Defesa das operações policiais apresentada ao STF durante julgamento da ADPF das favelas critica Defensoria Pública e fala que mortos em ações “não são inocentes”
Documentos produzidos pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e apresentados ao Supremo Tribunal Federal durante o julgamento da ADFP das Favelas mapeiam os grupos criminosos que atuam no estado e defendem que proibição de operações policiais durante a pandemia serve aos criminosos e não preserva vidas. O parecer também é crítico à atuação de movimentos sociais e é assinado pela Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional.
Para o delegado Felipe Lobato Curi, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional, que assina os documentos, a proibição das operações não salvou vidas. Pelo contrário: “criminosos que eventualmente deixaram de morrer por conta da proibição de operações, não são pessoas inocentes”, escreveu. “Não se pode colocar num mesmo contexto pessoas de fato inocentes e quem faz da vida instrumento para o cometimento de crimes e para ceifar vidas de pessoas inocentes e de policiais”, aponta Curi.
Íntegra documento – Parte I
Íntegra documento – Parte II
Íntegra documento – Parte III
O ministro Edson Fachin já havia determinado, em caráter liminar, a suspensão das operações. Nesta segunda-feira (17/8), o STF decidiu manter as demais medidas cautelares da ADPF 635. Agora, além de proibir as operações policiais nas favelas durante a pandemia, o Supremo proibiu o uso de helicópteros como plataforma de tiro, a realização de operações perto de escolas e hospitais, e mexer em cena de crimes cometidos por policiais.
O STF também determinou que o Ministério Público investigue as violações cometidas por policiais nas operações e que a redução de homicídios pela polícia seja reincluída na meta de redução de letalidade do Rio de Janeiro.
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As atuações da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e estudos do Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos), da UFF (Universidade Federal Fluminense), foram duramente criticadas nos documentos.
“Certo afirmar é que não é possível fazer uma análise dos dados de segurança pública em 15 dias”, aponta Curi sobre os dados do Geni que mostraram que a proibição das operações policiais em favelas do RJ salvou 30 vidas. O delegado afirma que o Rio “possui o menor número de homicídios desde 1991”.
Daniel Hirata, pesquisador da UFF (Universidade Federal Fluminense), rebate o posicionamento da Polícia Civil. Para ele, “os relatórios são muito consistentes de uma ideia generalizada das polícias que pensa que as operações são inevitáveis para o controle do crime no contexto violento do Rio de Janeiro”, pensando que é “inevitável a crescente da intervenção policial e as graves violações de direitos humanos que atingem as populações negras e pobres que habitam esses lugares”.
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“Não estamos falando 15 ou 30 dias, estamos avaliando e comparando os últimos 14 anos”, aponta o pesquisador, que completa “quando colocamos esses dados, lado a lado, percebemos que esses primeiros dias produziu uma queda bastante significativa nas operações”.
Durante a pandemia, em operações policias nas favelas, 177 pessoas foram mortas pelas polícias em abril e 129 em maio. Em junho, primeiro mês da proibição das operações, o número despencou para 34 casos, segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), órgão oficial do governo fluminense.
Ao menos um adolescente foi morto por mês, de janeiro a abril, em operações policiais, como apontou o estudo da Rede de Observatórios da Segurança. Uma dessas ações aconteceu no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, cidade na região metropolitana do Rio. Na noite do dia 18 de maio, João Pedro brincava dentro de casa com os primos quando atingido por tiros de fuzil durante uma ação que envolvias polícias Civil e Federal.
Para o defensor público Daniel Lozoya, subcoordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, da Defensoria Pública do Rio, “os relatórios têm um discurso raso, de senso comum, de reprodução dessa lógica maniqueísta que os direitos humanos defendem o crime”.
A melhor resposta para isso, explica Lozoya, está no processo, “por termos ganhado por 9 x 2”, em referência ao placar da votação no STF em que os ministros decidiram pela proibição das operações nas favelas. “A tese da polícia de que a maior letalidade estaria preservando indicadores criminais, o que é exatamente o contrário, já que as pesquisas que analisam a vigência da cautelar demonstram que tivemos uma redução muito grande da letalidade e não houve nenhuma interferência nos indicadores criminais”.
A suspensão das operações, conclui o defensor, está salvando vidas. “Se for comparar, os dados de abril de mortos pela polícia foi quase um recorde histórico, foi o segundo maior mês da série histórica, que começou em 2007, com um aumento de 43%. Foram 6 casos por dia em abril. Em junho, após a suspensão, o número de mortes caiu para 34. Caiu de 6 para 1”.
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O delegado Curi aponta em diversos momentos que o estado do Rio de Janeiro “vem sofrendo com a atuação de organizações criminosas de milicianos e de traficantes de drogas”, nas últimas décadas, que “praticam inúmeros crimes conexos, tais como roubo de veículos, latrocínios, roubo de cargas, homicídios dolosos, entre outros”.
As facções, as milícias e as favelas
Um dos documentos traz um minucioso mapeamento da atuação do tráfico no Rio de Janeiro, dividindo os territórios analisados entre as três grandes facções criminosas — “com dominação de territórios específicos e utilização de armamento de guerra”: CV (Comando Vermelho), TCP (Terceiro Comando Puro) e ADA (Amigos dos Amigos) — e as milícias, que dominam os territórios com a “exploração de desvio de sinal de TV a cabo e do transporte alternativo, sobretaxa de gás de cozinha, desvio de sinal de internet, venda de cestas básicas e outros serviços básicos impostos à comunidade local”.
Curi traz como destaque a inserção dos milicianos no tráfico de drogas. Segundo levantamento da Subsecretaria de Inteligência, são 1.413 favelas com atuação do crime organizado. O CV age em 828 regiões (59%), o TCP em 238 (17%) e o ADA em 69 (5%). As milícias estão presentes em 278 áreas (19%). “Percebe-se que o narcotráfico domina 81% das favelas do estado do Rio de Janeiro, enquanto as milícias, 19% desses territórios”, completa.
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O delegado também aponta que os grupos criminosos disputam, com frequência, “o domínio territorial das referidas localidades e, por diversas vezes, no decorrer dessas disputas, ocorrem mortes de moradores, dos próprios marginais e de agentes públicos, bem como o fechamento de vias, comércio, queimas de ônibus, de veículos”.
Curi destaca que há uma média de “40 criminosos atuando no tráfico de drogas e milícia de cada favela mapeada, utilizando arma de fogo, seja fuzil ou pistola, geralmente portando ambos”. E conclui: “na área urbana do estado do Rio de Janeiro circulam, ao menos, 56.520 indivíduos portando fuzis e pistolas”.
O efeito UPP
A criação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), em 2008, de acordo com o delegado Curi, causou mudança de comportamento do tráfico e, com um afastamento da polícia das comunidades, houve o que a Polícia Civil chama de “explosão da violência” entre 2013 e 2018.
“Os traficantes não mais ostentavam as suas armas de fogo em plena luz do dia e não mais carregavam grande quantidade de drogas. Nesse novo cenário, a droga era escondida próximo aos pontos de venda e o contato com o entorpecente somente ocorria no exato momento da comercialização”, aponta Curi.
Com isso, foi criada uma “nova geração” de traficantes, com a “cooptação de menores de 18 anos e de indivíduos sem qualquer anotação criminal, o que dificultava sobremaneira a prisão dessas pessoas”. “Em poucos anos, o tráfico de drogas, como uma verdadeira ‘metástase’, se espalhou por todas as regiões do Estado”.
O delegado critica “organizações sociais e ditos ativistas” que trabalham e convivem nesses locais, que “podem vir a sofrer intervenções violentas ou não, verbais, ameaçadoras, de conivência ou de identificação ideológica, que nos leve a suspeitar e a fazer maior depuração sobre as duras críticas que fazem ao trabalho policial”.
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O pesquisador Daniel Hirata aponta para o fato de que a “redução muito expressiva, entre mortos e feridos, policiais e civis, não foi acompanhado de um aumento” de crimes. “Particularmente os homicídios dolosos, como também os crimes contra o patrimônio, especificamente o roubo de veículos, diminuíram nesse mesmo período, o que indica que a redução da letalidade, a redução das operações, não impactou na criminalidade”, pontua.
Ele explica que é errado equiparar a polícia aos criminosos, como avalia que os documentos fizeram. “Não há o que se esperar de respeito aos direitos humanos por parte do crime, mas, em uma sociedade democrática, a polícia não pode agir como os criminosos”, argumenta Hirata.
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“A polícia é representante legal do Estado e pode exercer o uso da força legítima. Mas ela tem que se comportar diferente dos criminosos, tem que ser um exemplo de postura e de atitude”, finaliza.
Polícia defende operações perto de escolas e creches
Nos documentos, a Polícia Civil também explica por que não se pode impedir operações policiais perto de escolas e creches: é lá que os que “são estabelecidas as conexões, estratégias, planejamento e plataforma para execução desses crimes, além de servir base logística, operacional, homizio e guarda de veículos roubados utilizados nos roubos dessa organização criminosa”.
Em um dos gráficos dos documentos, há informações das ligações no disque-denúncia, em que constam os dados de cada uma das organizações. As milícias são recordistas das denúncias, cerca de 7.138 em 2019.
Além disso, para o delegado Felipe Curi, ações como a ADPF das Favelas mostram desconhecimento da atuação policial e de operações policiais, que, segundo ele, são feitas a partir de uma série de passos — planejamento, execução e avaliação.
Para sustentar a argumentação de que o uso de aeronaves em operações é imprescindível, afirma que, quando são utilizadas, “o número de policiais feridos ou mortos em ações é próximo a zero. Diminuem, também, o número de confrontos durante a operação”.
Outro ponto criticado nos documentos são os “autos de resistência”, que, segundo o delegado, são “situações na qual o policial agiu legitimamente para proteger a sua própria vida, a de seu companheiro ou a de qualquer outra pessoa”.
Os dados do ISP, que apontam que, em 2019, foram registradas 1.814 ocorrências de “auto de resistência” na verdade são “1.814 tentativas de homicídio, tendo como vítimas os policiais civis e militares, os quais estariam mortos se não conseguissem neutralizar os seus opositores”.
“Não existe direito legítimo do criminoso de resistir com violência à sua prisão ou direito a impedir com violência qualquer ação policial em qualquer local”, completa Curi.
A Ponte procurou a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio de Janeiro para comentar o conteúdo dos documentos, bem como a decisão do STF de manter a proibição de operações policiais, além de outras medidas restritivas para proteger a vida das pessoas que moram em comunidade, os principais alvos dessas ações. Até a publicação da reportagem, não houve retorno.
[…] Crítico contumaz e contundente da decisão do STF, o titular do Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE), Felipe Curi, explicou, na coletiva, que todas as 24 vítimas da polícia eram “criminosos, traficantes, bandidos, homicidas”. Naquele momento, a polícia não havia confirmado a identificação dos mortos – quase todos pretos ou pardos, todos moradores da favela. Seria pedagócico se parentes processassem o delegado por calúnia – ele seria obrigado a provar que eles eram criminosos e que reagiram aos policiais e teria que apontar o policial responsável por cada morte, o que a polícia tem dificuldade em fazer. […]