenha que acordar cedo todo o dia”, ela ri. O sonho, no entanto, ainda está longe da realidade, já que Dona Nice costuma trabalhar das 6h até 21h, até aos finais de semana.
Enquanto está em São Paulo, Dona Nice mandou parte do dinheiro para construir uma casa num terreno que tem em Itabuna desde criança e é onde pretende voltar para morar. “Eu quero abrir uma lojinha de roupa lá, comprar um carrinho para passear, lá tem umas praias bonitas, a cidade cresceu… Itabuna fica perto da fazenda do Jorge Amado”, planeja.
Seu Albano e Dona Nice formam uma das 237 famílias que vivem na Ocupação Mauá, formada há 11 anos no edifício onde, um dia, foi o Hotel Santos Dumont. O barulho da porta automática é a trilha sonora diária do Seu Nelson e outros que se revezam para controlar o acesso ao prédio e garantir a segurança dos moradores. Há quem pare no balcão para procurar correspondências, uns se identificam pedindo para que o portão seja destrancado, outros tantos chegam com visitas.
“Seu Nelson, ele vai subir comigo lá no 5º andar”, disse uma moradora de cerca de 20 anos acompanhada de um rapaz que já tirava o RG do bolso.
“Boa tarde, filho. Ele vai ficar até as 22h?”
“Vai, sim.”
“Pode subir então, filha.”
O senhor de 57 anos entrega o documento após analisá-lo e aperta o botão que destrava a porta. Nelson da Cruz Souza já foi porteiro e segurança de condomínio antes de virar coordenador do MMRC (Movimento de Moradia Região Centro), um dos três movimentos de moradia responsáveis pela ocupação na Rua Mauá, 340. “Ou a gente come ou paga aluguel”, enfatiza.
Naquela tarde, ele estava cobrindo um período em que uma colega teve que se ausentar. “Eu já conheço esses meninos, mas a gente tem que ficar sempre alerta no controle de acesso”, conta. Quando aparecem pessoas desconhecidas, ele costuma interfonar para algum membro da diretoria do movimento, dentro da ocupação, para confirmar visitas.
No prédio não há elevador funcionando e o único caminho para os apartamentos é pelas escadas. A cada degrau mais próximo do 6º andar, é possível ouvir algumas crianças rindo e brincando de pega-pega. É uma delas, de sete anos, cabelo castanho, segurando uma bola na mão, que me leva até o número 608, onde ela e a mãe vivem.
Daniele Conceição Viana abre a porta com um sorriso. Diz que tem conseguido dormir melhor em comparação ao período que fomos visitá-la, no ano passado, quando o Tribunal de Justiça do Estado suspendeu a reintegração de posse marcada para o dia 22 de outubro. “Não cheguei a falar exatamente o que estava acontecendo para ele. Meu filho ama aqui. Não tomei remédio para dormir, não precisei. Só que ia trabalhar com sono”, lembra. Agora, a Prefeitura de São Paulo está em vias de concluir o processo de desapropriação do imóvel.
Em dezembro do ano passado, a Secretaria Municipal de Habitação comprou o edifício por R$ 20,1 milhões, após quatro anos de disputa judicial por ausência de acordo sobre o valor de venda. O processo foi aberto em 2014, um ano depois de o então prefeito Fernando Haddad (PT) decretar que o distrito onde o prédio estava era de interesse social, ou seja, os imóveis particulares na região deveriam ser desapropriados para implantação de programa habitacional.
Em meio à disputas tensas, o edifício Mauá teve também seus quinze minutos de fama em duas oportunidades: a primeira em maio de 2013, quando o local foi escolhido pelo rapper Emicida para dar vida ao clipe de “Crisântemo”. Na época, o artista exibiu com exclusividade o trabalho para os moradores da ocupação. Em agosto do mesmo ano, foi a vez dos Racionais Mc’s gravar o clipe de “Mil faces de um homem leal (Marighella)”. Na época, o rapper Mano Brown explicou em entrevista à TV Folha o motivo da escolha do espaço. “O Marighella falava de todas essas coisas, de reforma agrária, de justiça de social. Aqui é como se fosse a unha encravada da cidade. Então o problema é que eles não tem sensibilidade para resolver como deveria”, declarou.
‘Minha vida está aqui’
Há oito anos na ocupação, Daniele, 29, é uma das moradoras mais antigas. A mais velha de oito filhos saiu de Santa Quitéria do Maranhão, cidade que fica a 350 km de São Luís, para São Paulo buscando trabalho junto com o primeiro marido. “Um amigo dele disse que aqui é mais fácil de achar emprego. Ficamos um tempo morando com ele, depois alugamos um apartamento na Mooca, na zona leste da capital. Quando meu filho nasceu, tive que parar de trabalhar como vendedora para cuidar do Nicolas”, conta. Foi nesse período que a situação começou a apertar, segundo ela, já que dos R$ 900 que o companheiro ganhava fazendo entregas para uma distribuidora, R$ 550 iam pro aluguel. “Estávamos há três meses e meio morando lá e o aluguel já estava atrasando”, lembra.
Dois irmãos dela também seguiram o mesmo destino. Foi, aliás, um deles que levou Daniele até a ocupação pela primeira vez quando conheceu o movimento, em 2010, mas não permaneceu no edifício por muito tempo. O outro irmão continua morando no prédio, no 3º andar. Eles são o único elo que Daniele mantém com as origens, já que nunca mais voltou à sua cidade. “Eu sinto muita falta do carinho, principalmente do meu pai porque não posso mais vê-lo. Ele foi assassinado quando foi cobrar uma dívida. Na época, o Nicolas ia fazer dois aninhos”, emociona-se.
A perda e o sentimento de injustiça têm alimentado um sonho que ela carrega desde criança: estudar Direito. “Tentei quatro vezes fazer o 1º ano do Ensino Médio, mas sempre parava. Quero voltar a estudar. Meu pai sempre trabalhou na roça, não sabia ler, acho que só sabia assinar o nome, mas ele queria que a gente se formasse, tivesse uma profissão, queria que os filhos fossem doutor. Pra médico não daria certo porque se eu vejo sangue já mudo de cor”, diverte-se.
Por um pouco mais de um salário mínimo, Daniele trabalha como auxiliar de limpeza na Rua da Glória, onde funcionam algumas seções do Tribunal de Justiça. Desde quando se mudou para a ocupação e ao mesmo tempo se separou do marido, que voltou pro Maranhão, se diz como “mãe e pai” do filho, Nicolas. Para a cidade natal, ela só pensa em viajar para rever a mãe e os irmãos, a passeio. “Às vezes você se sente sozinha, pensa em voltar, mas eu não penso em morar na minha cidade de novo. Eu comecei a trabalhar como babá aos 16 anos, sei que as condições lá não são boas. Meu filho nasceu aqui em São Paulo, minha vida está aqui agora. Sei que essa luta não é em vão e que eu vou conseguir meu apartamento”, diz, esperançosa.
‘Déficit de cidade’
O déficit habitacional na cidade de São Paulo é de 360 mil moradias. Para a engenheira Talita Gonsales, pesquisadora do Observatório das Remoções e do LabJUTA (Laboratório Justiça Territorial) da UFABC (Universidade Federal do ABC), é preciso equacionar a demanda de moradia no centro da capital paulista com a questão dos prédios abandonados na região que não estão cumprindo sua função social.
“Quando a gente pensa em déficit habitacional, sempre o número acaba reduzindo essa discussão porque na realidade a ideia do déficit se dá na ideia de construção de coisas novas e não do aproveitamento de estruturas antigas que podem ser readequadas. Além disso, de locais que precisam ser reurbanizados, outros que envolvem regularização fundiária, é muito complexo. Então, a gente tem déficit de casa, mas também tem déficit de cidade”, explica.
A legislação prevê alguns instrumentos que precisam ser regularizados nas cidades, ficando a cargo da prefeitura garantir essa função, prevista na Constituição.
Em 2014, com a nova edição do Plano Diretor Estratégico, a regularização da função social da propriedade também recebeu modificações. Os três instrumentos previstos são:
- PEUC (Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios): realiza as notificações dos imóveis ociosos aos proprietários, dando o prazo de um ano para que ele apresente um destino para aquela propriedade. No caso de imóveis não utilizados ou subutilizados, que são terrenos, o prazo é um ano para apresentar projeto, dois para iniciar as obras e cinco para concluí-las.
- Caso o dono não respeite esses prazos, é iniciada a cobrança do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) Progressivo no tempo.
- Após cinco anos de cobrança do IPTU Progressivo, o poder público pode desapropriar o imóvel.
“Só na prefeitura regional da Sé tem 852 imóveis que já foram notificados e 742 que estão no processo de IPTU progressivo. Para além disso, você tem a questão da dívida. Muitos dos prédios, como a Mauá, tinham dívidas milionárias com a Prefeitura e isso aí também pode abater no valor”, aponta Talita Gonsales.
No entanto, a pesquisadora argumenta que essa legislação não vem sendo aplicada e, para além disso, a disputa pelo direito à propriedade no âmbito judicial acaba sendo um entrave para a aplicação dessa política. “É uma disputa desigual, porque são direitos concorrentes: o da propriedade e o da função social da propriedade. E quando isso vai para o Judiciário, a função social da propriedade sempre perde”.
De acordo com levantamento do Observatório das Remoções, de abril de 2017 a abril deste ano, 14,4 mil famílias foram removidas de ocupações de terrenos e edifícios, sendo que 75% motivados por ações de reintegração de posse (os proprietários entram na Justiça para requerer a posse). Só no ano de 2017, foram 5,5 mil famílias, com 95% das motivações por reintegração de posse. Os dados foram estimados com base em um canal de denúncias, acompanhamento de notícias, contatos com movimentos e processos judiciais e abrangem a capital e a região metropolitana.
“Comparando com os primeiros dados da pesquisa, de 2010, a gente percebeu que aumentou o número de reintegrações na periferia porque também aumentou o número de ocupações por lá. As remoções por intervenção do poder público diminuíram porque não tem dinheiro para fazer investimento público. Junto com a questão do corte dos gastos públicos também acontece uma crise da moradia que está escancarada após o desabamento do Edifício Wilton Paes”, analisa.
Desde que o Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo Paissandu, centro da capital, desabou, no início de maio, a Prefeitura de São Paulo iniciou uma série de vistorias a prédios ocupados na cidade. O Edifício Mauá foi um deles, no dia 16/5, com a presença da Defesa Civil e representantes acadêmicos e da própria ocupação a fim de avaliar se a estrutura do prédio era segura para os moradores. O poder público estima que há 70 imóveis na região central com mais de 4 mil famílias sem-teto. Os resultados dessas devem sair dentro de 45 dias.
Lutar por moradia é crime?
O desabamento do edifício no Paissandu colocou em xeque a legitimidade de alguns movimentos ao mesmo tempo em que levantou a discussão sobre a segurança desses locais. A pesquisadora Talita Gonsales critica a tentativa de criminalizar os movimentos de moradia. “Estamos falando dos prédios antigos da cidade de São Paulo, que não são apenas os ocupados. As normas dos bombeiros, da Defesa Civil, que falam sobre incêndios e especificações técnicas, são posteriores à construção dos prédios, ou seja, que foram construídos há 80, 60 anos em que essa regulamentação ainda não existia”, explica.
De acordo com levantamento da Folha de S. Paulo, com base nos cadastros do IPTU 2017, dos 53 mil imóveis na capital, 24,7 mil foram construídos antes de 1974, quando houve mudanças nas normas de prevenção a incêndios.
Segundo a pesquisadora, esse cenário em torno das ocupações demonstra a ausência de uma política habitacional efetiva somada à dependência de financiamento pelo Governo Federal. “Temos um Plano Municipal de Habitação que foi discutido e construído com a sociedade, mas que está engavetado na Câmara Municipal desde 2016. O corte de recursos do governo federal influencia muito porque em termos de unidades habitacionais, a única resposta que a prefeitura tem é a PPP [parceria com o governo do Estado, na região central, para a construção de 3,8 mil unidades habitacionais], o que é inconcebível”, critica.
Para Gonsales, a utilização da PPP (Parceria Público Privada) para a construção de moradia no centro não vai atender a população mais afetada, já que a faixa de renda determinada para sortear as unidades é de um a dez salários mínimos. Além disso, o projeto acaba gerando remoções de famílias que já moram na região para que os terrenos sejam utilizados para novas construções, envolvendo outras intervenções, como o do Hospital Pérola Byington.
Em janeiro deste ano, a Prefeitura também lançou sua própria PPP da Habitação, que prevê a construção de moradias inicialmente em regiões periféricas: no Ipiranga, na região de Heliópolis, Mooca, Vila Maria/Vila Guilherme, Santo Amaro, Guaianases, Lapa e Casa Verde/Cachoeirinha.
Para Talita Gonsales, criar alternativas que envolvam a participação popular gera soluções melhores para a cidade. Ela cita a modalidade Entidades do programa Minha Casa, Minha Vida, criado em 2009, por causa da pressão de movimentos sociais para promoverem seus projetos de habitação em áreas ocupadas. “O programa Minha Casa, Minha Vida foi pensado para responder uma política econômica e não como um programa habitacional porque a maior parte fica a cargo das construtoras, sem pensar na localização dessas construções. O Entidades, infelizmente, é uma parcela muito pequena, mas que proporciona moradias mais bem localizadas”.
Um exemplo na região central, para a pesquisadora, é a reforma do prédio da Ocupação Dandara, na Avenida Ipiranga. No entanto, enfatiza que o retrofit (reforma para adaptar prédios antigos) acaba não sendo uma primeira opção. “Sou engenheira de formação, ambiental e urbana, porém, nas escolas de arquitetura e de engenharia civil não se tem um aprendizado sobre reformas. É sempre construir o novo. Isso também está ligado com a história do Brasil, as nossas cidades são muito recentes. Isso é uma das dificuldades. A gente erra muito em reforma porque a gente não sabe fazer reforma. E gasta-se mais”.
Já o presidente do SASP (Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo), Maurílio Chiaretti, aponta que houve avanços no Plano Diretor para garantir maior distribuição de moradia para classes de baixa renda e de qualificação para os espaços, mas os instrumentos têm sido “insuficientes”. “O que afasta as pessoas do lugar onde tem infraestrutura é o preço da terra, é o preço dos imóveis. Então, enquanto a terra for tratada como mercadoria, não for regularizada, a gente vai ter ela sempre se valorizando e o salário nunca vai conseguir acompanhar essa valorização, que acaba gerando ocupações”, destaca.
À Ponte, a Secretaria Nacional de Habitação, que é ligada ao Ministério das Cidades, informou pela modalidade Entidades, que a meta para 2018 é de 72.396 unidades contratadas, com investimento de quase R$ 1,8 bilhão. Além disso, afirma que existe a preocupação de reutilizar ou reformar imóveis antigos.
Já a Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura de São Paulo explicou que, até 29 de maio, “1.385 imóveis foram notificados e a Coordenadoria de Controle da Função Social da Propriedade (CEPEUC) continua a cadastrar e analisar novos casos” e que “destes, 286 imóveis já receberam a cobrança do IPTU Progressivo e, aproximadamente, 600 estão em análise para o lançamento ainda neste ano”. Disse, ainda, que mais de R$ 30 milhões foram arrecadados pela Secretaria Municipal da Fazenda com base na cobrança desse imposto progressivo.
‘Ocupação não é bagunça’
Com os três filhos a tiracolo, Solange e Florentino tomaram a difícil decisão de deixar a vida em Montes Claros, Minas Gerais, para trás e tentar “o sonho feliz de cidade” em Sampa, como cantou Caetano Veloso.
“Com o falecimento da minha sogra, meus cunhados estavam aqui e deram até cinco meses para gente ficar com eles. A gente vendeu as coisas que tinha em casa para comprar a passagem, com os filhos pequenos, e veio sem garantia nenhuma, só com a coragem”, lembra Florentino Dias de Brito, 49 anos.
Com três meses na cidade, Florentino conseguiu um serviço como ajudante de entrega e quando o casal procurava um espaço para alugar, acabou entrando em contato com militantes do movimento. Não demorou muito, passaram a frequentar as reuniões de formação, os chamados grupos de base dos movimentos que discutem a questão da moradia, e, naturalmente, a família foi morar na ocupação.
“Quando a gente chegou isso aqui era tudo lixo”, aponta a empregada doméstica Solange Barbosa dos Santos, 48 anos. Para chamar o espaço de lar, ela conta que ela e o companheiro revestiram o chão do quarto com cerâmica, instalaram uma pia e pintaram as paredes. O banheiro no andar é o espaço que mais se orgulham de terem reformado para uso próprio. Em cima, um guarda-roupa divide o quarto do casal e do filho mais novo. “Tinha muito rato, inseto, pulga. No começo [da mudança], a gente colocou um colchão no chão e os meus meninos acordavam picados de inseto”, completa Florentino.
O único filho que ainda mora com eles é o caçula de 15 anos. Os mais velhos, de 23 e o outro de 22, casaram e foram tentar morar com os sogros ou alugar um espaço em local mais distante do centro por conta do valor. Na mesma semana em que voltamos a reencontrar a família, o irmão de Solange tinha acabado de chegar de Minas Gerais e mudar para outra ocupação na Rua Martins Fontes, também na região central de São Paulo. “O problema aqui não é trabalho, porque assim que ele chegou conseguiu arrumar um serviço. No centro tem tudo. O difícil mesmo é morar. Um quarto desse aqui está R$ 800 e nem é tão grande”, destaca Solange.
Com cerca de mil pessoas que se dividem em aproximadamente 33 espaços, devidamente separados e organizados, os moradores da ocupação estão submetidos a regras de convivência, divisão de tarefas e mutirões de limpeza. “Ocupação não é bagunça. Aqui não pode casal tomar banho junto porque os banheiros são nos corredores. Não pode sair de toalha, sem camisa, não pode beber no corredor, a não ser em dia de festa. Se tem festa no andar, avisou a coordenação, é tranquilo. Mas fora isso, você compra sua bebida, traz na sacolinha e bebe na sua casa. São as regras daqui e eu acho certo”, explica Florentino.
Passados 11 anos e mesmo tropeçando em uma ou outra dificuldade, o casal não se arrepende nem por um instante de saudade. “Quando chegava em Montes Claros para visitar, a gente já ficava doido querendo voltar para São Paulo porque a situação lá não muda, é muito difícil”, desabafa Solange, que atualmente, trabalha em uma casa de família no bairro do Cambuci e recebe R$ 700 por mês. O salário tem sido o sustento da família, já que Florentino está afastado do trabalho de ajudante de caminhoneiro por problemas de saúde. “Na perícia para tentar a aposentadoria, o médico me liberou para voltar a trabalhar. O médico da empresa também, mas com algumas limitações por causa da artrose nos joelhos. Só que não estão me dando retorno”, lamenta. Na geladeira, o bilhete em destaque são das doses dos remédios que toma diariamente, sendo um deles para depressão.
Apesar do desânimo, o casal espera que a situação do edifício seja regularizada. “Se a Prefeitura reformar aqui para gente morar, vai ser um sonho!”, se entusiasma Solange.
Centro morto-vivo
O sonho de Solange e de outros moradores foi desenhado pela primeira vez no papel em 2011, quando os movimentos coordenadores da ocupação encomendaram um estudo de viabilidade do prédio para transformá-lo, de fato, em um condomínio residencial de interesse social. A avaliação prevê a adaptação do edifício para 160 unidades habitacionais, que foi protocolado no Ministério das Cidades para que o projeto seja analisado pela modalidade Entidades do programa “Minha Casa, Minha Vida” para receber financiamento.
De acordo com o arquiteto Waldir Cesar Ribeiro, responsável pelo estudo, o projeto está parado, por causa da demora na conclusão do processo de desapropriação. “Além disso, a destinação que a Prefeitura dará para o imóvel é incerta”.
Naquele mesmo ano, outro destino para o local estava ganhando forma. Dentro do Projeto Nova Luz havia a previsão de transformar a Quadra 19, exatamente onde está o Edifício Mauá, em um centro de entretenimento com cinema, teatro, lojas e escritórios por conta da proximidade com estações de trem e metrô, além da Sala São Paulo e a Pinacoteca do Estado, “configurando destino-âncora por excelência que sustenta o eixo cultural”, descrevia a última versão do projeto urbanístico, de julho de 2011.
No entanto, com a disputa judicial que se desenrolou até janeiro de 2013, por conta de uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública, a proposta acabou engavetada no início da gestão Fernando Haddad (2013-2016), depois que o Tribunal de Justiça decidiu pela revisão do projeto com participação social.
O Conselho Gestor responsável por uma das ZEIS (Zona de Interesse Social) na época apontava que a prefeitura não seguia as previsões legais no que diz respeito à participação popular para discutir, definir e aprovar o que poderia ser realizado nas áreas alvo do projeto. A principal questão envolvida era o modelo de concessão urbanística, sancionado em lei, em 2009, pelo então prefeito Gilberto Kassab (2006-2008 e 2009-2012), que previa a desapropriação de imóveis para que empresas pudessem explorá-los economicamente e realizarem intervenções urbanas mediante licitação. A contrapartida seria a realização de obras públicas. A modalidade foi lançada em 2005, pela gestão José Serra (2005-2006), com o argumento de reurbanizar, revitalizar e requalificar da área conhecida como Cracolândia.
Para a engenheira e pesquisadora do Observatório das Remoções e do LabJUTA (Laboratório Justiça Territorial) da UFABC, Talita Gonsales, o local se tornou um território de disputa intermediado, especialmente, pela ação do poder público para dar “uma nova cara” para o chamado “Centro Velho”. Ao longo da década de 1990, o centro foi passando por um processo de desertificação. “A partir de um centro abandonado surgem vários projetos de revitalização, que é um termo horroroso porque considera como se lá não tivesse vida sendo que tem gente morando ali, e que já colocam os preços dos terrenos para cima”, explica Talita.
Em maio de 2017, após a violenta operação para retirar dependentes químicos da região da Luz, a Prefeitura iniciou um projeto urbanístico considerado similar ao Nova Luz, que acabou sendo alvo de intervenção do Ministério Público por conta das demolições sem formação de Conselho Gestor. No período, a Prefeitura também anunciou a doação de terrenos para a construção de 440 moradias pelo Governo do Estado via PPP (parceria público-privada), que desde o lançamento, em 2014, pretende entregar mais de 3 mil unidades habitacionais para pessoas com renda de um a dez salários mínimos. Em abril, 200 famílias foram removidas da Quadra 36 para erguer a sede do Hospital Pérola Byington, que vive um embate judicial com a administração estadual desde 2013.
“A Cracolândia é um lugar onde ninguém gostaria de morar porque teria que lidar com o fluxo [de dependentes químicos], mas quando você tem uma série de intervenções, como o hospital, a PPP da Habitação, os proprietários da região, como a Porto Seguro, que têm vários terrenos por ali, tem seus imóveis valorizados. É mais caro morar num cortiço no centro do que na região de Pinheiros, na zona oeste, se for considerar o preço do metro quadrado”, aponta a engenheira e pesquisadora Talita Gonsales.
De acordo com o levantamento realizado pelo LabCidade em junho de 2017 com base nos cadastros do IPTU de 2016, a Porto Seguro tem 47 imóveis na região e é a terceira maior contribuinte do imposto por área de terreno, atrás apenas da União e do Estado de São Paulo. É também a maior contribuinte por área construída.
“Por isso os movimentos de moradia acabam reivindicando muito essa pauta no centro de São Paulo, porque há muitos anos quem mora ali é uma população de baixa renda”, destaca a pesquisadora.
Território como identidade
Quando Janete de Fátima Andrade, 56 anos, fala de onde veio, não é a cidade de Oucaçu, no interior do estado, quase na divisa com o Paraná, que ela destaca. “Eu sou do centro”, afirma. Desde 1972, quando veio com os pais para a capital paulista, ela lembra do apartamento em que morava de aluguel com a família no Bom Retiro, onde a mãe trabalhava como costureira e onde estudou. “Hoje é a Casa do Povo [centro cultural fruto de uma ocupação por movimentos e coletivos]. Era um supletivo israelita. E eu fiz o segundo grau ali”, lembra. O pai conseguiu um emprego como metalúrgico, na Barra Funda, bairro próximo, na zona oeste.
Foi durante a separação do primeiro casamento, no entanto, que viu a situação apertar quando ficou sozinha com os quatro filhos e decidiu ir para o que chama de “vida errada”. Passou a ter nas drogas a fonte de renda. “Vivíamos uma vida de luxo, ostentação. Viajávamos no fim do ano, levava família toda, ficava nos melhores hotéis”, lembra. Durante o período, chegou a ter um outro relacionamento e mais dois filhos. “Estava morando na praia em uma casa com piscina quando fui presa e perdi tudo: o casamento, a casa e o principal, a minha família”, conta.
Em 2011, Janete foi condenada a cinco anos de prisão por tráfico de drogas, dos quais três anos e sete meses cumpriu em regime fechado na Penitenciária de Tremembé II. Foi nesse período que o vínculo familiar foi se perdendo. “A cadeia masculina tem uma fila enorme de visita. É meio dia e ainda não entrou todo mundo. Na feminina, você conta na mão. Dá 8h30, não tem mais ninguém na fila. Quando chega o final de semana, a pessoa pensa: ‘meu marido vem, traz meu filho’. Passa um final de semana, não traz. Passa outro, também não. Até você perceber que não tem mais marido, filho só tem quando sair”.
Quando foi para o semiaberto, em 2015, Janete conheceu o movimento de moradia. “Me lembro que logo que comecei a participar, aconteceu uma situação de violência doméstica na ocupação. E os coordenadores intervêm quando há esse tipo de problema. Eu ajudei a resolver a questão”. Para ela, foi um voto de confiança. “Até aquele momento, eu nunca tinha entrado em ocupação. Então eu conheci a Ivaneti [Araújo, uma das coordenadoras-gerais do MMLJ (Movimento de Moradia na Luta por Justiça)]”, conta.
Janete abriu o jogo para a nova amiga e disse que quando terminasse de cumprir a pena e saísse do cárcere, não teria para onde ir. “Assim que eu saí, fiquei um mês na ocupação da Prestes Maia, só com um colchão num quartinho. Depois fui para a Mauá, onde eu tô reestruturando a minha vida”, ela sorri.
Hoje Janete faz parte da coordenação geral da ocupação pelo MMLJ, um dos três movimentos responsáveis pela ocupação, que é organizada em seis andares. Em cada um deles, há um responsável que atua como “mediador de conflito”. Eleita em assembleia, Janete chegou a ocupar esse cargo e se dedicava a resolver questões menores. Caso o problema seja mais grave, como um caso de violência doméstica, por exemplo, é levado para a coordenação geral da ocupação.
Os moradores pagam uma contribuição de R$ 200,00 cuja finalidade é a manutenção do prédio. Há casos de isenção, como os dos coordenadores, já que esse trabalho é considerado voluntário. Algumas famílias podem não conseguir arcar com o valor, mas são incentivadas a contribuir assim que conseguirem se estabilizar.
Janete também trabalha como educadora social numa organização de apoio à famílias de crianças desaparecidas e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, chamado Mães da Sé. Ela mora com o marido, de quem se reaproximou depois que saiu da penitenciária, e que virou porteiro do edifício, e a filha mais nova de 12 anos no 5º andar do prédio. Na semana em que fomos revisitá-la, o irmão que morava no Bom Retiro se mudou para a ocupação porque não estava conseguindo pagar o aluguel de R$ 800,00.
“Com a minha filha eu estou fazendo diferente, porque a gente acaba se tornando um espelho pra ela”, reflete. “Meus outros filhos estão casados, morando longe, dois deles acabaram sendo presos porque a família se desestruturou e eu sinto que falhei na educação deles porque não os ensinei a lutar pelas coisas, por causa do dinheiro fácil da vida errada que a gente tinha. Hoje em dia, eles não ligam nem para dar um ‘feliz Dia das Mães’”, emociona-se.
Para ela, o trabalho social que realiza, tanto na ocupação quanto na Sé, é motivo de orgulho e o grande responsável pela certeza de pertencimento que ela carrega com relação a região central da cidade. “Hoje passo pela Guarda Civil Metropolitana, eles me dão bom dia, eu respondo sem medo de ser parada, de ser revistada. Dou bom dia de cabeça erguida. ‘Você faz o quê?’, eles perguntam. Respondo: ‘Sou coordenadora aqui da comunidade Mauá’. Ou mostro o crachá das Mães da Sé, do trabalho com menores. É gratificante. Tem muitas pessoas que conheci dentro da prisão e mantenho contato, inclusive uma que eu trouxe para cá”.
Mão amiga
Assim como Janete foi acolhida por Ivaneti, ao sair da penitenciária, a coordenadora também não deixou de estender a mão à “comadre”, como se refere à Fabrícia Aparecida Tozzi Correa, 35 anos. Em agosto do ano passado, após cumprir sete anos de uma pena de dez, Fabrícia deixou o CPP (Centro de Progressão Penitenciária) de São Miguel Paulista, na zona leste da capital, e passou a ter a liberdade assistida.
“A gente já se conhecia antes de ser presa. E como eu, com a possibilidade de sair da prisão chegando, ela também não tinha para onde ir. Foi quando eu disse ‘vem para cá porque na rua você não vai ficar’”, lembra Janete.
Aos 21 anos, Fabrícia deixou o Paraná após se separar do pai do primeiro filho, com quem havia se casado aos 14. Em Osasco, na Grande São Paulo, cobria folga de outras funcionárias como camareira, mas o valor não dava para pagar o aluguel de R$ 200 e as outras despesas. “Foi quando eu comecei a me envolver no crime. Tava passando muita dificuldade. Abrir um armário e não ter uma bolacha, não ter um leite. E ele [o filho] era pequenininho, tomava leite, usava fralda”, conta.
Foi por meio de uma conhecida que passou a fazer o trabalho de “mula”, transportando entorpecentes. “Eu pensava ‘ah, ela vai me dar R$ 200. Com R$ 100 eu adianto o aluguel e com os outros R$ 100 eu faço compras no mercado’. Só que ela me deu R$ 500. Em um dia eu ganhei o que eu não ganhava num mês”, prossegue.
Depois disso, ela passou a ser envolver no crime mais ainda quando conheceu o pai da filha mais nova, que vai completar oito anos. “Ele foi preso e eu fiquei como braço direito. Aí a polícia chegou e deu no que deu: uma sentença de dez anos e oito meses por tráfico de drogas”, em 2011.
Fabrícia ficou seis anos no regime fechado e um ano no semiaberto. A filha mais nova ficou com a madrinha, no centro de São Paulo, e o menino, hoje com 14 anos, ficou morando com a avó dela no Paraná. Enquanto esteve presa, chegou a tentar a suicídio nos primeiros meses em que estava no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Franco da Rocha, pela “pressão de uma cela superlotada com 30 mulheres, sendo que deveria ter 16, estava com o psicológico super abalado, tomava remédio”. Chegou a ser transferida para a Penitenciária de Santana, onde se adaptou melhor, começou a trabalhar lá dentro e estudava, e no regime semiaberto, em São Miguel Paulista.
Fabrícia morou três meses na ocupação do Edifício Mauá. Quando fomos visitá-la, em maio, ela estava trabalhando como recepcionista em um hotel próximo ao prédio. Nesse dia, ela estava voltando de São Carlos, no interior do estado, com os filhos, onde foi rever a mãe após nove anos de distância. “Acabei conseguindo alugar um apartamento de dois cômodos em Itapevi [na Grande São Paulo] por R$ 430, porque aqui no centro você não encontra nada por esse valor”, conta.
Mais animada, ela esta vivendo com o filho e o companheiro que conheceu durante o regime semiaberto, enquanto tenta, aos poucos, reconquistar a filha, que foi separada dela com apenas um ano por causa da prisão e ainda hoje vive com a madrinha. O menino está passando por acompanhamento psicológico, já que, durante a ausência da mãe, acabou repetindo de série duas vezes na escola. “Ele teve um bloqueio porque a gente era muito apegado. Mas agora, às vezes eu chego e ele deixa bilhetinho, falando que me ama, que eu sou a vida dele. Isso me motiva a trabalhar, a evoluir”, comemora.
A conta não fecha
O período que Fabrícia esteve na Mauá marcou o ápice do imbróglio judicial que envolvia o processo de desapropriação do prédio, já que após quatro anos, e com a troca de gestão, a Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) ainda não havia entrado em acordo com os herdeiros do imóvel. Consequentemente, o processo de reintegração de posse também estava aberto.
Em março de 2014, a Cohab solicitava a imissão provisória da posse em caráter de urgência, ou seja, a transferência da posse do imóvel, e depositou em juízo R$ 11,2 milhões, conforme consulta em 31/12/2013 do valor venal de referência – que é uma segunda tabela, que alguns municípios têm, a respeito do valor de venda dos imóveis segundo critérios em leis, para fins de cálculo de um imposto específico, como o ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis).
De um lado, a Cohab aponta que o valor é justo, tendo em vista a situação de ociosidade e abandono do imóvel para que ele cumpra sua função social, ou seja, que atenda aos interesses da população que vive na região, o que é previsto na Constituição Federal e é regularizado pelo Plano Diretor.
De outro, a defesa dos herdeiros dos proprietários apontava que o preço era “irrisório em relação à realidade local imobiliária”, ou seja, estaria abaixo do valor de mercado tendo em vista as intervenções urbanas pelo poder público na região central. Além disso, aponta que a consulta do valor venal de referência para 17/04/2014 equivalia a R$ 17,6 milhões.
A pedido da defesa, o Tribunal de Justiça determinou que um perito judicial avaliasse o imóvel para determinar o preço equivalente. Os laudos feitos pela perícia são o principal objeto de questionamento de um relatório parcial feito pelo SASP (Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo) e obtido pela Ponte.
Para o presidente do SASP, Maurílio Chiaretti, o processo judicial supervalorizou o imóvel. “A avaliação colocava como se o imóvel estivesse em boas condições antes da ocupação e na verdade não estava, estava abandonado”, critica. “O prédio estava cheio de lixo, cheio de insetos, ratos, com o elevador quebrado, não tinha nenhuma fiação funcionando, nada de hidráulico funcionando também. Os moradores adaptaram o imóvel, limparam, pintaram. No entanto, a avaliação aceita pelo juiz colocava o imóvel com o valor acima do que de fato ele valia na hora da ocupação”, prossegue.
Cerca de três laudos foram realizados. O primeiro estimava R$ 18,7 milhões e o último de R$ 24,4 milhões. O perito apontava que a degradação do imóvel era resultado da depredação dos ocupantes, que não seria possível determinar as condições anteriores por causa disso.
O presidente do SASP indica ainda que os documentos não levaram em consideração a dívida estimada em R$ 5,4 milhões de IPTU, devidos desde 1974, e que pelo prédio estar ocupado, haveria uma redução do valor do imóvel, por ser um fator “depreciativo” no valor de mercado, conforme as normas do Cajufa (Centro de Apoio aos Juízes das Varas da Fazenda Pública da Capital), e que os proprietários não apresentaram provas das condições anteriores do edifício.
Chiaretti sustenta também que a metodologia de avaliação é muito subjetiva e que depende do avaliador considerar ou não certos fatores. “Com base nas condições do imóvel, das dívidas, do cuidado dos moradores, a gente estimaria de R$ 10 milhões a R$ 15 milhões, não passaria disso”.
Diante da falta de negociação, a Cohab chegou a pedir a devolução do valor depositado para desistir do processo, em novembro de 2016.
Sob nova gestão, a secretaria municipal de Habitação se reuniu com os herdeiros dos proprietários e ofereceu R$ 18 milhões em setembro do ano passado. No mês seguinte, os ocupantes chegaram a acampar em frente ao Tribunal de Justiça do Estado por conta de uma liminar de reintegração que havia sido expedida.
O acordo foi fechado por R$ 20,1 milhões, em novembro. Os R$ 11 milhões depositados há quatro anos foram reajustados para R$ 14,6 milhões e depositados mais R$ 5,4 milhões por meio do FUDURB (Fundo de Desenvolvimento Urbano). Até janeiro deste ano, os proprietários quitaram em dívidas R$ 5,09 milhões.
À reportagem, a prefeitura informou que a quitação do IPTU foi a condição para que a proposta fosse efetivada e que o valor pago pelo imóvel “é aproximadamente 20% menor do definido pelo laudo do perito judicial. Esta gestão tem utilizado como critério para desapropriações na região central que, a soma dos valores de desapropriação e reforma, não podem ultrapassar os valores médios de produção de unidades pela Secretaria Municipal de Habitação e Cohab-Sp”.
Futuro incerto
“Escravos de Jó, jogavam caxangá. Tira, põe, deixa ficar”. Diz a antiga cantiga de roda popular de autoria desconhecida, que faz alusão ao personagem bíblico do antigo testamento que tinha uma paciência sem precedentes e onde os participantes vão repetindo gestos, como em uma engrenagem, em que cada ação depende de quem vem antes e depois. A situação de regularização definitiva do edifício onde fica a Mauá guarda certa semelhança com a brincadeira.
Tudo começou em 1957, quando o proprietário do imóvel, Majer Wolf Sznifer, faleceu. O terreno abrigava o então Hotel Santos Dumont, inaugurado em 1953, e que chegou a receber destaque na edição de abril daquele ano no jornal Folha de S. Paulo. Com a morte do polonês, o prédio ficou como herança à esposa Melanie e aos filhos Leon, Sara, Jacob e Abram. Em uma entrevista ao portal Edifícios Abandonados, em 2012, o advogado Leon Sznifer disse que o hotel funcionou até meados da década de 1990. Porém, em consulta à Receita Federal, o cadastro do empreendimento foi baixado em maio de 1978.
Em julho de 2003, houve a primeira tentativa de ocupação do edifício pelo MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), que durou apenas um mês. Cerca de 350 sem-teto deixaram pacificamente a ocupação em 26 de agosto daquele ano após uma liminar de reintegração de posse. Jornais da época noticiaram que as famílias chegaram a ficar acampadas na Praça da Luz por um tempo. De um lado, quem queria ocupar afirmava que o prédio estava abandonado. De outro, os herdeiros da propriedade garantiam morar no local. Esse processo transitou em julgado em 2005, com a decisão de que os ocupantes pagassem por eventuais danos ao edifício que a família Sznifer afirmava que haviam ocorrido. Como essas pessoas não foram mais localizadas, dois anos depois da reintegração de posse, os herdeiros desistiram da cobrança.
Em 25 de março de 2007, o edifício foi novamente ocupado, agora com três movimentos: MSTC, MMRC (Movimento de Moradia da Região Central) e ASTCSP (Associação dos Sem-Teto da Cidade e São Paulo). A única manifestação da família Sznifer na época foi um boletim de ocorrência relatando uma invasão. O processo de reintegração de posse só foi aberto cinco anos depois, em março de 2012, e que está atualmente suspenso até a desapropriação de fato, quando será transmitido à prefeitura, ou julgamento do recurso impetrado pela advogada dos movimento, que está em última instância, no STF (Supremo Tribunal Federal).
Dos descendentes diretos, apenas Sara e Abram estão vivos. Por conta disso, a transferência da titularidade do imóvel tem se estendido e sido repassado em um processo de inventário da família, que também abarca outros herdeiros, e é um dos principais entraves para a passagem da posse para a prefeitura. Outro imbróglio burocrático é que, para realizar essa transferência, de acordo com o Código de Processo Civil, o imóvel precisa estar vazio. Somados esses fatores há, ainda, a incerteza de que o projeto habitacional para o local atenda as famílias que há 11 anos o ocuparam e que reivindicam a propriedade do edifício.
“Quando você desapropria um bem com dinheiro público, você não entrega esse bem ocupado porque a ocupação é um ônus e o município tem que receber aquilo que ele pagou. Mas você vai retirar as pessoas para depois recolocá-las no mesmo lugar? Não tem para onde levar. Mesmo a Prefeitura tirando a posse dos proprietários, ela não garante o direito dos moradores da Mauá porque ela tem uma lista de pessoas cadastradas que não pode furar”, questiona a advogada dos moradores da ocupação, Rosângela Maria Rivelli Cardoso.
Durante o processo, a advogada sustentou que os ocupantes têm direito ao edifício, uma vez que o artigo 183 da Constituição Federal define que a posse ininterrupta, por cinco anos, de até 250 metros de área urbana para moradia transfere o domínio, desde que a pessoa/família não possua outra imóvel. É o chamado “usucapião urbano”, que é a aquisição pela posse prolongada no tempo.
No entanto, o juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, da 26ª Vara Cível, tinha decidido pela liminar de reintegração de posse favorável à família Sznifer por entender que houve comprovação da propriedade, com base no artigo 926 do antigo Código de Processo Civil – que veio a ser barrada depois pela Defensoria Pública naquele ano. “Acontece que no nosso Código de Processo Civil anterior ao novo de 2015, que é de 1973, e que estava valendo em 2012, dizia que você não pode dar liminar em ação de reintegração de posse quando a posse tem mais de um ano e dia, a chamada posse velha. Estava para completar cinco anos de posse quando essa liminar foi dada [no dia 19 daquele mês]”, explica Rosângela.
À Ponte, a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação) afirmou que aguarda expedição de mandado judicial e agendamento para reintegração. Em relação ao atendimento das famílias que ocuparam o edifício, a gestão municipal afirmou que está relacionada com a forma de financiamento, ou seja, com exceção da modalidade Entidades do programa Minha Casa, Minha Vida, as outras formas de financiamento para a política habitacional não dá garantia aos ocupantes. “A desapropriação não é obstáculo para a concessão de financiamento, caso o projeto já tenha sido apresentado como empreendimento privado”, diz a pasta.
Ao El País, o secretário da pasta, Fernando Chucre, comentou sobre um projeto de locação social (o poder público aluga o espaço por um valor acessível) para a população de rua quando questionado do destino do Edifício Mauá.
A Sehab destacou que o prédio não está no projeto dentre os nove adquiridos pela Prefeitura que serão submetidos a retrofit (reforma para adaptar edifícios antigos) para se transformarem em “343 novas unidades habitacionais [que] serão divididas entre quitinetes e apartamentos de um e dois dormitórios”, além de um terreno com mais 98 unidades. Os edifícios contemplados estão localizados na Avenida Ipiranga; Rua da Mooca; Rua José Bonifácio; Praça da Bandeira; Avenida São João; Avenida Celso Garcia; Largo São Francisco; Rua Conselheiro Carrão e Rua Assunção.
Por fim, a Secretaria Nacional de Habitação, que é ligada ao Ministério das Cidades, informou que está aguardando autorização para liberar os recursos para esse projeto da Prefeitura.
(*) Essa reportagem especial foi financiada por você. A equipe envolvida foi remunerada com os valores do projeto de financiamento coletivo Fortaleça a Ponte.
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