‘Padre Ticão sintonizava o tipo de igreja em que a gente acredita, unindo oração com ação’

    Voz ativa em diversas lutas sociais, da moradia à descriminalização das drogas, pároco de Ermelino Matarazzo, falecido no primeiro dia de 2021, propunha uma igreja tolerante e compreensiva

    Padre Ticão, falecido aos 68 anos| Foto: Reprodução

    O primeiro dia do ano começou com uma notícia triste para os defensores de direitos humanos: Antonio Luiz Marchioni, o padre Ticão, morreu após uma parada cardíaca, aos 68 anos. Ele era sacerdote da Paróquia de São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo, na zona leste da cidade de São Paulo.

    “Padre Ticão sintonizava o tipo de igreja que a gente acredita e depositamos as nossas esperanças, que é unir a oração com a ação”, definiu a socióloga Tabata Tesser, 25 anos, integrante do coletivo Católicas pelo Direito de Decidir, à Ponte.

    Em agosto de 2018, padre Ticão recebeu ameaças pelas redes sociais e por telefonemas após receber as Católicas para discutir aborto e religiosidade. Tabata lembra aquele dia. “Ele foi muito objetivo na época: a gente só vai falar de aborto e religião porque ela é uma realidade da nossa paróquia, ela é uma realidade de milhares de meninas, mulheres e mães que já passaram por algum percalço, a igreja não pode se isentar de falar sobre esse tema”, afirma.

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    “Nós fomos conversar com jovens, com mães, com párocos, com fiéis que estavam lá sobre o assunto, falando, sobretudo, que não poderíamos ter uma lógica policialesca com as mulheres que decidissem interromper a gravidez, que esse era um tema urgente para ser tratado nas paróquias, porque as mulheres que mais abortam no Brasil são mulheres cristãs, sobretudo católicas”, completa.

    Além de propor debates alinhados com o feminismo, padre Ticão era a favor o uso da cannabis medicinal e discutia a descriminalização das drogas. “Ele pensava em debates que são essenciais para a vida dos fiéis. Sabemos que muitas mães e pais convivem com esse debate [drogas] dentro de suas famílias”, argumenta Tabata.

    “Ele também pensava no uso da cannabis medicinal como transformação da vida de milhares de crianças e pessoas que tem algum tipo de problema e precisavam desse tratamento. Padre Ticão era essa pessoa que nunca escondeu as pautas que são importantes para o povo, mesmo tendo que enfrentar, muitas vezes, os moralismos religiosos”, completa.

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    Tabata afirma que padre Ticão era um profeta e lembra com carinho da última mensagem que o pároco a enviou, há cinco dias. “Ele me falava sobre o curso de cannabis medicinal virtual que a paróquia vai organizar esse ano. Eu li e reli a mensagem de novo e fiquei pensando que a vida é um sopro, mas que nós vamos honrar até o último minuto toda a sua profecia e a sua coragem, que é o que move hoje as Católicas de colocar tantos debates essenciais no centro da igreja e da sociedade”.

    Padre Ticão em sua paróquia em encontro sobre cannabis medicinal | Foto: Arquivo pessoal/Tabata Tesser

    O professor Emanuel Giuseppe Gallo Ingrao, 56 anos, integrante da Associação de Direitos Humanos do Alto Tietê, também lembra com saudade de padre Ticão, que conhecia desde 1979. “Conheci ele ainda era seminarista na Igreja de Nossa Senhora Aparecida, na Vila Granada. Depois ele foi para a Paróquia de São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo, quando foi ordenado padre por Dom Paulo Evaristo Arns”.

    Para Emanuel, padre Ticão era uma grande liderança da zona leste e lá mantinha uma “igreja viva e presente”. “Ele era uma pessoa atuante na defesa dos direitos humanos, do movimento de educação, de moradia, de trabalho, de escolas públicas de qualidade para todos. Se hoje Ermelino Matarazzo é desenvolvida, tem um dedinho do padre Ticão, que cobrava uma posição dos governantes”, explica.

    “Para mim, padre Ticão não morreu, ele está mais vivo, porque ele está presente na luta de todos aqueles que sonham com um país melhor, com respeito aos direitos humanos”, afirma Emanuel.

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    Para o também professor Douglas Samoel Fonseca, 38 anos, morador de Ermelino, padre Ticão sempre lutou, dentro da igreja, “por um pluralismo religioso, diálogo, tolerância e compreensão, principalmente com os vulneráveis e invisíveis na sociedade”. 

    “Em diversos momentos da missa, sempre havia o compromisso com a teologia da solidariedade, da comunhão, do repartir o pão com todos. Esse é o legado de padre Ticão. No território, em Ermelino Matarazzo, Ticão ouvia a comunidade, falava do acesso para a comunidade, pautou a USP Leste. Ticão sempre falava: a zona leste não é uma cidade, é um país”, afirma.

    A vendedora Luciana Jorge da Silva, 48 anos, coordenadora do Polo Cannabis Medicinal da Baixada Santista, se lembra de quando padre Ticão foi até Santos, litoral sul do estado de São Paulo, para participar de uma roda de conversa sobre cannabis, em novembro de 2019.

    “Veio, falou de saúde, comeu um peixinho com a gente e foi embora. O padre não personalizava as pessoas, ele não discriminava. Ele encheu a igreja dele de pessoas da cannabis medicinal e de pessoas que fumam maconha. Ele nos ensinava a ter coragem. Por conta dele, temos todas de conversa toda semana sobre cannabis”.

    Luciana aponta que padre Ticão colocava em ação tudo o que a bíblia dizia. “A fé dele vinha junto com a ação. Ele foi uma linha de frente muito importante. Ele acreditava em todos os seres humanos. O padre nos ajudou a resistir a tanto ódio”.

    Repercussão

    A morte de Ticão comoveu quem o conhecia. Nas redes sociais, a manhã do sábado foi tomada por homenagens a ele. O sociólogo Rudá Ricci, presidente do Instituto Cultiva, fez uma sequência de publicações no Twitter lembrando quem era o sacerdote.

    “Algumas pessoas parecem imortais. Pela sua energia, pela firmeza, pela paixão, parecem indestrutíveis, líderes de tarefas sucessivas, urgentes, sem fim. Padre Ticão era uma dessas pessoas e confesso que a notícia de sua morte parece inverossímil. Ticão era uma pessoa diferenciada, muito engajada na mudança social”, afirmou Rudá.

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    “Esse é o amigo que a zona leste paulistana acaba de perder. Imagino a multidão que estará no seu velório. O sentido de vazio e orfandade que sua morte vai deixar. Eu prefiro continuar nutrindo esta estranha sensação de que esta notícia não é real”, continuou.

    O padre Julio Lancellotti, postou uma foto de Ticão em seu Instagram com a legenda: “Minha homenagem e oração pelo amigo e irmão Pe. Ticão falecido neste primeiro dia do ano”.

    O prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), também homenageou o pároco, a quem chamou de “grande defensor da população mais carente da zona leste de São Paulo”. “Um guerreiro na luta pela diminuição das desigualdades sociais. Descanse em paz”, afirmou em seu Instagram.

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