Lançada há um ano, operação policial do governador Tarcísio de Freitas matou 28 pessoas em 40 dias e transformou a vingança policial em política de governo
“Hoje as pessoas vão morrer / Hoje as pessoas vão matar / O espírito fatal / E a psicose da morte estão no ar.” Esse trecho da canção Rotomusic De Liquidificapum, da banda Pato Fu, virou a trilha sonora de postagens que exaltavam a sede de vingança nas redes sociais de policiais militares, há um ano atrás, em 28 de julho de 2023. Foi quando o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, lançaram na Baixada Santista a chamada Operação Escudo.
O objetivo da operação era vingar o assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, de 30 anos, da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM paulista, ocorrido um dia antes. Confirmando o desejo de morte e de violência das mensagens que os policiais postavam em suas redes, em meio a imagens de caveiras e de placares que comemoravam cada homicídio, a Operação Escudo matou 28 pessoas ao longo de 40 dias nos bairros pobres da Baixada, sobretudo no Guarujá, onde Patrick havia sido morto.
Leia a cobertura da Ponte sobre a Operação Escudo
Um ano após o início da operação, dos 27 procedimentos abertos pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) para investigar as 28 mortes, os promotores pediram o arquivamento de 23. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, porque “constatou-se que a conduta dos agentes ocorreu dentro dos parâmetros legais ou que não havia elementos indiciários suficientes para o início de ação penal, levando assim à promoção de arquivamento”.
Apenas quatro das investigações abertas pelo MPSP resultaram em denúncias, que apontaram a prática de crimes por oito policiais militares. A Justiça já aceitou a denúncia contra seis deles, todos integrantes da Rota. De acordo com o MPSP, o Tribunal de Justiça de São Paulo ainda avalia se vai aceitar ou não a denúncia contra outros dois PMs. O nome desses PMs e o batalhão onde atuam não foi divulgado.
O arquivamento de tantas investigações pelo Ministério Público só ocorreu porque os promotores adotam a prática temerosa de se basear apenas na palavra dos próprios policiais, segundo a advogada Fernanda Penteado Balera, que integra o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) da Defensoria Pública. “A gente entende que isso [a palavra do policial] não é suficiente para você considerar que a pessoa está em legítima defesa, porque toda essa narrativa nunca tem testemunha, os policiais estão sem câmera, alteram propositalmente a cena do crime, a suposta arma que é utilizada invariavelmente aparece só na delegacia, não está ali no local que ela teria sido apreendida”, enumera.
O núcleo da Defensoria acompanha 14 famílias atingidas pela Escudo, sendo 12 de vítimas fatais e duas de sobreviventes, e pediu a reconsideração dos arquivamentos. Um dos casos arquivados é o do encanador Willians dos Santos Santana, 36, morto com oito tiros dentro de casa, no Guarujá, em 18 de agosto de 2023. Os policiais que o mataram não usavam câmeras nas fardas.
Familiares relataram à Ponte na época que Willians voltava de um “bico” quando foi abordado pelos PMs e arrastado para dentro da residência, onde foi baleado. Um pouco antes, ele teria sido ameaçado de morte por policiais “caso ficasse na rua”, por ter passagem criminal. Já os policiais disseram que Willians estava armado e teria atirado contra eles.
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Os promotores entenderam que a versão dos parentes era “isolada”, já que a PM afirma ter apreendida um revólver com indicação de disparo recente e uma bolsa com radiocomunicador, drogas e papel de anotações. “São histórias muito mal contadas”, diz Fernanda Balera.
Os últimos PMs da Escudo tornados réus após as denúncias do MPSP foram o capitão Marcos Correa de Moraes Verardino, coordenador da operação, e o cabo Ivan Pereira da Silva. Eles respondem pelo homicídio de Fabio Oliveira Ferreira, 40, que teria sido baleado já rendido. Os policiais também são suspeitos de terem apagado imagens de câmeras de segurança de uma residência.
O sargento Rafael Perestrelo Trogillo e o cabo Rubem Pinto Santos respondem pela morte de Jefferson Junior Ramos Diogo, 34, que vivia em situação de rua no centro da capital paulista, mas apareceu morto na Favela da Prainha, no Guarujá, em 28 de julho de 2023. A promotoria sustenta que os PMs “plantaram” uma arma no local do crime e mexeram nas câmeras das fardas que usavam para dificultar o registro da ação.
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Acusação parecida também recaiu contra o sargento Eduardo Freitas de Araújo e o soldado Augusto Vinicius Santos de Oliveira, pela morte de Rogério de Andrade Jesus, 50, também no Guarujá, em 30 de julho de 2023, no segundo dia da Operação Escudo. De acordo com o MPSP, Eduardo Araújo disparou contra Rogério e Augusto Oliveira o auxiliou ao “obstruir sua câmera operacional portátil (COP) para que nada fosse filmado e em forjar a existência de uma arma de fogo que estaria na posse da vítima”.
Torturas, ameaças e mortes
Moradores da Baixada Santista denunciaram uma série de crimes cometidos pela Operação Escudo, entre execuções, tortura, ameaças, invasões e derrubada de casas, conforme relatório preliminar do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
Houve ainda denúncia internacional de organizações ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) por duas vezes. Familiares e movimentos sociais e negros encabeçaram protestos e uma audiência pública pedindo o fim da matança. Além disso, um levantamento da Defensoria Pública de São Paulo revelou que a maioria das prisões realizadas na região foram de pessoas majoritariamente negras e sem antecedentes criminais.
Entidades também criticaram as falhas propositais da polícia para garantir a própria impunidade, como a falta de preservação das cenas dos crimes e o fato de que a maioria de câmeras nas fardas dos PMs estava sem bateria ou não registrava as ações.
De uma queda histórica em 2022, as mortes pelas polícias no Estado de São Paulo voltaram a subir, representando um aumento de 40% só nos casos em serviço. O Guarujá, especificamente, nunca antes havia atingido dígitos de letalidade policial em um mês, como aconteceu em julho de 2023. A Ponte revelou que as polícias mataram mais do que os ditos criminosos, uma vez que os homicídios dolosos no município foram duas vezes menor.
“Vingança oficial”
Desde o início da sua gestão, o secretário Guilherme Derrite declarou que seria desencadeada uma Operação Escudo toda a vez que um policial fosse vítima de violência. A edição na Baixada Santista teria sido a 18ª, mas atingiu patamares sem precedentes de matança.
Na ocasião, os discursos dele e do governador foram de que as mortes na operação eram “efeito colateral” e que “não houve excesso”, alegando que denúncias de violações de direitos humanos eram “narrativas”.
Autora de uma tese sobre a história das chacinas paulistas, a professora e doutora em sociologia Camila Vedovello explica que a ideia de vingança promovida por agentes do Estado é uma prática antiga e menciona como exemplos o Esquadrão da Morte, na época da ditadura. A diferença, para ela, é que as ações eram mais pontuais e mais encobertas, com mais casos em que os policiais atuavam fora de serviço. “Antes a gente pode dizer que tinha uma vingança dos agentes. Agora é uma vingança legitimada pela própria instituição, de uma forma muito mais pública”, analisa. Para a socióloga, quando uma operação policial deixa tantas mortes como a Escudo, se trata de uma “chacina institucionalizada”.
É assim que a técnica de enfermagem Maria Josefa da Silva, 43, vê também a responsabilidade do governador Tarcísio de Freitas. “Eu votei nele e hoje eu o vejo como um dos assassinos dos meus filhos”, lamenta. Ela perdeu Luiz Gustavo Costa Campos, 15, no dia 28 de agosto de 2023, e Matheus Ramon Silva de Santana, 22, em 28 de março neste ano na Operação Verão. Matheus tinha esquizofrenia.
O caso de Luiz Gustavo está entre as 23 investigações do MPSP que foram arquivadas. Já a apuração sobre a morte de Matheus ainda está em andamento.
Em fevereiro deste ano, após a morte do do soldado da Rota Samuel Wesley Cosmo, 35, o governo Tarcísio intensificou a Operação Verão — um reforço tradicional no policiamento da Baixada Santista que ocorre nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro — e a transformou numa espécie de segunda fase da Escudo, com o dobro de mortos.
Logo após o assassinato de Cosmo, policiais da Rota mataram 17 pessoas em um único mês. A Secretaria da Segurança Pública divulgou um número de 56 mortos nessas ações, mas na região da Baixada Santista, no período, foram mais de 80 boletins de ocorrência só de mortes decorrentes de intervenção policial, como a Ponte mostrou.
“A Operação Escudo foi um teste, foi um treinamento, para as execuções que vieram com a Operação Verão pela certeza da impunidade”, critica Andrea MF, ativista e integrante do Movimento Mães do Cárcere, que acompanha diversas famílias de vítimas.
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Ainda assim, em março, Tarcísio menosprezou as críticas e defendeu as operações. “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, declarou.
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Para Maria, que está tratando uma depressão profunda após perder os dois filhos, ouvir essas declarações foi dilacerador. “Eu queria saber o que ele faria se fosse ele que tivesse perdido os filhos dessa maneira. Não é porque a gente é de comunidade que tem que ser tratado desse jeito. Eu vejo uma viatura e eu me tremo toda. Não consigo fazer mais nada. A minha filha tentou suicídio. A minha vida acabou e agora o que eu só quero é justiça”, afirma.