Policiais afirmam que Lucas Henrique Vicente teria arrancado a arma de um dos PMs antes de ser baleado; família declarou que abordagem foi truculenta
Vídeos gravados por uma testemunha mostram Lucas Henrique Vicente, 27, em cima de um policial militar enquanto outro PM lhe dá ao menos dois chutes. Uma mulher vestida de roxo se coloca na frente e é puxada para trás pelo braço por esse mesmo policial. Em uma outra imagem mais próxima dos quatro, essa mesma cena acaba fora do alcance da câmera e mostra policiais descendo de uma outra viatura que chega ao local. A pessoa que filma fica distante e não é possível ver com clareza o que acontece, até que se escuta três disparos. “Matou o cara”, diz o homem que gravava e se esconde ao ouvir os tiros.
As filmagens foram divulgadas nas redes sociais e exibidas pela TV Record na segunda-feira (21/2). O caso aconteceu no dia anterior, na Rua São João de Sapucaia, região da Brasilândia, na zona norte da cidade de São Paulo. Ao telejornal, a esposa de Lucas, Leticia Ariel do Carmo, 23, disse que estava com ele e os dois filhos no carro e que foram abordados pela polícia quando voltavam para casa, após comprar mercadorias para um churrasco. “Ele estava sem camisa porque estava calor e acho que por isso que a polícia enquadrou a gente”, afirma. “A gente desceu do carro, o Lucas começou a conversar [com os PMs], passou os dados, passei os meus, deixou as crianças do lado, e quando ele virou assim, os policiais começaram a agredir e foi essa confusão toda”.
Ela também disse que tentou interceder para que ele não fosse agredido e que teria sido xingada pelos policiais. “[Ele dizia] Sai daqui, sua vagabunda, sai daqui sua desgraçada. Eu falei ‘não, solta ele, não mata ele'”. À TV Globo, Letícia declarou que os policiais ainda teriam proferido discursos racistas, como chamar Lucas de “macaco” e de serem truculentos também com as crianças.
O enterro da vítima aconteceu nesta terça-feira (22/2), no Cemitério da Vila Nova Cachoeirinha. À TV Record, Alexandra Casimiro, mãe do rapaz, relatou que o filho trabalhava num bar e, por ter emprestado o carro para uma pessoa que acabou usando o veículo para praticar um roubo, Lucas ficou “marcado” e costumava ser abordado por policiais. Ela apontou que o filho não tinha relação com o crime.
De acordo com o boletim de ocorrência que a Ponte teve acesso, os policiais envolvidos no caso são Bruno Eduardo Galante Teixeira, 24, Davyd Ariel Santos Lima, 24, e Paulo Teixeira Santos, 28, todos da 4ª Companhia do 9º Batalhão da PM Metropolitano, sendo que os dois últimos disseram ser autores dos disparos. Esse batalhão não utiliza câmeras na farda. Como um dos mecanismos da Lei do Pacote Anticrime determina que policiais envolvidos em crimes dolosos contra a vida devem prestar depoimento após serem citados e constituírem um advogado, quem narra a versão que teria sido dita por eles é o cabo André Martins Fernandes, que não teve participação e é do mesmo batalhão.
Segundo eles, por volta das 12h28, os soldados Bruno e Davyd decidiram abordar um carro Citroen branco que era ocupado por Lucas e Letícia. Em pesquisas, não teriam encontrado irregularidades em relação ao veículo, mas os dados de Lucas indicavam que ele era procurado pelo crime de roubo e que foi dada voz de prisão. Segundo o cabo André, Lucas passou a “demonstrar excesso de nervosismo e agressividade” e, no momento em que o soldado Bruno iria algemá-lo, “Lucas se desvencilhou e tentou correr”, mas foi impedido por Davyd e entraram em luta corporal.
O soldado Bruno teria chamado reforço por rádio e tentado ajudar o colega a conter Lucas, que teria tentado morder Davyd, tendo se desvencilhado dele e entrado em luta corporal com Bruno. O cabo André alegou que Leticia passou a agredir os policiais “com socos e chutes na região do rosto”, “tentando auxiliar Lucas para escapar da prisão”. Em seguida, Lucas teria mordido a mão de Bruno e puxado a arma dele que estava no coldre. O policial afirma que “a população local passou a hostilizar os policiais militares fazendo uma aglomeração”.
O cabo aponta que depois chegaram mais dois policiais, um deles o cabo Paulo Teixeira Santos e o outro um soldado identificado apenas como Castro, que tentaram apartar a situação. Na versão do policial, Lucas “conseguiu arrancar a pistola do coldre” do soldado Bruno e a apontou para o cabo Paulo e forçou o disparo “que não se efetuou porque a pistola estava travada”. E que, diante de “eminente agressão” [grafado assim no original], Paulo deu um tiro e Davyd deu dois. Lucas caiu ferido e teria largado a pistola, momento em que a população teria se aproximado e foi contida pelos policiais. O cabo André afirma que a arma foi recolhida do local pelo cabo Paulo porque a população teria tentado “arrebatá-la”. Foi chamado o socorro, mas Lucas não resistiu. Os policiais também foram levados ao Hospital da PM por conta das lesões relatadas e acabaram liberados.
As armas dos três policiais militares, sendo pistolas duas Glock e uma Taurus, todas calibre .40, foram apreendidas. A Glock usada pelo soldado Bruno, segundo a descrição do boletim de ocorrência, estava “danificada” assim como o coldre, o carregador e o cordão do fiel retrátil, que é um fio que prende a arma ao coldre.
Também foi feita uma coleta de SWAB nessa arma, que é a extração de material biológico usando um cotonete, para verificar se há material de Lucas na pistola do policial. O registro não identifica onde ele foi atingido pelos tiros, já que o laudo necroscópico ainda não foi disponibilizado. Segundo o boletim de ocorrência, a Polícia Civil não localizou câmeras de segurança na rua onde aconteceu a morte de Lucas, e que Letícia deixou o local e ainda não prestou depoimento.
No DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil), foi verificado que havia um mandado de prisão contra Lucas expedido em 21 de janeiro por conta de uma investigação de roubo ocorrido em dezembro de 2021. Nesse caso, de acordo com os autos desse processo, um homem foi abordado dentro do carro de Lucas nas imediações do prédio onde ocorreu um roubo contra quatro pessoas que descarregavam sacos de cimento e, em uma abordagem policial, teria admitido o crime e apresentou os aparelhos celulares roubados. As vítimas também teriam reconhecido Lucas como um dos autores do roubo por meio de uma foto de RG dele que se encontrava no Citroen. No entanto, como já apontado em reportagens da Ponte, o reconhecimento por foto não deve se basear como prova única, além de não seguir os parâmetros do artigo 226 do Código de Processo Penal.
Lucas era egresso do sistema prisional desde maio de 2020, quando conseguiu o livramento condicional por ter cumprido pena por porte ilegal de arma. A mãe do rapaz, à TV Record, falou que ele tinha cumprido o que devia, estava trabalhando no bar no momento do roubo e retomando a vida. Além disso, denunciou ter sido agredida pelos PMs quando chegou ao local onde o filho estava baleado. “[Eles disseram] se a senhora se aproximar mais um pouquinho, eu vou prender a senhora. [Eu disse] ‘Não prende não, já mata porque você acabou de matar’. Eu cheguei mais um pouquinho, ele me pegou e me jogou no chão”.
A Ponte não conseguiu localizar Leticia nem os familiares de Lucas.
O ouvidor das Polícias em exercício Elizeu Soares Lopes disse em nota que solicitou a prisão preventiva dos PMs envolvidos e acompanhamento do Ministério Público. “Salvo melhor juízo, me parece uma execução pois o rapaz já estava imobilizado”, declarou.
O que diz a polícia
A Ponte procurou a assessoria da PM, que enviou a seguinte nota:
A Polícia Militar informa que, no dia 20, policiais militares abordaram o condutor de um veículo, que era procurado pela justiça pelo crime de roubo. Ao ser informado a respeito de sua prisão, o abordado partiu em direção à equipe, agredindo e mordendo um dos policiais. Além disso, subtraiu a arma de um policial e a apontou em direção aos outros que estavam em apoio no local. Diante desse cenário, os policiais efetuaram disparos na direção do criminoso, vindo a atingi-lo. Ele foi socorrido pela unidade de resgate ao hospital, onde faleceu.
Os policiais feridos com lesões e escoriações também foram socorridos. Tanto o indivíduo, quanto sua acompanhante, possuem histórico de passagens pela polícia e foi possível verificar através dos sistemas inteligentes que o veículo já havia sido utilizado em outros crimes.
O DHPP dará continuidade às investigações, bem como a Polícia Militar através de competente inquérito policial-militar.