Os zines que mudaram a vida dos presos LGBT+ do Ceará

    Idealizado por Marcio Sno, livro Zines no Cárcere traz histórias de publicações independentes feitas nas cadeias brasileiras, como o “Só Babado”, que aprisionados LGBT+ usaram para conquistar o direito de ter celas próprias

    Arte: Fabio Maciel

    A vida no cárcere não é fácil. Violações de direitos básicos são comuns, assim como a superlotação e a dificuldade que é ficar privado de liberdade. É nessa realidade que a arte pode ser transformadora: um zine produzido por pessoas LGBTs conseguiu mudanças da vida no cárcere.

    “Só Babado”, produzido mensalmente por pessoas LGBTs no sistema prisional do Ceará, orientados pela educadora Jô Feitosa, conseguiu mudar a realidade de mulheres trans e travestis nas prisões do estado. Por meio da arte, essas pessoas mostraram a importância de manter os cabelos grandes, como forma de identidade, e de ter celas separadas.

    Edição 1 e 16 do zine “Só Babado” | Foto: Reprodução

    “Elas não tinham nenhuma visibilidade e sofriam violências. Com a produção do zine ‘Só Babado’, eu conseguia fazer com que esse material chegasse na Secretaria de Saúde, chegasse na Secretaria de Políticas Públicas para LGBTs, assim como nas universidades. Com isso surgiram campanhas para pensar nessas mulheres”, conta Jô Feitosa à Ponte

    Essa é uma das histórias que os educadores e oficineiros Jô Feitosa, João Francisco Aguiar (Professor Jofra) e Thina Curtis colecionaram dentro das prisões. Sabendo da potência desse trio, o jornalista Marcio Sno idealizou o Zines no Cárcere para registrar a trajetória desses profissionais e ampliar as vozes artísticas de homens e mulheres que, mesmo privados de liberdade, souberam usar a potência da liberdade de expressão dos zines para contar suas histórias.

    Leia aqui o livro completo

    Em entrevista à Ponte, Marcio Sno conta como surgiu a ideia de reunir esse timaço para dar vida ao “Zines no Cárcere”. Pesquisador de zine desde 2005, Sno encontrou com Jofra em uma oficina em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.

    “Na conversa ele me disse que já tinha dado oficina de zine em presídios e eu fiquei muito empolgado com as histórias. Eu já conhecia a Thina Curtis e sabia que ela tinha experiência na Fundação Casa, e no ano anterior eu tinha conhecido a Jô Feitosa em Fortaleza. Quando Jofra falou que tinha essa experiência, pensei que seria importante ter um documento que reunisse essas histórias”, conta. 

    De lá, Sno ligou para Henrique Magalhães, da editora Marca de Fantasia, que topou fazer a publicação do livro. “No Brasil já há poucas publicações que falam sobre zine, oficinas de zine em presídios nunca teve”, aponta.

    Daí, nasceu Zines no Cárcere, publicação com 86 páginas de histórias de Thina, Jofra e Jô contando os desafios de ministrar oficinas que lidam com criatividade e liberdade de expressão em ambiente de hostilidade e desconfiança.

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    Mas vai para além das histórias dos educadores. “A ideia inicial era ter só o relato dos três educadores, mas depois que eu recolhi os relatos e os zines que eles produziram eu comecei a pirar. Tem o glossário do presídio, a união das mulheres. Logo pensei: essas histórias precisam entrar também. Era fundamental ter a visão dos educadores, mas também de quem está lá dentro”, conta Sno.

    Glossário

    Arranha-céu: bolacha quadrada que dói no céu da boca
    Química: leite
    Parada errada: linguiça
    Coruja: cueca
    Relíquia: bolacha doce
    Catatau: carta-recado
    Resgatar: casar ou ajudar
    Comarca: beliche
    Bôjo: aparelho sanitário
    Mancada: ovo
    Embalagem: gás (feito de embalagens plásticas)
    Corredeira d’água: pessoas que se metem em confusão
    Flayr: X9, pessoa que entrega o outro
    Cona: homossexual velho
    Fiel: quentinhas de comida
    Tinta: caneta
    Peidar para dentro: prometer e não cumprir

    Sem autoria. “Só Babado – 1 ano de movimento e visibilidade homossexual na CPPLIII”, número 6, maio de 2015

    Para Sno, cada história é como um filme. “São histórias muito humanas. As mulheres, por exemplo, são mais abertas para falar sobre os sentimentos e se unirem, se cuidarem. Tem um caso de uma mulher que perdeu a companheira dela para a liberdade”.

    “Já os homens são bem mais reservados para falar, geralmente ficam na defensiva, fugindo da responsabilidade. Também tem a questão da população LGBT+ que é bem unida para reivindicar direitos”, completa.

    Arte como alternativa

    Para João Francisco Aguiar, o professor Jofra, que atuou por 10 anos no sistema prisional, a arte é o caminho, não só no sistema prisional, mas aqui fora também. “A arte tem uma entrada maior no universo do aluno do que o ensino fechado das grades curriculares. Ela consegue sensibilizar o aluno e, ao mesmo tempo em que ele se abre para o aprendizado, ele passa por um processo humanizador”.

    Por isso, conta Jofra, Zines no Cárcere pode abrir caminhos de reflexão para os professores e educadores dentro do sistema prisional, principalmente no sistema socioeducativo. “Os professores repetem fórmulas que já não deram certo anteriormente, na escola, e repetem essa mesma fórmula lá dentro. A chance de fracassar é muito maior. Eles não buscam uma aproximação dentro do universo dos alunos que estão no sistema prisional e que já passaram por um modelo que não deu certo”.

    A poeta Thina Curtis, mais conhecida como Dona Fanzine, concorda e vai além: “Educadores e funcionários têm uma formação ultrapassada e que não é algo geralmente específico como é o caso das oficinas culturais e artísticas. Os próprios arte-educadores acabam sendo referências para outros que trabalham na medida socioeducativa”.

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    Para Thina, além de ser transformadora, a arte “cria um elo, uma identidade, a produção artística cria conexões, possibilidades de novos olhares sobre um mundo mais digno e, ao meu ver, dentro desses espaços e dos fanzines, ela é também inclusão social”.

    “Os zines são uma forte voz de expressão ali você possibilita os educandos a terem informação, a questionarem, a se colocarem no lugar do outro, a refletirem e criticarem também. Os zines têm sua própria leitura de mundo, aquela que você conhece e fala, aquela que a mídia não mostra”, aponta a educadora.

    Thina argumenta que é preciso repensar o sistema prisional porque as pessoas privadas de liberdade são invisíveis para toda sociedade. “Não tem como ressocializar alguém sem educação, arte, cultura, dignidade, direitos básicos. Eles chegam a esse lugar geralmente por falta disso, a maioria mora em regiões periféricas de extrema pobreza e exclusão a maioria mal assina o nome quando chegam, e é no sistema que vão iniciar os estudos, a leitura, serem inseridos nas oficinas culturais e esportivas”.

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    Para a assistente social Jô Feitosa, que atuou com o educadora no sistema prisional do Ceará, fazer parte do livro é finalizar um trabalho que havia ficado inacabado. “Eu tinha um desejo de que o fanzine pudesse chegar em todas as prisões. Principalmente a situação que estava acontecendo nas prisões do Ceará, em que muitas coisas estavam sendo proibidas por conta da invasão das facções”.

    “De 2016 pra cá, depois da rebelião, mudou muita coisa, quando todos os presídios entraram em rebelião de uma vez. Eu achei que era o momento para ajudarmos na reconstrução das cadeias utilizando o fanzine, que é um porta-voz”, conta.

    Para Jô, o grande papel de Zines no Cárcere é trazer o sentimento de pessoas privadas de liberdade para quem não está no sistema prisional. “O fanzine é uma forma disso sair de dentro dos muros. O momento tá sendo muito difícil, porque no Ceará não tem mais essas questões que humanizavam os presídios. Hoje, a assistência social cuida dos relatórios, outros tipos de serviço não têm espaço”, lamenta.

    Lembrando a sua experiência dentro do sistema prisional, Jô garante que a arte tem uma força única para que “o preso se enxergue um ser participante, um ser que produz uma coisa bacana, não só para ele, mas para todos que estão lá dentro”.

    “Tinha um rapaz que escrevia livros nas tampas das marmitas. Ele me presenteou com esse livro de poemas. Isso é muito importante não só para gente que está aqui fora, mas para as pessoas que estão lá dentro e se percebem com o dom de pintar, de escrever. Isso desperta sentimentos bons nos outros e desperta autoestima”. 

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    Em 2002, quando começou a trabalhar com as oficinas, no sistema prisional feminino, conta Jô, as presas não tinham hábito de frequentar as aulas. “Eu entrava com os meus papeis, cola e tesoura, começávamos a conversar e dali saiam os escritos. Depois consegui fazer com que as professoras lessem os escritos e assim elas começaram a se aproximar da escola. É uma contribuição muito forte”.

       

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    […] Matéria publicada originalmente no site Ponte Jornalismo. A autoria é de Caê Vasconcelos. […]

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