PMs tapam câmeras das fardas e matam jovem negro no litoral de SP

Kaique Passos foi morto por cabos Paulo Silva e Israel Morais, no Guarujá, em junho de 2022; imagens obtidas pela Ponte mostram policiais cobrindo aparelho no momento dos disparos

Policiais militares taparam as câmeras das fardas em uma abordagem policial que matou Kaique de Souza Passos, de 24 anos, com sete tiros no Guarujá, litoral paulista. O caso aconteceu em 15 de junho de 2022, mas foi no início deste mês que os PMs que mataram o jovem negro foram denunciados pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) por homicídio qualificado. A Ponte teve acesso com exclusividade às imagens dos equipamentos dos cabos Paulo Ricardo da Silva e Israel Morais Pereira de Souza, que dispararam contra Kaique, e do soldado Diego Souza Luna que também cobriu sua câmer corporal na ação.

Na esfera militar, o trio é réu, junto com outros cinco policiais militares, por fraude processual por causa do uso indevido das câmeras, po não terem feito o acionamento do áudio, cobrirem a câmera ou, ainda, se movimentarem de maneira que o aparelho não registrasse determinada conduta. Todos são do 21º Batalhão da PM do Interior (BPM/I).

As câmeras da empresa norte-americana Axon, usadas por 12% do efetivo da PM paulista, gravam imagens ininterruptamente por turno de 12 horas sem precisar de acionamento manual. Porém, compete ao PM demarcar as ocorrências de interesse policial — por exemplo, abordagens e perseguições — acionando o equipamento para que o áudio também seja captado.

Essa foi uma maneira encontrada pela corporação para distinguir registros que interessam a uma investigação e também garantir a privacidade dos policiais em serviço. O que é acionado pelo policial como ocorrência pode ficar armazenado até um ano. Já o restante, considerado como “rotina” durante o turno, é descartado em 60 dias. A Ponte explicou o funcionamento em 2021 e reproduz abaixo um exemplo de tipo de gravação.

Exemplo fictício de como funciona a gravação da Câmera Operacional Portátil (COP), da empresa Axon, na da PM. A imagem foi retirada do projeto de aquisição dos equipamentos do governo paulista. A cor laranja indica acionamento pelo PM de um momento de ocorrência policial; já a azul é a gravação diária do serviço que não tem interesse para uma investigação.

Nas três gravações obtidas pela reportagem, é possível ver os policiais se preparando para invadir uma residência em uma comunidade no bairro Cachoeira, onde Kaique, suspeito de participar de um roubo, estaria tentando se esconder. Paulo, Israel e Diego são os três que ficam na frente. Todos com arma em punho. Paulo é o primeiro a arrombar a porta com um pontapé. Não dá para ver com clareza o que Kaique faz ao fundo, mas parece levantar os braços, o que, para as promotoras substitutas Nayane Cioffi Batagini e Mariana da Fonseca Piccinini, indicava que ele estaria se rendendo.

Quando os dois cabos entram no corredor que tem uma porta fechada ao fundo, não é possível ver a dinâmica da ação, uma vez que Israel posiciona a câmera da farda para gravar seu antebraço, Paulo cobre totalmente o aparelho com a mão (também não dá para ouvir nada pois o áudio não foi acionado por ele, segundo o MPSP) e Diego também tapa com a mão seu equipamento. Israel ainda fala “a câmera, a câmera… Sai, sai, sai!”. Diego aparece, ainda, pedindo para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, e ele obedece.

Os cabos gritam muito “polícia”, “larga a arma”. Tiros são efetuados e Kaique fala “ai” pelo menos três vezes. Paulo acaba caindo por ter se desequilibrado. Israel ainda dá mais dois disparos, mesmo após Kaique já estar caído no chão, e impede a entrada de outros colegas no local. Ele ainda sai gritando “atirou”, indicando que o jovem teria disparado contra a dupla. Com o rapaz, teria sido encontrado uma arma de brinquedo. Kaique também estaria com uma mochila nas costas, com R$ 7 mil e joias das vítimas de um roubo.

Entrada de residência na comunidade do bairro Cachoeira onde Kaique Passos foi morto | Foto: Polícia Militar

Na delegacia e à Corregedoria, os cabos disseram que o rapaz sacou a arma na direção deles e tentou forçar a entrada na residência. “Temendo pelo disparo iminente”, atiraram em legítima defesa. Informaram que, ao total, os dois juntos efetuaram oito tiros feitos porque Kaique permaneceu em pé e não teria largado a arma.

O jovem foi atingido por sete tiros no abdômen, antebraço, coxa e cintura. Tanto nos vídeos das câmeras corporais quanto em depoimento, moradores da casa disseram que Kaique não conseguiu entrar, tendo apenas forçado e batido na porta.

Ainda em junho, 10 dias depois da morte do jovem, a promotora substituta Mariana da Fonseca Piccinini pediu o arquivamento da apuração do homicídio, por ter entendido que os cabos Paulo e Israel agiram “em legítima defesa própria e de terceiros”. Nem ela nem a Polícia Civil tinham solicitado as imagens das câmeras das fardas.

A Promotoria só mudou de ideia depois que o inquérito policial-militar (IPM), conduzido à parte da investigação do roubo, foi remetido à Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), por determinação do juiz militar Ronaldo João Roth, em 17 de novembro, para analisar o crime de homicídio, e teve acesso às imagens dos equipamentos.

Com isso, são três investigações separadas sobre o caso: uma corre no Tribunal de Justiça Militar (TJM), que trata dos crimes de fraude processual (oito policiais), omissão de socorro (dois policiais) e falsidade ideológica (três policiais) contra os PMs; outra na Vara Criminal de Bertioga do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para o crime de roubo que Kaique é supeito de ter participado, com outros dois jovens que foram presos no mesmo dia e permanecem respondendo o processo encarcerados; e a terceira na Vara do Júri de Guarujá do TJSP sobre a morte de Kaique pelos dois cabos, além de uma acusação de tentativa de homicídio que recai contra o cabo Diego Nascimento Sousa e o soldado Eduardo Pereira Maciel, porque Diego teria disparado em um dos suspeitos presos quando já estava rendido e pedido para que Eduardo se virasse para que sua câmera corporal não registrasse a ação.

As abordagens

De acordo com o boletim de ocorrência, a Polícia Militar foi acionada na noite do dia 15 de junho após um casal ter sido vítima de roubo na cidade de Bertioga, a aproximadamente 20 km de Guarujá. Um homem e uma mulher relataram que por volta das 21h15 três pessoas armadas invadiram sua residência, os renderam e os trancaram no banheiro. O grupo fugiu do local no Fiat Toro preto de uma das vítimas.

Em depoimento, disseram que um dos assaltantes passou a vasculhar a casa, perguntando sobre dinheiro e joias, além de fazer ameaças; outro, que coordenava o grupo, ficou vigiando na varanda para ver se apareciam policiais e também os ameaçou de morte se denunciassem o roubo à polícia.

O terceiro pegou os celulares das vítimas e conseguiu fazer algumas transações bancárias por meio de Pix. O casal disse que ainda acredita que teria um quarto criminoso do lado de fora porque ouviu conversas ao telefone. Não há descrição de características físicas dos ladrões no registro da Polícia Civil.

Uma viatura da PM, que retornava da cidade de Cubatão, visualizou o veículo na Rodovia Conego Domenico Rangoni, sentido Guarujá, passou a segui-lo e deu “sinais sonoros e luminosos de parada”, o que não teria sido obedecido. Os policiais fizeram um cerco, interrompendo também o fluxo de outros veículos e, na altura do Mercado Atacadão, situado do lado oposto da rodovia, os ocupantes do Fiat Toro saíram do carro e pularam o guard-rail central em direção ao interior do estabelecimento.

Um dos rapazes subiu a passarela que fica acima da rodovia e dá acesso ao mercado, mas acabou detido. Com ele, estavam R$ 323 em dinheiro, R$ 10,60 em moedas e uma correntinha de ouro que foi reconhecida por uma das vítimas do roubo. O tenente Roberson Fabiano Alves Pereira e o cabo André Felipe dos Santos fizeram essa prisão.

O promotor militar Rafael Magalhães Abrantes Pinheiro acusou o tenente por falsidade ideológica por ele não ter informado que fez disparos contra o homem que havia detido, mesmo não tendo atingido o acusado, nem os quatro realizados com fuzil contra o Fiat Toro pelo sargento Gilmar Oliveira do Carmo “sem que os civis tivessem agido de modo agressivo contra os policiais”. As armas deles não foram apreendidas no dia do crime justamente porque não informaram que fizeram disparos.

Roberson e Gilmar também foram denunciados por fraude processual porque não acionaram o áudio das câmeras nas fardas, prejudicando a captação do barulho dos tiros.

Em outra viatura, próximo ao mercado, estavam o cabo Diego Nascimento de Sousa e o soldado Ulisses Lopes dos Santos Junior, que fizeram outra perseguição a pé, já que viram os suspeitos correndo em direção ao Atacadão e ao bairro Cachoeira.

Eles disseram que “ouviram disparos efetuados em sua direção” e que o cabo “revidou” os tiros. Em uma mureta, perto da passarela, teriam encontrado o segundo rapaz baleado na perna, no tórax e na costela e relataram que chamaram o resgate. Não encontraram arma com ele.

O Ministério Público Militar (MPM), porém, acusou o cabo Diego Nascimento de fraude processual porque ele não acionou o áudio da sua câmera quando desferiu ao menos dois disparos contra esse terceiro suspeito e que atirou quando o homem estava “desarmado e tentativa fugir”.

O promotor Rafael Pinheiro também acusou o policial de ter feito um terceiro disparo quando o rapaz já estava rendido e detido, tendo solicitado ao colega, o soldado Eduardo Pereira Maciel, para que “não olhasse” nesse momento, ou seja, segundo o MPM, “para que se virasse e não filmasse o ocorrido”.

Os dois PMs foram denunciados por fraude processual e por omissão de socorro, já que a Promotoria apontou que Diego disse “relaxe” a uma policial feminina que questionou a necessidade de resgate do rapaz ferido. Ele ainda teria questionado ao jovem “não ia morrer logo”. A Ponte não teve acesso a essas imagens.

A policial feminina, identificada como cabo Amaro, acionou o Samu oito minutos depois dos disparos feitos por Diego. O jovem sobreviveu e está preso assim como o primeiro que foi detido pelos PMs Roberson Pereira e André Santos. Diego também não informou em seu relatório de serviço da PM que fez disparos, somando ainda uma acusação de falsidade ideológica.

Câmera da farda do soldado Diego Luna mostra cabo Paulo Ricardo da Silva tapando a câmera do seu colete com a mão no momento em que invade corredor de um quintal de uma casa onde está Kaique Passos | Foto: reprodução

Já a viatura do cabo Paulo Ricardo da Silva, sargento Gilmar Oliveira do Carmo e soldado Elton Wesley da Silva Lobo Lima estava nas proximidades do Ginásio do Guaíbe e manobraram o veículo quando foram informados do roubo.

Na estrada, viram que o Fiat Toro passou em alta velocidade e já estava sendo perseguido por outras viaturas. Quando chegaram próximo ao Atacadão, souberam que dois suspeitos haviam sido detidos, sendo um deles baleado, e outros dois “haviam fugido para o interior da comunidade do bairro Cachoeira”.

O trio e demais equipes se deslocaram para a comunidade e passaram a entrar em becos e vielas a pé para encontrar os suspeitos, na altura da Rua Maurino Inacio de Oliveira (antiga Rua A). O cabo Paulo Ricardo disse à Polícia Civil que manobrava a viatura quando teria visto uma pessoa tentando forçar a entrada de uma porta no corredor de uma casa, ouvindo gritos de moradores assustados. Ele disse que os policiais se aproximaram e pediram para que Kaique parasse, mas ele teria se recusado e sacado a arma. Em seguida, os PMs dispararam.

No âmbito da Justiça Comum, na Vara do Júri, as promotoras Nayane Batagini e Mariana Piccinini acusaram Paulo Ricardo e Israel Morais por homicídio contra Kaique, com agravantes de abuso de poder, recurso que dificultou a defesa da vítima e por motivo torpe (desprezível). Essas também são as qualificadoras atreladas à acusação de tentativa de homicídio contra Diego Sousa e Eduardo Maciel.

Para elas, Diego Nascimento, Eduardo Maciel, Paulo Ricardo da Silva e Israel Morais tiveram a intenção de matar “por mera suspeita de que eles [Kaique e o outro rapaz baleado] fossem envolvidos com a prática de crimes e acreditarem que deveriam morrer apenas por esse motivo (vale dizer que, até então, apenas havia suspeitas). Os delitos, portanto, foram praticados por um sentimento abjeto”.

Ajude a Ponte!

A Corregedoria da PM tinha pedido a prisão preventiva (por tempo indeterminado) dos policiais, que foi decretada. Porém, durante uma das audiências de instrução do processo (fase em que são ouvidos os réus, testemunhas e juntadas provas) na Justiça Militar, os PMs foram soltos por determinação do juiz Ronaldo Roth em 30 de novembro e respondem às acusações em liberdade.

As promotoras da Vara do Júri também solicitaram as prisões preventivas dos quatro PMs. Durante a apuração desta reportagem, esse processo foi colocado em segredo de justiça na segunda-feira (5/12). À Ponte, a assessoria do Tribunal de Justiça disse que a juíza do caso ainda não apreciou a denúncia nem o pedido de prisão contra os quatro policiais.

O que diz a polícia

A Ponte procurou as assessorias da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar sobre os casos, a situação atual dos policiais na corporação e sobre o projeto das câmeras. Até a publicação, não houve resposta.

Contatamos o escritório Ochsendorf & Lima Claro Advogados, por telefone e e-mail, cujos advogados Alex Sandro Ochsendorf, Renan de Lima Claro, Filipe Molina e Luiz Nakaharada defendem os PMs Israel Morais Pereira de Souza, Diego Nascimento de Sousa e Eduardo Pereira Maciel. A defesa encaminhou a seguinte nota:

Os policiais militares atuaram de maneira escorreita e em conformidade com a Lei, usando da força de maneira proporcional e necessária para, naquela situação em específico, conter a ameaça também contra a vida de civis, inclusive tendo ativado manualmente a COP (câmera operacional).

Assim, com a devolução de sua liberdade pela Justiça Militar, durante a instrução processual, será comprovada a legalidade da conduta dos policiais.

Também buscamos o advogado Emerson Lima Tauyl, que representa os PMs Paulo Ricardo Silva, Roberson Fabiano Alves Pereira e Gilmar Oliveira do Carmo, por telefone e e-mail disponibilizados no site do escritório Tauyl & Jardim Advogados, mas não tivemos retorno.

Não conseguimos localizar o advogado Denis Frank Araujo de Jesus, que está à frente da defesa dos policiais Diego Souza Luna e Willian Lopes Bulgarelli. Caso se manifestem, essa reportagem será atualizada.

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