“Caminhada São Paulo Negra” retornou às atividades após sete meses sem o city tour por conta da pandemia, e foi seguida por PMs que acreditaram ser uma “manifestação”; organizador aponta racismo na ação
Há dois anos, a empresa Black Bird organiza a “Caminhada São Paulo Negra”, um city tour pelo centro da cidade de São Paulo para falar da história negra da capital paulista. Por conta da pandemia, o passeio ficou sete meses parado e retornou neste sábado (24/10).
Com metade do público que normalmente participa do passeio e com as medidas de segurança contra o coronavírus, como distanciamento social e uso de máscaras, a experiência turística tinha tudo para acontecer tranquilamente. Mas, no ponto de partida, na Praça da Liberdade, dois policiais militares abordaram o grupo e avisaram: vamos acompanhar o trajeto.
O produtor cultural Heitor Salatiel foi conversar com os PMs enquanto o jornalista Guilherme Soares Dias, do Guia Negro, continuava a sua fala de abertura, apesar do nervosismo de ter o passeio interrompido pela Polícia Militar. “Os policiais disseram que tinha recebido um ofício de que haveria uma manifestação, por isso iriam acompanhar a caminhada”, conta Guilherme à Ponte.
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“O Heitor tentou mostrar algumas documentações de que não era uma manifestação e sim um city tour, mas eles não deram muita bola, que iriam acompanhar a gente. Eles perceberam que não era uma manifestação: éramos 12 pessoas caminhando entre pontos turísticos. Eles ignoraram o fato de não ser uma manifestação e continuaram nos seguindo durante três horas. Fomos filmados durante esse tempo todo, foi bastante constrangedor”, lamenta.
Na hora, o jornalista começou a pensar o que podia estar errado no passeio para que a PM quisesse acompanhá-los. “Pensei que podia ser por conta da pandemia. Mas não estávamos aglomerados, estávamos em poucas pessoas, mantendo distanciamento, todo mundo de máscara e não era esse o questionamento deles”.
Mas, explica Guilherme, aos poucos sua ficha foi caindo: era um caso de racismo. “Durante a caminhada, passamos por uma bandeirada de uma candidata à vereadora, acompanhada de cerca de 30 pessoas, algumas sem máscara, ali entendemos que não tinha a ver com pandemia”.
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“O primeiro racismo é eles entenderem que um evento com esse nome, anunciado como city tour, era uma manifestação. As pessoas que sempre acham que tem alguma coisa ligada a cultura negra é uma manifestação. A Black Bird é uma empresa, fazemos um negócio. Era visível naquele grupo que não tinha ninguém se manifestando”, define.
Os dois PMs da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) acompanharam o grupo até o final. Foram três horas de perseguição. “Em um determinado momento entramos na Casa Preta Hub, no Anhangabaú, e eles esperaram do lado de fora. No fim eles abordaram a gente de novo questionando a manifestação, falamos que não era uma manifestação e eles disseram que ouviram a gente falando da história negra e tentaram entender o que estávamos reivindicando”.
O trajeto do passeio turístico começa na Praça da Liberdade, passa pela Sé, pelo Largo São Francisco, atravessa a passarela do Terminal Bandeira até o Anhangabaú. De lá, o city tour segue pela Rua 7 de Abril, passa pela Galeria do Reggae e termina no Largo do Paissandú. Em cada um desses pontos, os organizadores contam histórias de personagens negros, como Luiz Gama e Carolina Maria de Jesus, e conta sobre a importância dos locais para a história negra.
“A gente tá bem acostumado com os imprevistos, porque estamos na rua, mas a questão da polícia foi muito nova e surpreendente. Quiseram que a gente assinasse uma espécie de termo do serviço deles e a gente não fez. As pessoas que estavam na caminhada meio que auxiliaram nessa negociação verbal e acabamos não assinando o termo”, conta Guilherme.
Com a situação “bastante constrangedora”, Guilherme não conseguiu ir até uma delegacia registrar o caso, por isso optou pelo registro eletrônico. Agora ele só quer saber uma coisa: entender de onde veio a ordem de acompanhar o passeio. “A gente tava sendo cerceado ao fazer o nosso trabalho, só queríamos fazer isso tranquilamente e não como nos tempos de ditadura que o que você dizia era filmado por policiais”.
“Esse trabalho que fazemos oferecemos para empresas que querem discutir diversidade, já que a polícia não consegue entender o valor desse trabalho gostaríamos de convidá-los para fazer a caminhada, porque é importante que eles entendam as histórias e saibam que o trabalho é importante. Em vez de criminalizar, eles precisam valorizar”.
Outro lado
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública e a assessoria da Polícia Militar e aguarda retorno.
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