PM que matou adolescente negro com tiro na cabeça é acusado de homicídio qualificado

Denúncia do Ministério Público foi acolhida pelo Tribunal de Justiça, que determinou que sargento Nelson Veiga responda processo em liberdade; Igor Ramos, 16, foi morto após ter corrido de abordagem na zona sul de SP em abril de 2020

Igor tinha 16 anos e estudava no 1º ano do ensino médio | Foto: arquivo pessoal

O Ministério Público Estadual denunciou e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) acolheu a acusação de homicídio qualificado contra o sargento Nelson Gonçalves da Veiga Almeida pela morte do estudante Igor Rocha Ramos, em abril de 2020. O adolescente foi baleado na cabeça após ter corrido de uma abordagem no Jardim São Savério, bairro da periferia da zona sul da capital paulista. A decisão do TJ-SP foi publicada em 3 de agosto.

O promotor Felipe Eduardo Levit Zilberman entendeu que a morte foi praticada por motivo fútil, por conta do estudante ter corrido da abordagem, e por meio que dificultou a defesa da vítima porque o tiro foi “efetuado de cima para baixo, pelas costas e sem que [Igor] pudesse esboçar qualquer reação”. Zilberman sustenta que o rapaz foi executado e que o sargento plantou uma arma no local. “Após a consumação do delito, Nelson apresentou às autoridades responsáveis pela apuração do fato o revólver calibre 38, numeração suprimida, como se tal arma estivesse em poder da vítima Igor, de modo a tentar justificar sua conduta. Tal inovação teve por desiderato induzir em erro o juiz no presente processo penal”, argumentou. Ele também pediu a prisão preventiva (sem prazo determinado) do PM.

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O juiz Roberto Zanichelli Cintra, da 1ª Vara do Júri, aceitou a denúncia, mas negou a solicitação de prisão preventiva argumentando que o sargento colabora com as investigações, “não demonstrou oposição a realização das diligências” nem os parentes de Igor ou testemunhas relataram possíveis ameaças. O magistrado determinou que Nelson cumpra medidas cautelares enquanto as audiências não são agendadas: ser afastado do patrulhamento nas ruas e exercer atividades administrativas, não realizar contato com os familiares da vítima ou testemunhas, além de manter distância mínima de 800 metros delas, e não mudar de endereço ou ausentar-se da cidade sem autorização.

Naquele dia 2 de abril de 2020, por volta das 13h30, a cobradora de ônibus e mãe de Igor Ana Paula Rocha, 45, relatou à reportagem havia pedido para o filho ir à padaria comprar cigarros, já que estava afastada do trabalho por ter se contaminado com a Covid-19. Não deu tempo nem do adolescente chegar ao estabelecimento: ela conta que dez minutos depois o filho foi morto. Na época, testemunhas haviam relatado à Ponte que Igor subia uma travessa quando os PMs anunciaram a abordagem e o rapaz teria saído correndo. “O Igor tinha me falado que esse policial que o matou ameaçou ele, dizendo que quando colocasse a mão nele, não escaparia mais”, denunciou a mãe na época. De acordo com Ana Paula, ele havia se “ajeitado” depois de ter sido internado em 2019 na Fundação Casa por roubar um carro. Ela aponta que esse teria sido o motivo da ameaça, que teria acontecido dois meses antes.

Na ocasião, testemunhas relataram à Ponte que o adolescente não estava armado e que policiais militares levaram câmeras de segurança da rua e ainda ameaçaram e agrediram as pessoas que protestavam logo em seguida à morte do rapaz. Um vídeo, na época, gravado por um morador gritando “mataram um menino inocente” mostra policiais segurando uma familiar. A mãe Ana Paula também havia mostrado marcas roxas na perna para a reportagem, denunciando ter sido agredida pelos policiais. A família, acompanhada da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, também realizou protestos na época.

Já no boletim de ocorrência, o sargento Juliano Jorge Lopes Barbosa, junto com cabo Ronaldo Santos, do 46 BPM/M, disse que receberam um chamado sobre um “indivíduo armado” na Avenida dos Ourives. A viatura da dupla chegou antes da que havia sido designada para atender a ocorrência. No local, declarou que visualizaram “um indivíduo em atitude suspeita” que, ao ver a viatura, “empreendeu fuga a pé, correndo”. Em seguida, o sargento Nelson Veiga, do mesmo batalhão, saiu da outra viatura e foi atrás do rapaz que “chegou a cair no chão em um declive de acesso a Travessa Ruth de Cabral Troncarelli, mas se levantou e continuou a fuga”. O sargento Barbosa afirma que “foi para uma rua debaixo, com o intuito de fazer um cerco ao indivíduo, sendo que não chegou a ouvir barulho de disparo de arma de fogo”.

Depois, o sargento Barbosa viu o adolescente ferido e o sargento Nelson Veiga lhe disse que “ao se sentir na eminência de ser atingido por disparos de arma de fogo, pois o indivíduo apontou um revólver na sua direção, se viu obrigado a efetuar um único disparo com a sua pistola .40” para “salvaguardar sua vida e repelir injusta agressão”. Segundo o BO, foi apreendido um revólver calibre 38, com duas cápsulas deflagradas e duas intactas que foi recolhida pelo sargento Veiga ao alegar que o rapaz ainda “apresentaria sinais vitais”. O PM disse que Igor não efetuou nenhum disparo. Igor havia sido socorrido ao Hospital Heliópolis, onde faleceu, segundo o documento.

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Porém, no curso das investigações da Polícia Civil, Nelson Veiga disse que quando atingiu Igor, que caiu imóvel no chão, aproximou-se e “fez uma breve vistoria na cintura daquele indivíduo e não localizou o revólver”. Depois, foi à viatura solicitar socorro e que o local foi isolado porque iniciou um tumulto “com moradores ofendendo todos os policiais que ali estavam e queriam passar pelo isolamento”. O sargento também disse que ficou distante e só retornou com a chegada do Corpo de Bombeiros. Ele declarou que um soldado de nome Esposito havia dito “olha chefe a arma, está embaixo dele” e que a recolheu “para não correr o risco de alguém pegar a arma sem que os policiais militares percebessem, arma esta que foi passada para o Comando Força Patrulha, posteriormente se deslocou até a sede do 83º DP”. Nelson disse que viu Igor com um celular na mão e que ele levava a arma na cintura. O aparelho foi apreendido durante a realização da perícia no local.

O bombeiro André Luiz Januário Espósito confirmou que atendeu a ocorrência, sendo que Igor “apresentava batimento cardíaco fraco, em seguida entrou em parada cárdio respiratória, sendo iniciada massagem reanimação”. Quando levantou o corpo do adolescente, afirma que viu a arma embaixo dele e que a entregou ao sargento. Outro bombeiro, de nome Heliton Santana, também disse que viu Esposito encontrar a arma.

Um motoboy, no entanto, disse que cruzou com Igor e viu o momento em que estava andando na travessa, a viatura se aproximou e ele saiu correndo, “ingressando em uma viela e um dos policiais militares começou a gritar para que Igor parasse”. Em seguida, a testemunha disse que “parou sua motocicleta e caminhou até a entrada da viela, viu Igor correndo, com uma das mãos segurando a bermuda e um aparelho celular em outra mão, um policial militar em seu encalço, gritando que para que ele parasse, mas Igor continuou a correr e o policial militar efetuou um disparo, atingindo Igor, que veio a cair”.

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O motoboy disse não ter visto nenhuma arma com o adolescente ou próximo do corpo dele e que, enquanto Igor corria, ele apenas virava a cabeça para trás, não tendo realizado movimento como se virasse para atirar. Relatou que ainda teria ouvido de um PM da Força Tática “ô steve [jargão policial para designar outro policial], não tem nenhuma arma não, ele está segurando o celular” e que saíram “cochichando”, entraram na viatura e saíram do local.

O que diz a polícia

A reportagem procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública, da Polícia Militar e da Oliveira Campanini Advogados Associados, que representa Nelson Veiga no processo, e aguarda uma resposta.

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