PMs ouvidos em grupo, corpos que chegaram sem roupa, contradição de depoimentos e ausência de perícia no local são problemas identificados pela Human Rights Watch ao analisar BOs e autópsias de vítimas no litoral de SP
A Polícia Civil do estado de São Paulo cometeu graves falhas na apuração inicial das 28 mortes praticadas pela Polícia Militar durante a Operação Escudo, segundo a organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW). A entidade divulgou, nesta terça-feira (7/11), um relatório com base em 26 boletins de ocorrência e 15 laudos necroscópicos das vítimas analisados por peritos forenses internacionais, que atestaram que os exames “são ineficazes e não cumprem os padrões mínimos aceitáveis na investigação de mortes relacionadas com armas de fogo no contexto da ação policial”.
As principais falhas elencadas pela ONG são:
- Em 12 dos 26 casos, a Polícia Civil colheu depoimentos de policiais militares em grupos, e não individualmente, o que dificulta a comparação de versões de forma independente;
- Quando a Polícia Civil colheu depoimentos individuais, eles foram breves e sem detalhes;
- Em seis casos, a Polícia Civil pareceu ter a intenção de antecipar o resultado da investigação, concluindo, com base apenas nos depoimentos dos policiais envolvidos nos alegados confrontos, que a Polícia Militar havia “agido claramente em legítima defesa”;
- A perícia do local dos fatos foi solicitada em 16 dos 26 boletins de ocorrência. Em seis boletins não há solicitação de perícia no local dos alegados confrontos. Em outros três, a Polícia Civil decidiu não solicitar a perícia do local, citando fortes chuvas, periculosidade do local e outros fatores. Em outro boletim, as páginas finais estavam faltando, tornando impossível determinar se a polícia solicitou perícia neste caso;
- Em pelo menos sete casos, os corpos chegaram sem roupas para o laudo necroscópico. Itens de vestuário são particularmente relevantes para estimar a distância dos tiros e outras circunstâncias da morte;
- Os peritos afirmaram que os laudos necroscópicos contêm pouca documentação de ferimentos externos além dos ferimentos à bala, e que a dissecação de tecidos subcutâneos, importante para detectar ferimentos profundos que geralmente não são externamente visíveis, não parece ter sido adequadamente realizada;
- Contradições entre os laudos necroscópicos e os boletins de ocorrência. Três boletins de ocorrência afirmam que a vítima foi encaminhada para uma unidade médica, enquanto o laudo necroscópico afirma que as vítimas foram encaminhadas diretamente para o Instituto Médico Legal (IML).
- Nove boletins de ocorrência solicitaram exames residuográficos que analisam a existência de pólvora na mão das vítimas o que poderia ser um indicativo de disparo. Três mencionam exames residuográficos nos policiais envolvidos no suposto confronto, não na vítima, e outros quatro não são claros sobre quem seria testado. Esses testes são particularmente úteis quando as autoridades alegam que as vítimas atiraram, como a Polícia Militar afirmou em 20 dos 26 boletins de ocorrência.
- O único exame complementar solicitado nos laudos necroscópicos é o exame toxicológico, em sete dos 15 casos;
- Segundo o Ministério Público, os policiais usavam câmeras corporais em 10 ações relacionadas às primeiras 16 mortes, mas imagens foram registradas em apenas seis destes casos. Em quatro casos, as câmeras estavam sem bateria ou apresentaram problemas técnicos e não gravaram. Posteriormente, as gravações de outros três casos foram enviadas ao Ministério Público, totalizando nove casos das 28 mortes com gravações.
A HRW contratou peritos do Grupo Independente de Peritos Forenses (IFEG, sigla em inglês) do Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura (IRCT, sigla em inglês) para analisar os laudos necroscópicos. Eles tinham como base o Protocolo de Minnesota, que é um manual da Organização das Nações Unidas (ONU) para apuração de mortes potencialmente ilícitas.
“O protocolo fala da importância de fazer uma perícia do local onde houve um crime ou uma morte e essa perícia tem que ser feita pelos profissionais competentes, o que inclui não só tirar as fotografias do local, mas medir o local, pegar amostras de, por exemplo, tecidos, impressões digitais… É realmente examinar aquele local o mais rápido possível para evitar contaminação, para você conseguir realmente pegar aquele conjunto de provas do lugar onde uma morte aconteceu”, explica Anna Livia Arida, diretora-adjunta do escritório da Human Rights Watch no Brasil.
Além disso, ela sinaliza que a própria legislação brasileira também têm prerrogativas de investigação que não foram seguidas pela Polícia Civil, como depoimentos separados dos policiais. “O Código de Processo Penal já diz que as testemunhas têm que depor separadamente. Por quê? Porque daí que você consegue analisar uma versão e contrastar ou complementar com outra versão. E o que a gente viu é que, em muitos casos, o depoimento foi feito junto. Então, um, dois, três policiais deram o depoimento conjuntamente. Isso também não é o mais adequado”, afirma.
A Operação Escudo foi deflagrada em 28 de julho, um dia depois do assassinato do soldado Patrick Reis, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da PM paulista, no Guarujá, no litoral. A ação durou 40 dias e deixou 28 mortos, além de denúncias de execuções, tortura, ameaças, invasões e derrubada de casas relatadas por moradores de cidades do litoral paulista e também apresentadas em relatório preliminar do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que é vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
Houve ainda denúncia internacional de organizações ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), celebração de policiais pelas mortes, protestos encabeçados por movimentos sociais pedindo o fim da operação e prisões de pessoas majoritariamente negras sem antecedentes que não cometeram crimes violentos.
No período, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) chamou as mortes na operação de “efeito colateral” e alegou que denúncias de violações de direitos humanos são “narrativas”, o que foi repetido pelo secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite, além de o próprio comandante-geral da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, ter gravado vídeo em que orienta a tropa a não hesitar “em utilizar legítima defesa”. Derrite encerrou a operação em 5 de setembro, mas, três dias depois, anunciou uma nova edição também após o assassinato de um policial militar.
Na época, a HRW já tinha feito uma recomendação geral para que os Ministérios Públicos assumissem o protagonismo de investigações envolvendo mortes praticadas por agentes de Estado. Anna Arida volta a destacar essa importância neste caso. “Tem uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que já fala nesse sentido. Não faz sentido a polícia investigar a própria polícia”, critica.
Em São Paulo, o Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) do MPSP passou a atuar neste ano, inicialmente na capital com dois promotores. Porém, com a operação, o órgão foi designado para apurar as mortes na Baixada Santista e abriu procedimentos para investigar cada morte individualmente.
Para a ONG, é um começo, mas ainda insuficiente, já que, por exemplo, a perícia está vinculada à Polícia Científica. “O que a gente sabe é que hoje o Ministério Público não tem estrutura, porque não basta ter o perito. O perito vai lá, por exemplo, no local do crime, e ele vai coletar amostras de tecido, de sangue, impressões digitais [que está vinculado] hoje à polícia, que tem o Instituto de Criminalística, tem o IML, tem uma estrutura para fazer essas análises”, avalia.
Por outro lado, ela aponta que a posição do Estado também não tem sido favorável para apurações independentes. No mês passado, alguns oficiais da Rota que atuaram na operação foram condecorados por Tarcísio no dia do aniversário do batalhão. Um dos posicionamentos mais recentes de Derrite foi de dizer que parte da imprensa paulista é canalha, publica “fake news” e trabalha “a serviço do crime” ao veicular as denúncias de violações de direitos humanos relatados na operação. “Não existe uma sinalização política da importância de investigar a legalidade de cada uma dessas mortes e isso é bastante negativo porque cabe ao poder público agir dentro da lei sempre”, diz a representante da HRW.
“Na nossa visão seria bastante importante que a mensagem política fosse essa, de que as investigações vão ser conduzidas de maneira independente para que realmente se conheça as circunstâncias de cada morte, e, em caso de abuso, para que os responsáveis sejam punidos, mas não é isso que a gente está vendo em termos de comunicação, principalmente no caso do secretário de Segurança Pública”.
Assim como relatado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, a Human Rights Watch também procurou o governo do estado, que não atendeu às solicitações de informações. A ONG ainda sinaliza a ausência de protocolo e de transparência de operações desencadeadas após homicídio de policiais.
Ao mesmo tempo, a letalidade policial vem aumentando mês a mês em São Paulo, o que, para especialistas, denota um retrocesso nas políticas de redução do uso da força que vinham sendo implementadas, como, por exemplo, o programa de câmeras nas fardas, que teve seu orçamento reduzido, e a atuação de Comissões de Mitigação e Risco dentro da PM. De janeiro a setembro, 374 pessoas foram mortas pelas polícias Civil e Militar, o equivalente a um aumento de 27,6% em relação a 2022, com maior aumento (45%) quando os policiais estavam em serviço.
“O objetivo do relatório é também jogar luz para essa questão, de que a gente está indo numa direção muito ruim em termos de política de segurança pública”, diz Anna Arida. “No caso das investigações também, a gente está com a expectativa de que esse relatório contribua para que as autoridades de segurança, inclusive as próprias polícias civis e científicas, façam um trabalho mais robusto em termos de investigação. A gente conseguir elucidar as circunstâncias de cada morte e entender se elas aconteceram dentro ou fora da legalidade é importante tanto para as famílias das vítimas quanto para a própria polícia e para sociedade em geral”.
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre o relatório. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:
A Secretaria da Segurança Pública esclarece que a Operação Escudo é um protocolo da Polícia Militar que é acionado sempre que um agente de segurança do Estado sofre um ataque, para restabelecer a ordem e restaurar a sensação de segurança da população. A ação desencadeada em 28 de julho teve como objetivo identificar e prender os envolvidos na morte do soldado da Rota Patrick Reis, no Guarujá, além de sufocar o tráfico de drogas e combater o crime organizado. A polícia enfrentou forte reação dos criminosos, que feriram outros três policiais a tiros.
A operação, realizada em absoluta observância à legislação vigente, foi encerrada no dia 5 de setembro, após 40 dias. Neste período foram presos 976 criminosos, dos quais 388 eram procurados da Justiça. Outros 71 adolescentes infratores foram apreendidos. As forças de segurança apreenderam 119 armas ilegais que estavam nas mãos de criminosos e quase uma tonelada de entorpecentes, causando um prejuízo de mais de R$ 2 milhões ao crime organizado.
Todos os casos de morte decorrente de intervenção policial ocorridos no âmbito da operação são investigados pela Deic de Santos, com apoio do DHPP, e pela Polícia Militar por meio de Inquérito Policial Militar. O conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com o Ministério Público e o Poder Judiciário.
Os laudos oficiais das mortes, elaborados pelo Instituto Médico Legal (IML), foram executados com rigor técnico, isenção e nos termos da Lei. Em nenhum deles foi indicado sinais de tortura ou qualquer incompatibilidade com os episódios relatados. Desvios de conduta não são tolerados e são rigorosamente apurados mediante procedimento próprio. Denúncias podem ser formalizadas em qualquer unidade da Polícia Militar, inclusive pela Corregedoria da Instituição.
É importante esclarecer que a designação das equipes para apoio nas Operações Escudo, incluindo a que ocorreu na Baixada Santista, é pautada por critérios exclusivamente técnicos e operacionais, de forma a garantir o policiamento preventivo em todo o Estado, e não pela disponibilidade de materiais ou equipamentos, como câmeras corporais.
O que diz o Ministério Público
A reportagem também questionou a assessoria do órgão sobre o documento e as medidas tomadas, que enviou a seguinte resposta:
O Ministério Público do Estado de São Paulo recebeu o relatório feito pela Human Rights Watch e, assim como os demais relatórios realizados pela sociedade civil e órgãos públicos, analisará seu conteúdo no bojo do inquérito civil que apura eventuais lesões a direitos humanos no curso da Operação Escudo.
Importante frisar que, conforme consta expressamente no citado relatório, o MPSP instaurou 27 procedimentos investigatórios criminais para apurar, de modo independente, as mortes ocorridas na operação, além de 1 inquérito civil supracitado e 1 procedimento administrativo de acompanhamento das investigações em curso pela Polícia Civil, através dos quais apura, desde o início da operação, as falhas nos procedimentos investigativos apontadas.
Todos os procedimentos instaurados pelo MPSP estão em curso e as recomendações exaradas pelo HRW já vinham sendo observadas em seu trâmite, com especial atenção à interlocução com demais órgãos públicos e da sociedade civil, oitiva de familiares das vítimas e busca ativa de testemunhas de maneira autônoma, além de outras diligências pertinentes a cada caso, sempre no intuito de obter provas que esclareçam a dinâmica dos fatos.
Os autos são sigilosos.
Reportagem atualizada às 17h38, de 7/11/2023, para incluir resposta do MPSP.