ONG brasileira denuncia violência policial contra negros para entidades internacionais

    Educafro denuncia política de Estado genocida e sugere investimento de porcentagem do PIB para financiar ações que promovam melhor uso da inteligência policial

    Ágatha, Miguel, Juan e Davi: quatro vítimas de lugares diferentes, RJ, SP, CE e BA, mas em comum o fato de serem negras e periféricas | Foto: montagem/arquivo pessoal

    A organização brasileira Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes) levou à ONU (Organização das Nações Unidas) e à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) uma denúncia que pede o fim da política de enfrentamento das polícias brasileiras e investimento de porcentagem do PIB (Produto Interno Bruto) para financiar ações que promovam melhor uso da inteligência policial, reduzindo assim a letalidade das ações.

    A ação vem como resposta da organização ao aumento da violência policial no Brasil no ano de 2019, puxada especialmente pelas áreas mais críticas nesse cenário: Rio de Janeiro e São Paulo, estados que, segundo a representação, concederam uma verdadeira “licença para matar”, em especial para jovens negros, que tem 2,5 vezes mais risco de ser vítima de homicídio do que brancos ou amarelos. No Brasil, os registros apontam que em cada 10 assassinatos praticados por ano, 7 são contra a população negra.

    “Nós queremos com essa ação acelerar o processo de reflexão da maldade planejada do sistema contra o povo negro”, diz Frei David Santos, diretor da Educafro, ONG que ele ajudou a criar e que é um dos principais movimentos sociais pela inclusão da população afrodescendente e de baixa renda nas universidades. “A situação está mais grave e se retroalimenta. O sistema todo está contra os negros, consciente ou inconscientemente”.

    Irapuã Santana, advogado, doutorando em Direito Processual na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e membro da Educafro, explica que, já havia uma evidência de um estado de coisas de autorização para o extermínio da população negra, pobre e periférica, a morte da menina Ágatha foi morta foi o disparador para que a representação começasse a ser elaborada.

    “A segurança pública dos estados tem sido desastrosas e vem vitimando várias pessoas inocentes. Fomos atrás diretamente dessa medida cautelar visando uma manifestação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da ONU tendo em vista que o caso é urgente e o Ministério Público tende a arquivar denúncias como essas ao nível nacional”, explicou Santana, responsável pela representação, que tem como amparo legislativo o Estatuto da Igualdade Racial. Em especial, ele cita o artigo 53, que diz que o Estado adotará medidas especiais para coibir a violência policial incidente sobre a população negra.

    No Rio, as estatísticas destacam que o governador Wilson Witzel cumpriu a promessa de que, com ele, a polícia atiraria na “cabecinha”. Comparado com o total de homicídios no estado, a polícia foi responsável por 28,6% de todas as mortes, número que era 16,3% em 2017. Porém, a atuação sanguinária das polícias é maior na capital, representando 38,3% de todas as mortes, e na Grande Niterói, com 38,7%. A letalidade policial no Estado inclusive já foi denunciada à ONU.

    Em São Paulo, por sua vez, as coisas não são muito diferentes. Embora o governo paulista tenha se vangloriado de ter alcançado “a menor taxa de homicídios da história”, o número de pessoas mortas pela polícia aumentou com a chegada de Doria ao poder. Matando em média duas pessoas por dia, o braço armado comandado pelo governador tucano está por trás de uma a cada três mortes violentas cometidas no estado de São Paulo. A PMSP também é a maior causa de letalidade para jovens com menos de 19 anos na capital paulista.

    Em ambos estados, conforme aponta o relatório, os autos de resistência aumentaram, criando um desafio extra para o Judiciário, que precisa julgar os agentes do próprio Estado. Na prática, um policial pode prender qualquer um sem provas e a Justiça vai acreditar nele, conforme apontado em reportagem da Ponte de abril deste ano que tratava sobre as prisões e condenações por tráfico, quando a maioria das testemunhas são os próprios policiais. Nos tribunais do país, versões contadas por policiais valem como prova incontestável e, muitas vezes, única, mesmo em situações claramente inverídicas. Delegados, promotores e juízes se baseiam na noção de que funcionários públicos têm “fé pública”, ou seja, tudo o que dizem deve, em princípio, ser considerado verdade.

    Nos outros estados, mesmo com uma diminuição generalizada do número de mortes violentas, casos de brutalidade policial aumentaram. No Ceará, mesmo com uma redução de quase 57% de homicídios, a polícia do Ceará nunca matou tanto como em janeiro desse ano: foram 28 mortes. E apesar da redução significativa nos dois meses seguintes, no acumulado do trimestre a polícia matou uma pessoa a cada 2 dias

    Mais recentemente, no Amazonas, 17 pessoas foram mortas pela polícia em um ato descrito por uma ativista ouvida pela Ponte como assassinato. O secretário de segurança pública disse à imprensa que “quem levantar arma e trocar tiro com a polícia no Amazonas causará o choro de suas famílias”.

    Para Iêda Leal, do Movimento negro unificado (MNU), essa representação é sinal claro de que existe a necessidade que entidades façam denúncias a nível internacional para defender o povo negro. “Não devemos nos calar nunca e a contribuição deve ser feita é amplamente divulgada para incentivar as denúncias e as todas formas de luta . E esse sim deve ser uma prática copiada pelo conjunto de entidades do Movimento Negro”. 

    O impacto nas mulheres

    Ainda que boa parte dos números relacionados à violência policial sejam de jovens negros do sexo masculino, a população afrodescendente feminina também sofre na atual conjuntura. Conforme dados do Atlas da Violência 2019 (que pode ser acessado aqui), as taxas de morte de pessoas negras subiu 33% entre 2007 e 2017, quantidade dez vezes menor quando o recorte é para não negros, cuja taxa de mortalidade subiu 3,3%.

    A violência contra a mulher segue igual tendência. Dos 4.939 assassinatos em 2017, o maior número em dez anos, 66% das vítimas eram negras. A cada dia se registrou 13 mortes de mulheres, nove delas negras. Em dez anos, as taxas subiram 30% para mulheres negras e, para as não negras, 4,6%.Para Maria Sylvia, presidente do portal Geledés, o abalo nas mulheres negras é principalmente psicológico, mas que acaba atingindo a parte física também. “Mulheres que perderam filhos, companheiros, pais etc por conta da violência policial sofrem intensamente em sua saúde mental”,refletiu a advogada ao analisar a representação feita pelo Educafro. “Apenas como um exemplo desse impacto indireto, em maio de 2018 nós perdemos três mães de jovens que morreram na mão do Estado: uma por suicídio e as outras por doenças como câncer”, conclui Maria Sylvia.

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