ONG de grandes empresários direciona políticas de segurança pública no RS

Por meio de doações diretas ou de impostos devidos, Instituto Cultural Floresta leva mais armas e equipamentos para as polícias nos locais escolhidos pelos empresários; ‘a maioria da população e do PIB está nessas regiões’, justifica idealizador

Empresários do Instituto Floresta doam viaturas à Brigada Militar, em 2018 | Foto: Rodrigo Ziebell/SSP

A história que abre essa reportagem aconteceu em 2018. Uma organização não-governamental (ONG) formada por um grupo de 55 empresários do Rio Grande do Sul, chamada Instituto Cultural Floresta (ICF), fez uma doação histórica para a Secretaria de Segurança Pública do Estado: R$ 14 milhões. Oficialmente, não havia qualquer contrapartida. O objetivo seria apenas colaborar no combate ao crime a partir da compra de viaturas, armas e coletes à prova de bala para as polícias gaúchas. Na ocasião, o ICF divulgou a intenção de, nos próximos anos, colaborar na construção de presídios e adquirir mil carros e mais de dez mil pistolas.

Ao ver a notícia, um oficial que comandava uma unidade da Brigada Militar (a Polícia Militar gaúcha) na Restinga — um dos três maiores bairros de Porto Alegre — ficou empolgado. Ele propôs ao Comando de Policiamento da Capital a troca de um dos carros antigos e de suspensão baixa usados no patrulhamento das acidentadas e esburacadas ruas da região periférica da capital por uma das quarenta picapes novas que a corporação havia recebido como doação. A resposta não deixou brecha para qualquer negociação: “Eu ouvi dele que as picapes não podem sair desses lugares aqui… os lugares de circulação desse pessoal aí do Instituto Cultural Floresta e dos afiliados deles… as áreas mais privilegiadas, digamos assim”, lembra o oficial, que pediu para não ser identificado por temer represálias.

A doação milionária foi um primeiro passo de uma estratégia para uma participação mais efetiva e permanente do empresariado na segurança pública do estado. Ainda em 2018, os líderes do ICF entregaram ao governo e a alguns deputados a minuta de um projeto de lei que transformaria imposto devido em investimento nas polícias. O Programa de Incentivo ao Aparelhamento da Segurança Pública (Piseg) permite aos empresários reverterem até 5% da dívida de Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) para o aparelhamento das forças policiais. O projeto foi encampado pelo então governador José Sartori (MDB), que o apresentou à Assembleia Legislativa, onde foi aprovado.

De outubro de 2019, quando entrou em vigor, durante a gestão do governador Eduardo Leite (PSDB), até maio de 2023, o Piseg acumulou R$ 107 milhões em doações. O valor foi investido na compra de 271 viaturas, entre outras aquisições. Vale lembrar: são valores que o estado já receberia normalmente com o pagamento do ICMS. Porém, o programa permite que os empresários, em vez do governo, definam o destino do dinheiro. De uma forma prática, funciona assim: o site do Piseg oferece uma série de projetos ligados a necessidades estruturais das polícias, como fuzis para o batalhão X, viaturas para a unidade Y e coletes para o comando Z. O empresário que opta pela doação escolhe como e onde os recursos serão empregados.

Doação de carabinas pelo Instituto Floresta à Polícia Civil gaúcha, em 2019 | Foto: Divulgação/PCRS

O destino dos recursos depende exclusivamente da vontade dos empresários devedores de ICMS, desconsiderando quaisquer outros critérios, como o tamanho da população. As distorções ficam claras nos dados a que a Ponte teve acesso através da Lei de Acesso à Informação (LAI). Uma cidade como Charqueadas, na região metropolitana, com apenas 40 mil habitantes, recebeu R$ 8,6 milhões do Piseg em 2022, enquanto Canoas, com uma população oito vezes maior, de 348 mil habitantes, foi contemplada com somente R$ 7,2 milhões. Dona de uma população equivalente a um bairro de Porto Alegre, a pequena Charqueadas obteve do programa o equivalente a 43% do total do valor transferido para a capital (R$ 19,7 milhões).

Acontece que Charqueadas é endereço da Gerdau, a maior fábrica de aço do Brasil e uma das maiores do mundo. Sozinha, a metalúrgica foi responsável pela destinação de R$ 7,1 milhões para investimentos na segurança pública da cidade. Além disso, Richard Gerdau Johannpeter, integrante do conselho da empresa, também participa do Instituto Cultural Floresta, idealizador do Piseg.

Apesar das distorções, é um modelo que está se expandindo. Em janeiro do ano passado, a capital do Rio Grande do Sul também regulamentou a participação do empresariado na segurança pública local. O Programa de Incentivo ao Aparelhamento da Segurança Pública do Município de Porto Alegre (Piasegpoa), na mesma linha da versão estadual, prevê que os contribuintes do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) ou do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) possam compensar parte dos valores devidos para a compra de bens e equipamentos de interesse da Secretaria Municipal de Segurança, aportar recursos para o Fundo Municipal de Segurança Pública, fazer doações ou, ainda, optar pelo recolhimento do valor direto em um projeto específico.

Lógica privatizada

Para Marcos Rolim, doutor em sociologia e membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a destinação de recursos para determinado uso em regiões específicas a critério da vontade dos doadores, sem qualquer fundamentação em dados ou em pesquisas de vitimização, resulta numa política formatada pelo interesse particular dos maiores empresários do Estado, em outras palavras, numa lógica privatizada de segurança.

Rolim defende que, além dos grandes empresários do Estado, os pequenos empresários, as universidades, o movimento sindical, o movimento negro, as periferias, enfim, uma diversidade de representantes da sociedade também deveriam ter a oportunidade de opinar e influenciar as políticas de segurança pública. “Para se aproximar das polícias, só consegue fazer isso hoje se tiver dinheiro para doar para elas. Alguém que não tem dinheiro, por exemplo, pode se aproximar da polícia também? Ou é preciso ter uma grande conta bancária para participar do debate? Então esse é o tema central para a República”, defende o sociólogo.

Também ouvido pela Ponte, Rodrigo Azevedo, professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), que há mais de vinte anos estuda temas como violência, sistema penal e democracia, afirma que iniciativas como o Piseg geram como “efeitos colaterais” uma tentativa de “apropriação do serviço público em nome dos interesses privados”.

Para Azevedo, a segurança pública é um direito universal e, nesse contexto, a iniciativa privada pode ter o seu papel, mas sem distinções especiais. O professor afirma que tratamento discriminatório no uso dos recursos públicos é um desrespeito à Constituição Federal, que reconhece a segurança como um direito de todos, sem discriminações ou privilégios.

“Não é porque a pessoa tem mais ou menos recursos que ela vai ter mais ou menos acesso a essa garantia. Assim como uma pessoa que vai ao SUS não pode ter prioridade porque vai pagar pela consulta, da mesma forma, na segurança pública, não pode haver uma prioridade para setores que querem de alguma maneira apoiar o financiamento da polícia. O que é bem-vindo, mas não pode estar condicionado a uma atuação seletiva e discricionária”, afirma Azevedo.

Pistolas doadas pelo Instituto Floresta ainda em 2018 | Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Tanto as doações como os investimentos advindos do Piseg têm uma característica comum: em quase sua totalidade, resultam na aquisição de veículos ou equipamentos, como armas, coletes à prova de balas e capacetes. Quase nada é destinado àquilo que os especialistas chamam de inteligência. “Uma polícia bem armada e bem motorizada não resolve o problema da segurança, infelizmente. A situação é bem mais complicada”, destaca Rolim. Nesse sentido, ele provoca: “Talvez esteja faltando inteligência para os nossos empresários”.

‘A maioria da população e do PIB está nessas regiões’

O investimento em segurança pública por parte dos empresários significa mais do que uma preocupação objetiva com a estrutura das polícias, equipamentos e armamentos. Essa é a interpretação do deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), um dos poucos críticos do projeto na Assembleia Legislativa do RS. Vale lembrar que o Piseg foi aprovado com apenas um voto contrário no legislativo gaúcho em 2018: do ex-deputado Pedro Ruas, também do PSOL. Até parte da oposição, incluindo o PT gaúcho, votou a favor. Matheus enxerga interesses políticos na aproximação do grupo com os governos: “Alguns deles financiaram as campanhas de candidatos da extrema direita e bolsonaristas. É um movimento essencialmente político. São grandes empresários que, por exemplo, apoiavam os protestos verde e amarelo que aconteciam aqui em Porto Alegre”.

O empresário Cláudio Goldztein, diretor patrimonial de uma das maiores incorporadoras imobiliárias do Estado, é presidente do conselho consultivo do Instituto Cultural Floresta e um dos nomes mais presentes em eventos, entrevistas e manifestações públicas da ONG. A atuação frente à entidade lhe rendeu, inclusive, o título de Cidadão de Porto Alegre, proposto pela vereadora Fernanda Barth (PL). Ambos estiveram juntos nas fileiras daqueles que defenderam o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2015 e 2016. Goldztein foi coordenador da seção gaúcha do Movimento Vem Pra Rua. Por sua vez, Fernanda era uma liderança bastante ativa do Movimento Avança Brasil no Rio Grande do Sul. O empresário chegou a ser cotado para ocupar a suplência do general Hamilton Mourão (PL-RS), eleito senador nas eleições de 2022.

@genmourao

Presidente Bolsonaro, General Mourão e Claudio Goldsztein, convidam os gaúchos para o ato em apoio a nossa pátria dia 07/09 no Parcão em Porto Alegre/RS 🟢🔴🟡 #generalmourao #bolsonaro #portoalegre #7desetembroeuvou @bolsonaromessiasjair

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Goldztein, um dos principais nomes do Instituto Floresta, com Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão

Em entrevista à Ponte, Goldztein, que é um dos idealizadores do Piseg, afirma que o programa se inspirou na Lei Rouanet de Incentivo à Cultura — curiosamente, uma legislação bastante atacada por bolsonaristas e pela extrema-direita em geral. A intenção do ICF, segundo o empresário, é estruturar as polícias no Estado conforme as demandas apontadas pelas autoridades públicas. “A empresa ou a pessoa faz a doação para o Instituto e o Instituto vai adquirir e entrega esse direcionamento. É o máximo que pode acontecer. O que é justo, né? Porque provavelmente essa empresa ou essa família que faz essa doação, está atendendo à solicitação do agente de segurança da ponta, do delegado da sua cidade, ou do comando da Brigada da sua cidade, que deve ter a necessidade daquele equipamento, sim”, afirma.

Sobre a situação em que a quase totalidade das 40 viaturas compradas pelos empresários tenham sido destinadas para a mesma região da capital gaúcha na qual estão localizadas as empresas e residências de parte dos empresários responsáveis pelo investimento, Goldztein não vê problemas. “Ela (a região) concentra a esmagadora a maioria das agências bancárias de Porto Alegre, a capital do Estado concentra quase a totalidade das universidades e quase a totalidade dos hotéis. Praticamente todos os órgãos de governo estão nesses dois batalhões, né? O aeroporto, os principais acessos da cidade, boa parte ou quase a maioria das concessionárias de veículos, muitos supermercados… então a esmagadora maioria da população e do PIB de Porto Alegre está nessas regiões”, justifica.

No artigo “A educação pelas armas. O Instituto Cultural Floresta e nossos passados presentes”, publicado logo após a doação histórica de R$ 14 milhões do ICF ao Estado, o professor Fernando Nicolazzi, do Departamento de História da UFRGS, faz uma comparação entre a participação do empresariado na política atual de segurança pública do Rio Grande do Sul e a colaboração das elites empresariais com as forças de repressão do Estado brasileiro durante a ditadura civil-militar no século passado.

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Em 1969, um desses instrumentos de “manutenção da ordem da pública” e de perseguição da resistência civil foi a Operação Bandeirante (Oban), grupo paramilitar liderada pelo II Exército. Na época, a iniciativa — responsável por diversas violações dos direitos humanos, como prisão ilegal, tortura e morte de suspeitos e opositores do regime — recebeu o apoio financeiro de banqueiros, industriais e empreiteiros. “Alguns empresários forneciam refeições congeladas para alimentar as pessoas envolvidas, enquanto outros faziam doações importantes de equipamentos, como carros e caminhões. […] Ou seja, estamos novamente diante de uma situação em que o empresariado financia o aparato repressor do Estado, definindo o que será utilizado por este aparato e onde ele deverá ser mobilizado. Em outras palavras, são empresas que, por meio da institucionalidade estatal, elas mesmas mostram sua força para a sociedade”, escreveu Nicolazzi. A reportagem tentou entrevistar o professor, mas ele respondeu que tudo o que tinha a dizer já estava no artigo.

O que diz o governo

A gestão do governador Eduardo Leite (PSDB) garante que todos os projetos contemplados no Piseg são de interesse público, formatados pela Secretaria de Segurança Pública a partir de necessidades diagnosticadas pelas polícias e bombeiros. “Esse movimento nunca é do privado para o público. Ele é sempre do público para o privado”, afirma à Ponte o delegado Antônio Lapis Salvador, chefe de gabinete do secretário de segurança pública do RS.

Sobre as doações de armas, equipamentos ou viaturas, que são iniciativas de empresários com destino e uso definidos previamente, o delegado Lapis rebate que mesmo esses casos atendem a necessidades das polícias. “Alguém que está tendo a liberalidade de pegar os seus recursos próprios e entregar um bem, pode, de alguma forma, (dizer) ‘olha, eu vou entregar este bem para tal finalidade’, e cabe a instituição aceitar ou não aceitar. A aceitação não é obrigatória”, finaliza Lapis.

A Ponte também entrou em contato com a assessoria de Eduardo Leite, na tentativa de ouvir o governador sobre as críticas feitas à interferência privada na segurança pública do Estado, mas ele preferiu não se manifestar.

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