PMs matam adolescentes negros já rendidos e com as mãos para o alto, dizem testemunhas

    Mãe de um dos jovens foi ameaçada para não denunciar o caso; policiais alegam resistência. Um dos rapazes mortos ajudava a sustentar 5 irmãos vendendo pipoca, amendoim e água em semáforos

    Caramante
    Gabriel Queiroz Ferreira, 16 anos, ajudava a sustentar 5 irmãos trabalhando como vendedor ambulante – Foto: Álbum da Família

    Familiares, amigos e vizinhos de Gabriel Queiroz Ferreira, 16 anos, e Marcelo Henrique dos Santos Oliveira, 17, jovens negros moradores do Jardim Odete, periferia de Itaquaquecetuba (Grande São Paulo), afirmam que eles foram executados por policiais militares quando foram rendidos em uma abordagem e já estavam com as mãos para o alto. As mortes aconteceram às 17h de sábado (1/10).

    “Vi quando os meninos [Marcelo e Gabriel] estavam com as mãos para cima e, sem nem ter tempo para falar nada, os policiais atiraram neles”, contou uma moradora do Jardim Odete à reportagem. Com medo de sofrer represálias, ela pediu para seu nome ser preservado. “Foi tudo muito rápido. Assim que atiraram, eles mandaram a gente sair de perto. Garanto para o senhor, Marcelinho e Biel não estavam armados. Foi forjado”.

    Gabriel vivia com a mãe, Vanessa Queiroz Santos, e mais cinco irmãos, todos mais novos do que ele, e ajudava no sustento da família com uma renda diária que variava de R$ 20 a R$ 30, obtidos com a venda de água, pipoca e amendoim em um semáforo de Itaquaquecetuba.

    Nos minutos seguintes aos tiros contra Marcelo e Gabriel, PMs passaram a vasculhar as casas da rua Venezuela em busca de câmeras de segurança que pudessem ter gravado a ação deles. Ainda segundo moradores do Jardim Odete, militares entraram em uma residência e conseguiram acessar um sistema de gravação e apagaram as imagens.

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    Após enterrar o filho mais velho, na segunda-feira (3/10), Vanessa passou a receber recados ameaçadores para que não acionasse a imprensa nem fosse atrás da verdade sobre a morte de Gabriel. “Policiais passaram a espalhar pelo bairro que iam me pegar também, caso não deixasse tudo quieto. Era para não procurar a imprensa”, contou à reportagem.

    Ainda segundo a dona-de-casa, os mesmos policiais que a ameaçaram disseram que um outro jovem do Jardim Odete, identificado entre os moradores pelo apelido de “Kadu”, é o próximo de uma lista de pessoas marcadas para morrer na periferia de Itaquaquecetuba.

    Os PMs responsáveis pelas mortes de Marcelo e Gabriel são os cabos Paulo Rogério Guiaro e José Osvaldo de Lima, ambos de 41 anos e da 1ª Companhia do 35º Batalhão da PM.

    Na versão dos dois militares, Marcelo e Gabriel foram mortos porque estavam em um carro roubado e não se renderam quando receberam voz de prisão, após perseguição pelas ruas do Jardim Odete.

    Segundo o PM Osvaldo, ele e Guiaro patrulhavam o bairro quando foram surpreendidos por uma motocicleta em alta velocidade que era acompanhada de perto por um Hyundai HB 20. Durante a perseguição, a moto sumiu e os PMs decidiram ir atrás do carro.

    Ainda de acordo com o cabo Osvaldo, na perseguição, o Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) informou, via rádio, que o HB 20 era roubado e, na rua Cândido Portinari, o motorista atirou quatro vezes contra o carro da PM, mesmo dirigindo em alta velocidade.

    Como estava no banco dianteiro do passageiro, Osvaldo, contou ele, atirou duas vezes na direção do veículo. Ao mesmo tempo, a moto que havia sumido nas ruas do Jardim Odete reapareceu em uma esquina e o piloto disparou “duas ou três vezes” contra os PMs, que não foram atingidos novamente.

    Já na rua Venezuela, o HB 20 parou de repente, conforme a versão do cabo Osvaldo, mas o carro da PM passou “uns dois metros” por ele antes de estacionar rapidamente. Osvaldo e Guirao disseram ter visto o motorista do HB 20 armado e atiraram, “quase que ao mesmo tempo”, contra os dois jovens. Marcelo estaria, segundo os militares, dirigindo o HB 20 e com um revólver calibre 38. Gabriel teria, pela versão dos militares, a única colhida pela Polícia Civil, sobre o suposto enfrentamento, uma arma de brinquedo.

    O revólver calibre 38 apresentado pelos PMs como apreendido com Marcelo tinha quatro munições disparadas e uma picotada.

    Dono da motocicleta que passou em alta velocidade pelo carro da PM, segundo os cabos Osvaldo e Guirao, o técnico em informática Claudio Nascimento Lima, 42 anos, disse ter reconhecido, sem especificar quem, um dos dois jovens como parte um grupo de quatro jovens que roubaram a moto. Quando as mortes de Gabriel e Marcelo eram registradas, a Polícia Militar encontrou a motocicleta queimada, também em Itaquaquecetuba. 

    Moradores do Jardim Odete relataram à reportagem que as armas que os PMs disseram ter encontrado perto de Marcelo e Gabriel foram colocadas pelos militares depois de eles terem sido baleados.

    “Em uma foto do meu filho caído, logo após os tiros contra ele, dá para ver nitidamente que só tem o celular dele perto. Depois, quando mandaram os vizinhos saírem de perto, apareceu uma arma lá”, disse Vanessa, mãe de Gabriel. A imagem, segundo a dona de casa, foi descoberta quando grupos de PMs a postaram na rede social Facebook.

    Na noite de domingo (2/10), um ônibus foi incendiado no Jardim Odete. A Polícia Civil acredita que o ataque tenha sido uma represália contra a morte de Gabriel e Marcelo.

    A reportagem solicitou entrevistas com os PMs Osvaldo e Guirao, mas a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública, comandada pela empresa terceirizada CDN Comunicação, não respondeu ao pedido.

    A Secretaria da Segurança Pública respondeu com a seguinte nota:

    A Polícia Civil de Itaquaquecetuba instaurou inquérito para apurar a ocorrência, que foi registrada como ‘roubo’, ‘tentativa de homicídio’, ‘Morte decorrente de oposição à intervenção policial’ e ‘apreensão e entrega de veículo’. As armas dos acusados e dos policiais foram encaminhadas para a perícia. A motocicleta e o carro roubados passaram por perícia e foram devolvidos para os proprietários, assim como documentos e objetos pessoais. As vítimas foram ouvidas e fizeram o reconhecimento fotográfico dos suspeitos. Foi requisitada a coleta de exame residuográfico nos adolescentes, bem como a realização de exame necroscópico.

    A Corregedoria da Polícia Militar informa que foi instaurado Inquérito Policial Militar para investigação da ocorrência, como é de praxe em ocorrências com morte envolvendo agentes da Corporação. Agentes da Corregedoria estão em Itaquaquecetuba acompanhando a investigação da Polícia Civil. Os policiais envolvidos estão afastados do trabalho operacional.

    O mesmo aconteceu com as seguintes perguntas encaminhadas ao secretário da Segurança Pública da gestão de Geraldo Alckmin (PSDB), Mágino Alves Barbosa Filho:

    1º – Por quais motivos Marcelo e Gabriel foram mortos?

    2º – O que o DHPP (departamento de homicídios), da Polícia Civil de SP, tem a informar sobre as mortes de Marcelo e Gabriel? Qual o nome do delegado do DHPP que investiga as mortes dos dois jovens?

    3º – O que a Corregedoria da PM tem a informar sobre as mortes de Marcelo e Gabriel?

    4º – Segundo testemunhas, os dois jovens foram mortos quando estavam com as mãos para o alto e sem oferecer qualquer tipo de resistência à abordagem dos PMs. O que as investigações da Corregedoria da PM e o DHPP têm a informar sobre isso?

    5º – Familiares, amigos e vizinhos de Marcelo e Gabriel informaram que câmeras de segurança da rua onde eles foram mortos foram danificadas por PMs? O que o DHHP e a Corregedoria da PM têm a informar sobre isso?

    6º – Familiares, amigos e vizinhos de Marcelo e Gabriel informaram que PMs do mesmo batalhão dos responsáveis pelas mortes dos jovens voltaram ao Jardim Odete e ameaçaram testemunhas do caso. O que o DHPP e a Corregedoria da PM têm a informar sobre isso?

    7º – Familiares, amigos e vizinhos de Marcelo e Gabriel informaram que PMs do mesmo batalhão dos responsáveis pelas mortes dos jovens voltaram ao Jardim Odete e disseram que um rapaz identificado como “Kadu” será o próximo a ser morto por eles. O que o senhor, o DHPP e a Corregedoria da PM têm a informar sobre isso?

    8º – O que o comandante-geral da PM de SP, coronel Ricardo Gambaroni, tem a informar sobre as mortes de Marcelo e Gabriel?

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