Câmeras nas fardas mostraram sargento Frederico Inácio, que matou Vinícius Gomes, e soldado Diego Imediato, que atirou em rapaz sobrevivente, manipulando equipamentos durante ação em São José dos Campos (SP), em 2021, revelada pela Ponte
O Tribunal de Justiça do estado de São Paulo determinou, nesta quinta-feira (9/11), que sejam levados a júri popular dois policiais militares envolvidos em ação que deixou um jovem negro de 20 anos morto e um ferido que sobreviveu durante abordagem em São José dos Campos, no interior paulista, em 2021. Como a Ponte revelou na época e o programa Fantástico, da TV Globo, exibiu depois, as câmeras nas fardas dos PMs gravaram toda a movimentação e serviram como prova dos crimes.
O sargento Frederico Manoel Inácio de Souza foi acusado por homicídio qualificado com recurso que dificultou a defesa da vítima Vinícius David de Souza Castro Gomes. As qualificadoras aumentam a pena do homicídio, que pode variar de 12 a 30 anos de prisão caso Frederico seja condenado. O soldado Diego Fernandes Imediato da Silva foi denunciado por tentativa de homicídio qualificado contra um adolescente que estava com Vinícius participando de um roubo e por porte ilegal de arma, por inserir uma pistola na cena do crime.
O juiz Milton de Oliveira Sampaio Neto entendeu que havia indícios suficientes de crime e que há dúvidas de que eles atuaram em legítima defesa. “Os fatos por eles praticados caracterizam, em tese, crimes dolosos contra vida nas modalidades consumada e tentada. Há indícios, igualmente, de que o corréu Imediato praticou crime previsto no Estatuto do Desarmamento ao possuir, transportar e portar arma de fogo com sinal identificador suprimido que, ao que consta, teria introduzido de maneira fraudulenta no local dos fatos”, escreveu.
No Brasil, os crimes dolosos contra a vida (com intenção ou em que se assume risco de matar) são de competência da Justiça Comum e devem ser julgados por um conselho de sentença formado por sete jurados provenientes da sociedade civil.
“Incumbirá ao conselho de sentença decidir se as vítimas foram alvo de ação abusiva dos policiais militares ora acusados, que teriam agido fora do amparo da Lei ou se, diversamente, a ação policial se deu sob os estritos limites da legalidade, pelo quê as vítimas não teriam sido tomadas de surpresa, já que haviam acabado de praticar crimes de roubo, estavam portando arma de fogo e trafegando em automóvel roubado sendo, portanto, previsível que fossem submetidas à intervenção policial”, sustentou o magistrado.
À Ponte, Thiago Marques, que atua como advogado da família de Vinícius e assistente de acusação, comemorou a decisão. “Durante a instrução do processo, foram reunidas provas suficientes da materialidade dos crimes e indícios suficientes de autoria contra ambos os acusados. São crimes dolosos contra a vida nas formas consumada e tentada, além do crime de porte ilegal de arma de fogo com sinal identificador suprimido que, ao que consta, teria sido introduzido de maneira fraudulenta no local dos fatos”, disse.
Ele também encaminhou a reação do pai de Vinícius, que prefere não ser identificado. “Foram dois anos esperando por justiça. Hoje a saudade só aumenta. Perder um ente querido desta maneira nunca será bom, independente de que lado for. Mas espero que a justiça seja feita porque ele tinha uma família que tinha esperança e apostava muito em sua regeneração. Que Vinícius seja justiçado pelo ato cometido”, declarou.
Em abril deste ano, o sargento e o soldado foram condenados com mais seis policiais no âmbito da Justiça Militar por fraude processual. São eles: tenente Pedro Leonardo de Souza Moreira, cabos Andrios Valuto, Carlos Eduardo Nunes Pinto, Saulo Henrique Pereira de Mora, Isaque Felipe Ferreira de Moraes e Elenilson Daniel dos Santos. Diego Imediato ainda foi condenado por falso testemunho e Elenilson, por falsidade ideológica. As penas variam de sete meses a dois anos de reclusão em regime aberto, ou seja, respondem em liberdade, mas estão recorrendo da sentença.
A Ponte tentou contato com o advogado Celso Vendramini, que representa Frederico e Diego no processo do Tribunal do Júri, mas não teve retorno.
Relembre o caso
De acordo com os depoimentos à Polícia Civil, após participarem de roubos a estabelecimentos comerciais no bairro Jardim Flamboyant, em 8 de setembro de 2021, usando um Corsa branco roubado, quatro jovens e um adolescente tentaram fugir da polícia e bateram o veículo na portaria de um condomínio, e depois num poste. Entre eles estava Vinícius.
Na versão do sargento Frederico Manoel Inácio de Souza, do 3º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), Vinícius saiu do banco dianteiro e “chegou a levantar as mãos”, mas “tentou levar a mão na arma que estava em sua cintura, mesmo depois de receber as ordens que era para largar a arma” e “insistiu em sacá-la” em sua direção. O policial justifica que atirou três vezes “para repelir a iminente agressão”.
Mas não é o que as imagens da câmera do colega, o cabo Elenilson Daniel dos Santos, mostram. Vinícius aparece na abordagem com a cabeça para fora da janela e sem nenhuma arma em suas mãos e obedece a ordem de Frederico de descer e colocar as mãos na cabeça. Para a promotora Renata Hatori Nascimento, o sargento teve a intenção de matar e, pela vítima estar rendida, dificultou qualquer chance de defesa ao disparar três vezes com o fuzil.
Já o outro adolescente só sobreviveu porque usava um colete à prova de balas, aponta a promotora. Ele também aparece largando uma arma de brinquedo que empunhava e se rendendo à abordagem. Em uma das imagens, gravada pelo equipamento do cabo Elenilson, o soldado Diego diz “Eu ia adivinhar? Devia ter dado na cara. Moleque de colete, mano. Eu ia adivinhar?”. Depois, ele pede para os colegas se virarem, para evitar que as câmeras o gravassem, ao dizer “Dá um x aí todo mundo. Viu, dá um x aí, vira pra lá, vira pra lá! Ô Steve, ô Steve, vira aí ô! Vira pra lá todo mundo”. “Steve” é um jargão para policial. O soldado ainda reiniciou a gravação no momento em que disparou contra o adolescente.
Segundo a denúncia, o soldado pega uma pistola Taurus calibre 380, de numeração raspada, e coloca a arma na bolsa lateral do colete usado pelo adolescente. Os outros dois jovens que participaram do roubo foram presos e o adolescente, apreendido à Fundação Casa depois de se recuperar dos ferimentos.
Na época do crime, a morte de Vinicius, que morava na comunidade Santa Cruz, em São José dos Campos, gerou um protesto na avenida Teotônio Vilela, e ao menos quatro veículos foram incendiados, segundo reportagem do Vale Urgente, da TV Band.
A Corregedoria da corporação pediu a prisão preventiva de nove PMs que tiveram envolvimento nesse caso na ocasião, que foi negada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (após ter sido encaminhada pelo Tribunal de Justiça Militar que apontou não ter competência por se tratar de crimes dolosos contra a vida). O MPSP também não requisitou a prisão dos envolvidos em nenhum momento. Por isso, seguem em liberdade.
Além disso, na fase de alegações finais, antes de o juiz decidir se a dupla seria levada a júri popular, o MPSP se manifestou pela absolvição do soldado Diego Imediato por entender que ele atuou em “legítima defesa putativa”, ou seja, pensou que estava em uma situação de risco quando atirou contra o adolescente, mas o magistrado Milton Sampaio Neto divergiu do entendimento.