Quatro dos 11 mortos em ação da Rota em Guararema (SP) não reagiram, aponta Ouvidoria

    Relatório da Ouvidoria da Polícia de São Paulo aponta indícios de ‘excesso de legítima defesa’ de PMs em ação contra quadrilha especializada em roubo a banco

    Ação em Guararema coordenada pela Rota, tropa mais letal da PM paulista, deixou 11 mortos | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Um Relatório da Ouvidoria da Polícia de São Paulo aponta excessos na terceira ação mais letal da Polícia Militar do Estado de São Paulo. No dia 4 de abril deste ano, 11 suspeitos foram mortos em Guararema, cidade do interior de São Paulo. Em pelo menos 4 mortes, segundo o ouvidor Benedito Mariano, houve “excesso na legítima defesa” dos PMs.

    De acordo com os Laudos Necroscópicos, as 11 vítimas foram, em média, atingidas por cinco projéteis. “Pelo menos 4 vítimas apresentavam sinais de tatuagem e queimadura”, termos que significam “disparos de até 30 cm e até de 15 cm de distância”, respectivamente, aponta o documento. Uma das vítimas foi alvejada 10 vezes. Os 45 policiais que participaram da ação saíram ilesos. O governador de SP, João Doria (PSDB), elogiou publicamente a ação e chegou a homenagear os PMs. “Mandaram 11 bandidos para o cemitério”, declarou à época.

    Um dos casos é a morte de Jean Santos Souza, que fazia uma família refém em um sítio. O documento mostra que o irmão da vítima, um policial civil de Itapevi, disse, em depoimento à Corregedoria e ao Condepe (Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana), que, ao telefone, Jean concordou em se entregar e a polícia não atirar. O suspeito foi morto com um tiro à queima-roupa, o único morto com um único projétil.

    Na versão oficial, a intenção da quadrilha de assaltar duas agências bancárias na cidade havia sido descoberta e a operação aconteceu com o objetivo de evitar o crime. De acordo com o boletim de ocorrência, a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), tropa mais letal da PM paulista, agiu após escutar explosões e “diversos tiros”. Rogério Machado Coelho, Carlos Eduardo Leonel, José Cláudio Borges de Castro, Ezequiel dos Santos, Jean Santos Souza, Claudinei Carvalho Nunes, Juceir da Silva Rodrigues, Marcos Bueno de Campos, Robson de Oliveira, Rodrigo Camargo dos Santos e Tiago Clementino dos Santos morreram na operação.  

    O documento levou 4 meses para ficar pronto e foi feito com base nos laudos balísticos, necroscópicos e residuográficos da Polícia Científica de São Paulo. Apesar de destacar excessos, Benedito Mariano define ação como “legítima e complexa” pelo fato de os policiais terem enfrentado uma “quadrilha com forte armamento”.

    No relatório consta que o Ministério Público Estadual, por meio do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), “estava monitorando a quadrilha há meses” e teria passado informações privilegiadas à Polícia Militar sobre a explosão de caixas eletrônicos em Guararema. Baseado na informação, o documento questiona: “Não haveria possibilidade de, feito o cerco, prender todos ou parte da quadrilha antes das explosões dos caixas eletrônicos?”. 

    Em entrevista à Ponte, Benedito Mariano alertou para a necessidade de dar melhores condições para o trabalho da perícia, já que, de acordo com os laudos, os 45 policiais que participaram da ação não teriam atirado uma única vez.  

    Confira a entrevista:

    Ponte – Quais os indícios de excesso? 

    Benedito Mariano – Toda análise nossa [da Ouvidoria] é pautada em laudos técnicos. Os 11 criminosos foram mortos em cinco locais diferentes. No local 4, que é no sítio onde um dos criminosos fez refém uma família havia indício de excesso. Nós destacamos que o irmão da vítima, que é policial civil de Itapevi, em termos de declaração na Corregedoria e também no Condepe (Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana), coloca que participou de uma negociação com o sargento que estava no local para convencer o irmão a se entregar. Ele disse que convenceu o irmão a se entregar, deixar as armas e que o Jean foi morto sem resistência. Em depoimento à Polícia Civil, esse sargento acaba reconhecendo que houve uma negociação. Evidente que o final da ocorrência tem divergências com o que o irmão falou e o sargento, mas o sargento reconhece que conversou por telefone com o irmão da vítima. Ele [Jean] foi morto a uma distância de até 30 cm, [evidenciado pelos] sinais de “tatuagem”. Em outros três mortos, segundo os laudos necroscópicos, havia sinais de “queimadura”. Sinais de queimadura, pela medicina legal, significa que o disparo foi efetuado a uma distância de até 15 centímetros. Nesses quatro casos, a Ouvidoria indica que há indícios do que não houve resistência por parte das vítimas.  

    Ponte – É possível falar em execução, já que em alguns casos os suspeitos não resistiram a prisão? 

    Benedito Mariano – Eu não falo em execução, eu não uso esse termo. O termo é exatamente esse: quatro foram mortos sem resistência. É isso que está no relatório. Eu acho que execução tem um outro contexto, eu não uso esse termo na Ouvidoria. [Em] Quatro [vítimas] há indícios de que foram mortos sem resistência.  

    Benedito Mariano: ‘Não uso o termo execução. Quatro vítimas apresentam indícios de que foram mortas sem resistência’ | Foto: reprodução

    Ponte – O relatório aponta que houve desrespeito a pelo menos dois fundamentos do Método Giraldi: proporcionalidade e qualidade. O senhor pode explicar um pouco sobre isso?

    Benedito Mariano – O método Giraldi [base teórica e prática do treinamento de policiais militares] é muito importante no ponto de vista de preservar a vida dos policiais. A partir do uso do método Giraldi, os policiais passaram a ter mais condições de defesa, de se preservar. Nesse sentido, o método Giraldi, que tem uma parte muito prática, protege mais os policiais. Entretanto, o método também apresenta uma nova filosofia de ação para o policial quando usa a arma de fogo. O entendimento da Ouvidoria é que essa parte filosófica do método Giraldi não foi amplamente desenvolvida na Polícia Militar. Ao priorizar a parte prática da defesa do policial, acho que fica faltando aprofundar a parte dos conceitos da filosofia do método. Há situações em que os policiais alegam que usaram o método Giraldi e, se a gente for ver os conceitos sobre o uso, eles contradizem o próprio conceito. Outro ponto que também destacamos como excesso é o número de tiros nas vítimas. [Foram] em média cinco tiros nos 11 mortos. Em dois deles, 1 teve 8 tiros e outro 10 tiros.  

    Ponte – Houve alguma falha na perícia? 

    Benedito Mariano – O resultado é falho. No relatório que nós fizemos sobre o Uso da Força [Letal Por Policiais de São Paulo e Vitimização Policial] eu entrevistei o superintendente da polícia técnica e ele me dizia que para não ter resultados falhos da perícia, a superintendência precisava adquirir um equipamento. Ele sugeriu pelo menos três. Nós indicamos que a secretaria comprasse pelo menos um. Com esse equipamento novo, com certeza não teríamos dados contraditórios como esses [de Guararema]. O nome do equipamento moderno é microscópio eletrônico de varredura e Stup, que custa, em média, R$ 2 milhões. Mas ele é fundamental, porque é basicamente 99.9%, segundo o superintendente, de resultado assertivo da perícia. Evidente que há uma contradição no laudo de perícia. Mas não acho que é fraude ou má fé, é equipamento. [De acordo com a perícia] É como se os policiais não tivessem atirado. Os laudos de local e necroscópicos foram fundamentais para a Ouvidoria analisar a ocorrência, estabelecer a distância máxima e mínima que os projéteis foram disparados nos corpos das vítimas.  

    Ponte – O que é possível dizer sobre as evidências de que foi uma emboscada, ou seja, a operação do MP com a Rota teria servido unicamente para emboscar os criminosos e não para evitar o assalto ou algo do tipo? 

    Benedito Mariano – O que eu tenho para falar disso está no relatório. A Polícia Militar teve informação anterior, sobre a suposta ação dos criminosos na região e nós só fizemos um questionamento se esta informação privilegiada poderia ou não garantir, por exemplo, que todos [os assaltantes] ou a maioria [deles] fosse preso antes das explosões. Isso é um questionamento, uma pergunta. Eu não tenho elementos para dizer que houve uma emboscada. [Mas posso dizer] Com certeza a polícia teve informação anterior.

    Ponte – Qual seria a ação ideal da Polícia Militar em um caso como o de Guararema? 

    Benedito Mariano – A legitimidade da ação policial é pelo enfrentamento, não é uma ação cotidiana de morte em decorrência de intervenção policial. Nós reconhecemos que a polícia enfrentou uma quadrilha fortemente armada. Essa é a legitimidade da ação. Mas, evidentemente, houve excessos. No final, a gente conclui que não levou em conta o conceito de proporcionalidade e qualidade. Proporcionalidade pelo número de projéteis nas vítimas e qualidade na ação como um todo. Toda ocorrência com morte, na avaliação da Ouvidoria, não é uma boa ocorrência. Esse termo de ideal não existe. Mas você pode ter uma ocorrência que não é boa e levou em consideração os conceitos fundamentais do método [Giraldi]. Nessa, em particular, dois não foram considerados, no nosso entendimento. Nesse caso, no geral, houve excesso de legítima defesa pela complexidade da ocorrência. A gente demorou quatro meses para concluir o relatório, porque tinha mais de 350 páginas de documento. É uma ocorrência complexa, por isso que houve mais dificuldade de avaliação para chegar a esse relatório preliminar.  A Ouvidoria tem confiança que a Corregedoria vai apurar de maneira adequada essa ocorrência e levar em conta esse relatório.

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