PMs matam suspeito e se recusam a entregar armas para delegado

    Justiça atendeu a pedido do Ministério Público e obrigou policiais militares a entregarem armas para os investigadores; presidente de Sindicato dos Delegados diz que PM ‘rasga a Constituição Federal’

    Comando da PM nega entregar armas para Polícia Civil investigar morte | Foto: Reprodução/SSP-SP

    Dois policiais militares, o capitão Flávio Soares de Souza e o cabo Magno Alves de Jesus, se recusaram a entregar para a Polícia Civil as armas que usaram para manter um suspeito, no dia 25 de setembro, em Diadema (Grande SP). Por lei, cabe à Polícia Civil fazer a investigação criminal dos homicídios dolosos (com intenção) de civis mortos por PMs.

    A dupla de policiais militares disse à Dise (Delegacia de Investigações sobre Entorpecentes) de Diadema que havia entregado as armas para o comando do 24º Batalhão de Polícia Militar Metropolitana, que faria a apuração administrativa do delito. O comandante da unidade, major Cléber Ribeiro Ullman, teria confirmado ao delegado a apreensão das armas, alegando ordens superiores. 

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    Com isso, o delegado Alexandre Fuchikami Brisola entrou com uma representação pedindo para que a Justiça mandasse o Batalhão entregar as armas para a Polícia Civil dar prosseguimento nas investigações. O Ministério Público de São Paulo, em documento assinado no dia 30 de setembro, pela promotora de Justiça Andrea Maria Coelho Berti Rollo, pediu à Justiça que determinasse a entrega das armas para os investigadores da Dise. 

    Segundo a promotora, “embora não conste tal informação dos autos, certo é que a apreensão das armas de fogo pela própria Polícia Militar foi baseada não no disposto no artigo 185 do CPPM (Código de Processo Penal Militar)” e cita uma resolução de 2017, do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, que autorizou a PM recolher objetos em crimes praticados por policiais militares. 

    “Porém, a meu ver, esta resolução do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo é flagrantemente inconstitucional e ilegal. Isto porque, a morte de civil em decorrência de conduta de militar é apurada pelo Tribunal do Júri”, explicou a promotora no documento. 

    Na sexta-feira (2/10), a juíza Maria da Conceição Pinto Vendeiro aceitou o pedido e determinou que as armas, duas pistolas Glock .40, fossem entregues à Polícia Civil.

    Para a delegada Raquel Kobashi Gallinati Lombardi, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, o procedimento dos policiais militares representa “mais uma grave tentativa de violação aos direitos humanos, ao estado democrático de direito, e de usurpação das atribuições inerentes à Polícia Civil”.

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    O professor da Fundação Getúlio Vargas Rafael Alcadipani, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, considera a ocorrência “extremamente grave porque tira a possibilidade de transparência de uma ação policial que tem que ser investigada de forma isenta”.

    Alcadipani destaca que ocorrência “possivelmente demonstra uma ação corporativista, que tem interpretações heterodoxas” entre a lei comum e a militar. “É extremamente anacrônico uma polícia tentar ter uma Justiça própria, isso é uma coisa que não faz sentido.”

    Para o tenente-coronel da reserva da PM Adilson Paes de Souza, mestre em direitos humanos e doutor em psicologia, a Polícia Militar está seguindo de maneira literal o artigo 9º do Código Penal Militar, que considera crimes militares quando o PM “em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil”. 

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    A delegada Raquel avalia como equivocada a interpretação de que homicídios praticados contra civis podem ser tratados como crime militar. “A definição dos crimes considerados militares deve ser restritiva, englobando tão somente àqueles que afetam valores militares, principalmente no que se refere à hierarquia e disciplina, não se incluindo neste contexto os delitos de lesões corporais e homicídios dolosos praticados por militares dos Estados contra civis no exercício de suas funções”, explica.

    Raquel afirma que “a Polícia Militar, a todo momento, rasga a Constituição Federal e distorce a lei”. A delegada diz ainda que “a instauração de inquérito policial militar nesses casos representa uma enorme violação dos direitos humanos, tendo em vista a total falta de imparcialidade da Polícia Militar, principalmente, para apurar crimes de homicídio, lesão corporal, abuso de autoridade e tortura, uma vez que valoração destes delitos pelos militares é completamente diferente da percepção do Delegado de Polícia sobre a gravidade e tipificação dessas condutas”.

    O tenente-coronel também cita o habeas corpus que trata como inconstitucional e ilegal a Resolução SSP 40/15, concedido pelo juiz Ronaldo João Roth, da 1ª Auditoria do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, em junho deste ano. O artigo 4º da resolução de março de 2015 diz respeito a função do delegado de apreender todos os objetos nos casos de mortes decorrentes de intervenção policial. 

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    Para Souza, “é importante que a Secretaria de Segurança Pública atue normatizando a situação e alguma entidade legitimada entre com medidas atribuindo a ilegitimidade para caçar o habeas corpus emitido pelo juiz Roth”. Ele acredita que, na prática, a falta de normas vindas do governo pode aumentar a relação conflituosa entre as polícias e gerar insegurança para população.

    Troca de tiros e morte

    A ocorrência que gerou esse conflito aconteceu na manhã do último dia 25 de setembro, quando três equipes da 6ª Companhia do Baep (Batalhão de Ações Especiais da Polícia Militar), sob comando do capitão Soares, saíram para supostamente combater o tráfico de drogas em um galpão abandonado de Diadema. Os PMs teriam recebido as informações de um policial militar que estava de folga. 

    Chegando no local, duas equipes prenderam oito homens que não teriam “oferecido resistência”. Já a equipe do capital Soares teria trocado tiros com Rafael Vieira. Não há informações de policiais feridos, mas o suposto traficante morreu após o comandante da operação e seu subordinado cabo Magno efetuaram quatro tiros — dois cada. 

    Rafael chegou a ser socorrido e levado ao Hospital Municipal de Diadema, mas não resistiu aos ferimentos. No local, segundo a Polícia Civil, foram apreendidos mais de 10 toneladas de maconha, balança, celulares, um veículo e uma arma supostamente utilizada por Rafael.

    Polícia Civil x PM

    Conflitos entre policiais militares e civis em São Paulo estão se tornando comuns. Em 26 de setembro, policiais militares prenderam um suposto casal de traficantes no centro de São Paulo após utilizarem um mandado de busca e apreensão emitido pela Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais), da Justiça de São Paulo. No entanto, entidades de classe apontaram que a ação foi ilegal e inconstitucional, por ser atribuição da Polícia Civil.

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    No dia 17 de setembro, um policial civil negro, que estava em uma viatura descaracterizada, foi enquadrado por dois PMs da Rocam (Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicleta). Durante a abordagem, PMs e policial civil usaram o celular para apontar possíveis irregularidades. O policial civil dizia que os militares estavam recusando a entregar suas identidades funcionais, que alegavam estarem fardados.

    No caso mais recente, um policial civil matou um policial militar aposentado que comemorava o aniversário do pai armado, em um restaurante de Guarulhos (Grande São Paulo), na noite da última sexta-feira (2/10).

    A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

    Errata – A reportagem originalmente informava que o Ministério Público havia determinado a entrega das armas para a Polícia Civil, mas o MP apenas faz o pedido e quem determina é o Judiciário.

    Atualizado em 5/10, às 18h25 – Inserida informação sobre a decisão judicial que determinou a entrega das armas.

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