Polícia matou 33 pessoas para cada policial morto no Brasil

No ano passado, o país atingiu o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais desde 2013, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar o indicador. Foram 6.416 pessoas mortas por policiais civis e militares da ativa, em serviço ou de folga, cerca de 17,6 mortes por dia, informa o Anuário do FBSP

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

O filho pequeno do agricultor Nelson Cardoso, 38, chama pelo pai, sem ter uma reposta. A esposa Andressa de Fátima Pereira da Silva, 26, lembra do marido com carinho e diz que tenta acalmar a criança. “Ele era meu amigo, uma pessoa responsável, me ajudava sempre, depois que a gente teve o nosso filho também, estou  sofrendo muito mesmo. E o nosso filho chama: ‘papai, papai’. Aí eu falo assim: ‘meu filho, teu pai está no céu, ele é uma estrelinha’. Nelson foi morto com outros dois trabalhadores rurais ao ser baleado por policiais militares em Goiás, em novembro de 2020. Ele é uma das 6.416 vítimas da violência policial no país no ano passado, de acordo com o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (15/7).

Em um ano marcado pela pandemia, o crescimento da letalidade policial é da ordem de 190% desde 2013, primeiro ano da série monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que elaborou o levantamento. Durante o ano de 2020, as polícias estaduais (civis e militares) produziram, em média, 17,6 mortes por dia. Para cada policial morto, 33 pessoas como Nelson são mortas pela polícia no Brasil, seja em serviço ou de folga. Goiás lidera a proporção de pessoas mortas para cada policial vítima no ano: 210,3. Atrás, estão Paraná (186,5) e Bahia (103,4).

O agricultor foi atingido por parte dos 43 tiros disparados por policiais militares, que também acertaram os colegas de trabalho Francisco da Silva Chaves, de 41 anos, e Aleff Nunes Souto, de 22. Naquela noite os três amigos haviam saído para buscar javalis que tinham caçado com armadilhas, segundo familiares. Quando eles retornavam para a sede da fazenda em que trabalhavam foram mortos carregando filhotes em sacos e um animal adulto sobre duas motocicletas, conforme reportagem do jornal O Popular republicada pela Ponte na ocasião. 

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As mortes provocaram ao menos cinco protestos na cidade de Cristalina. Os policiais disseram que averiguavam uma denúncia de roubo de gado quando atiradores fizeram disparos contra a viatura e depois fugido pela mata, e que revidaram e atingiram os três trabalhadores rurais. Apesar disso, familiares e patrões dos três homens dizem que eles foram confundidos pelos atiradores, se de fato esse evento aconteceu.

Michelly Nunes Souto, de 26 anos, irmã de Aleff, disse que as lembranças do irmão ainda machucam muito a família. “Tudo que a gente vai fazer a gente lembra dele, uma comida que ele gostava, minha mãe é a que mais sofre, porque passou o dia das mães sem ele. Então mudou muito tudo na nossa vida, a gente tomava café todo mundo junto. Hoje ajudamos a cuidar dos filhos dele, o mais novo tinha dois meses, nem conheceu ele”, lamenta a jovem. 

Francisco (à esquerda), Aleff e Nelson, mortos pela PM goiana | Foto: TV Anhanguera

Aleff deixou a namorada grávida, agora as famílias aguardam o laudo de reconstituição do crime feito em 8 de janeiro. “Era para sair essa semana, até agora não saiu nada”, aponta Michelly. Além da investigação na Polícia Civil, há também um inquérito policial militar, que ainda não foi remetido ao Ministério Público. Os policiais foram afastados das atividades externas, segundo a Secretaria de Segurança Pública de Goiás. 

A cor de Nelson, Francisco e Aleff também está presente no perfil da letalidade nacional: 78,9% das pessoas mortas pela polícia são negras. De acordo com o levantamento, 98,4% das vítimas são homens e 76,2% têm idade entre 12 e 29 anos. As polícias militares foram responsáveis por 72,7% das mortes, enquanto as civis provocaram 2,8% dos casos em 2020, sendo que em 24,5% dos óbitos a informação sobre a autoria não estava disponível.

Quando comparamos a letalidade produzida pela polícia em relação às mortes violentas intencionais no país, a média é 12,8%. O Brasil teve 50.033 homicídios dolosos. Goiás também aparece entre as unidades federativas que estão acima do índice nacional, com 29,1%, atrás de Amapá (31,2%) e seguido pelo Rio de Janeiro (25,4%). O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, destacou, em coletiva nesta quinta-feira, que o Amapá teve a maior redução na taxa de mortes violentas intencionais, no âmbito de 23,6%, o que sugere esse impacto na proporção com a letalidade policial. “Mas não sabemos se houve uma redução de fato ou se foi algum problema no registro”, pondera.

Além disso, dentre as unidades federativas com as maiores taxas de proporção entre letalidade policial e mortes violentas intencionais, o Amapá é o único com população abaixo de 1 milhão de habitantes. De acordo com o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população era de 669.526. Para 2020, o instituto estima que o estado tenha 861.773 habitantes.

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O pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e cientista em Humanidades pela UFABC (Universidade Federal do ABC) Dennis Pacheco explica que um dos indicadores usados para medir o uso excessivo da força ao comparar homicídios dolosos e mortes praticadas pela polícia é por meio dos estudos de Ignacio Cano, que indica que o ideal é a proporção de 10%, e de Paul Chevigny, que sugere que índice maior de 7%* é considerado abusivo.

Ele aponta uma contradição entre a redução de todos os crimes patrimoniais (roubos de veículo, contra residência, contra estabelecimento comercial e contra transeuntes), acima da casa dos 20%, de 2019 para 2020, e a manutenção da letalidade policial em alta. “Se essas pessoas estivessem morrendo em confronto com a polícia por estarem cometendo crimes patrimoniais, entendo que não haveria uma desproporção tão grande, o que mostra que essa é só uma narrativa padrão, uma forma de ação da polícia que não é legítima de fato”, indica.

Para reduzir a letalidade, destaca Pacheco, “é preciso ter vontade política dos governos, do Ministério Público para controlar a atividade policial, e mudar o modelo de policiamento que está focado na repressão para fazer revistas e prisões”.

Policiais morreram mais de Covid-19 do que em confronto

O Anuário identificou que 704 policiais militares e civis morreram em 2020, sendo que 472 desses óbitos decorreram da Covid-19, 340 eram PMs. No começo da pandemia, em março, a Ponte contou a história da sargento Magali Garcia, 46, e, um mês depois, do sargento Cleber Alves da Silva, 44, ambos da PM paulista, que perderam as vidas pela doença.

Os sargentos Magali Garcia e Cleber Silva, ambos vítimas da covid-19 em 2020 | Fotos: reprodução

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública também realizou uma pesquisa de opinião com 6.656 policiais de todo o país, entre maio e junho deste ano, incluindo a questão de como lidam com o coronavírus. 29,5% dos entrevistados disseram que testaram positivo para a doença e 85% têm medo de ser infectados. Além disso, 83,1% disseram que tiveram colegas, amigos ou familiares que faleceram por causa da Covid-19. 83,7% responderam que receberam máscara de pano ou cirúrgica e apenas 12% a do tipo PFF2, que é considerada mais efetiva contra a contaminação.

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Eles concordam, totalmente ou em parte, que uso de máscaras (93,6%) e distanciamento social (93,5%) são eficazes contra a disseminação da doença. Porém, também acreditam, total ou parcialmente, (62,8%) que utilização de medicamentos cientificamente ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina, é uma medida adequada para combatê-la.

A maioria dos policiais (49,7%), especialmente as militares (57,4%), acreditam que o governo federal está realizando ações para auxiliar seu trabalho na pandemia. Sobre a mesma questão relacionada aos governos estaduais, a maior parte dos entrevistados (46,7%) não consideram que estão sendo auxiliados.

Para Dennis Pacheco, essas respostas refletem “um alinhamento ideológico de parte dos efetivos da polícia ao bolsonarismo”, já que é a principal categoria que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acena desde a campanha. Ele aponta que o discurso de Bolsonaro também trouxe, desde o início do mandato, a promessa de ampliação do excludente de ilicitude que, apesar de não ter se concretizado enquanto lei no Pacote Anticrime, traz como mensagem uma carta branca para a letalidade.

Por outro lado, em relação à Covid-19, foi um dos incentivadores do uso de métodos ineficazes para tratar a doença e contradisse governadores e prefeitos que propagavam medidas de isolamento social e uso de máscaras. “Esses policiais mostram que estão mais dispostos a agir de acordo com os interesses do governo federal do que dos governos estaduais, que são a quem devem lealdade constitucionalmente, e, por conta dessa instrumentalização [da categoria] acabam ficando mais vulneráveis à Covid-19, justamente porque aceitaram um discurso ideológico”, avalia.

Ele também aponta que houve “uma demora para serem considerados grupos essenciais e começarem a serem vacinados”. 34,7% dos policiais disseram que foram imunizados com duas doses.

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Além disso, 194 policiais civis e militares foram assassinados no Brasil em 2020. O número foi 12,8% maior do que em 2019, quando ocorreram 172 assassinatos. E o racismo que atinge as vítimas da letalidade policial também se reflete no perfil dos policiais que são mortos: 62,7% eram negros. “Os dados indicam que a maioria dos policiais morrem fora de serviço, muitas vezes fazendo bicos para complementar a renda, estão sem apoio operacional dos colegas e da instituição, estão sozinhos e expostos a muito mais riscos por causa da falta de valorização da categoria”, critica Pacheco.

Apenas 0,2% da população prisional foi imunizada

Até junho deste ano, o Anuário apontou que 1.728 pessoas privadas de liberdade foram vacinadas com duas doses, isso equivale a 0,2% da população prisional no país, que é de 759.518 pessoas. A Ponte mostrou que, até 8 de julho deste ano, 5.372, ou 0,7% dos presos, receberam a segunda dose da vacina contra a covid-19 no Brasil, ou o imunizante de dose única, de acordo com o painel de vacinação do Ministério da Saúde.

Por outro lado, o avanço da Covid-19 no sistema carcerário foi devastador. Segundo o Anuário, a taxa de presos infectados pela doença foi 3,3% mais alta do que a verificada no país, enquanto a taxa de funcionários infectados foi 147,8% maior até maio de 2021.

A doença chegou na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Preso há quase 16 anos, Marcos (nome fictício), marido de Juliana Ferreira do Santos, se deparou com mais uma dificuldade dentro do sistema carcerário ao ser diagnosticado com Covid-19 em abril de 2020. Aos 40 anos, ele começou a ter sintomas como dores fortes no corpo, febre e perda do olfato, como diz a esposa. “Meu marido ficou na cela dividindo com outros presos, tinham mais pessoas doentes e a enfermaria só era para casos mais graves. Na volta da visita todos ficavam sem máscara na unidade, incluindo os profissionais”, diz a auxiliar de escritório, que hoje está desempregada.

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Em nenhum momento Marcos foi ao hospital. Ele demorou 20 dias para se recuperar e atualmente só tomou a primeira dose da vacina contra o novo coronavírus. “Ele não foi levado ao hospital e a única medicação da unidade é dipirona”. A alimentação, segundo Juliana, foi fracionada em meio à pandemia. “Meu esposo mesmo já recebeu a comida com algumas coisas estragadas, ele ficou cinco dias sem comer nada, a água fica até um horário aberta.”

A preocupação e a tristeza de ter um ente querido que já poderia ter progredido de pena doente deixou Juliana depressiva. “Eu mesma, por decorrência de tudo que aconteceu e vem acontecendo, estou com problemas de saúde, depressão, ansiedade e problema cardíaco”, lamenta. Fora isso, ela se sente humilhada quando pode visitar o marido durante a revista. “Nós visitantes passamos por preconceito pois temos o scanner para ser revistadas e ali ficam nos colocando para andar pelo menos de 15 a 20 minutos achando que temos algo guardado no corpo, é muito humilhante.”

Apesar de ser considerado um grupo prioritário por especialistas, a ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) Francieli Fantinato revelou, durante depoimento à CPI da Covid no Senado, que o ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde coronel Élcio Franco pressionou os servidores da pasta a excluírem os presos como prioridade da vacinação.

O veto aconteceu em dezembro de 2020, o que provocou atrasos na imunização da população encarcerada. A vacinação desse público começou a avançar com alguma expressão há pouco mais de 40 dias, conforme o próprio site do Ministério da Saúde. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, até 22 de junho, foram 57.619 casos confirmados de infectados e 201 mortes. Já de servidores, 18,3% do total foram contaminados, sendo que 224 morreram por causa da doença. A vacinação, porém, está mais avançada: 36.663, ou seja 31,4%, receberam duas doses de vacina.

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Já a escriturária, Marília Aparecida Silva, 33 anos, que também tem seu marido e irmão presos na Penitenciária de Marília, no interior de São Paulo, conta que a população carcerária é a que mais sofreu com a pandemia. “Desde o começo da pandemia eles foram os primeiros a ser privados das suas famílias, quem contrai o vírus lá dentro é curado com Dipirona e Dorflex, o meu irmão estava sem paladar, com todos os sintomas da Covid-19, mas se curou rápido. Em Marília a vacinação já está na faixa de 35 anos, mas tem preso de 46 anos que não tomou a vacina ainda.” 

Para Dennis Pacheco, o índice de vacinação na população prisional mostra que “presos não são considerados pessoas com direitos e, tendo seus direitos não garantidos, não é dada a devida importância para essa população porque o senso comum é de que se é bandido, melhor que esteja morto”.

Os dados referentes ao primeiro semestre de 2020 indicam um novo aumento no total de pessoas privadas de liberdade, que passou de 755.274, em 2019, para 759.518, mas apontam uma queda de 0,2% na taxa de pessoas privadas de liberdade por 100 mil habitantes, que era de 359,4 em 2019 e passou a 358,7 em 2020.

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Segundo o Anuário, a proporção de presos cumprindo pena em regime aberto no último ano cresceu, passando de 3,4% do total de presos em dezembro de 2019, para 6,5% em junho de 2020, com cerca de 23 mil mais presos em 2020 nesse regime. Por outro lado, ainda que a proporção de condenados ao regime fechado e presos provisórios tenha caído proporcionalmente, em números absolutos, foram 13.437 pessoas a mais cumprindo pena no regime mais restritivo.

O perfil das pessoas presas ainda é o mesmo, em 2020: 66,3% se identificavam como negros e 48,6% possuíam entre 18 e 29 anos. Os pesquisadores avaliam que o aumento progressivo do número de vagas não tem acompanhado o crescimento no número de pessoas encarceradas. “Superar a superlotação no sistema, portanto, passa necessariamente por uma revisão na política de encarceramento, já que apenas a disponibilização de novas vagas – ainda que necessária – não vem sendo suficiente para garantir as condições estruturais dos presídios no país”, diz Betina Warmling Barros, especialista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no estudo.

Oito dos 27 estados não informam dados sobre violência contra LGBT

Este é o segundo ano consecutivo que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública inclui dados que tratam de violência contra a população LGBT. No ano passado, a Ponte destacou que 15 dos 27 estados e o Distrito Federal se recusavam a contabilizar esses números. A discrepância diminuiu, mas continua: oito ainda não forneceram nenhum tipo de informação – Acre, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Sergipe.

Com isso, salta aos olhos crescimento na casa dos 20% nos crimes de lesão corporal dolosa, homicídio doloso e estupro contra LGBTs, de 2019 para 2020, Dennis Pacheco explica que esse índice demonstra “uma pressão de instituições e da imprensa para que os estados forneçam esses dados” e não um reflexo direto de que a violência tenha aumentado. “Acreditamos que ainda exista subnotificação porque se levantamentos feitos pelo Grupo Gay da Bahia e pela Antra (Associação Nacional de Transexuais e Travestis) mostram um número maior do que os informados pelas secretarias dos estados é porque os governos não coletam esses dados de forma sistematizada”, enfatiza.

Para se ter uma ideia, o Fórum recebeu números que somam 121 homicídios dolosos contra LGBT+ em 2020. Já o Grupo Gay da Bahia e a Acontece Arte e Política LGBTI+ contabilizaram 237 mortes violentas dessa população no ano passado. A Antra mapeou 175 assassinatos apenas de pessoas transexuais e travestis no mesmo período.

O pesquisador destaca que os dados fornecidos pelas secretarias de Segurança Pública são “precários” e que desde que o STF (Supremo Tribunal Federal) equiparou a LGBTfobia ao crime de racismo, em junho de 2019, as pastas não buscaram implementar a medida. “Alguns estados justificaram que não têm um método para informar se a vítima é ou não LGBT, outros de que não existe um campo dentro desse tema para preencher [no boletim de ocorrência], mas todos esses problemas não têm custo para serem implementados, as polícias têm setores de T.I. para isso, que é uma mudança administrativa, o que falta mesmo é vontade política”, explica.

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Nessa esteira, ele também elenca que as vítimas de LGBTfobia sofrem o mesmo problema de vítimas de racismo: desencorajamento de denúncias e falta de treinamento das polícias para compreender o que são essas violências, que se reverberam em uma violência institucionalizada. “As polícias não foram capacitadas para atender essas vítimas, os delegados não sabem preencher e nem diferenciar o que é orientação sexual e identidade de gênero, alguns preenchem nome social como apelido das pessoas e, para além disso, tem as questões ideológicas: as polícias são muito LGBTfóbicas, racistas, não enxergam o discurso de ódio como um problema e que o papel deles como agente institucional é combater a LGBTfobia”, analisa.

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O Anuário computou, no ano passado, 10.291 registros de injúria racial, uma diminuição de 20,2% em relação a 2019, e 2.364 registros de racismo, uma queda de 20,8% comparado a 2019. O crime de injúria está na esfera dos crimes contra honra no Código Penal, associado a uma discriminação individual, cuja pena varia de um a seis meses de reclusão ou pagamento de multa. Já o crime de racismo é inafiançável e imprescritível respaldando-se, na lei, a uma discriminação dirigida à coletividade. “Tem muito mais registros de injúria racial do que de racismo justamente porque os policiais minimizam o crime de racismo, não incentivam as denúncias e quando essas vítimas conseguem [denunciar] mudam a tipificação para injúria”, pondera o pesquisador.

Brasil tem o dobro de armas nas mãos de civis em 3 anos

O levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública define o aumento de armas nas mãos de civis no Brasil nos últimos três anos como uma verdadeira corrida armamentista. De acordo com o estudo, em 2017 a Polícia Federal informava que o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) continha 637.972 registros de armas ativos. Ao final de 2020, este número subiu para 1.279.491, um aumento de mais de 100%. Com isso, em cada grupo de 100 brasileiros há ao menos uma arma disponível, quando somadas as armas registradas no Sinarm com as registradas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército.

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O levantamento revela que, entre 2017 e 2021, em todos os estados brasileiros houve aumento de pessoas físicas registrando sua primeira arma ou renovando o registro anterior de armas que já possuem. Entre os estados com mais novos registros está o Distrito Federal que em 2017 apresentava 35.693 armas registradas e pulou para 236.296 em 2020, um aumento de 562%. São Paulo apresentou o menor crescimento no país de novos registros, 28,7% no mesmo período.

Além disso, foram registradas 186.071 armas novas por civis, um aumento de 97,1% em comparação com 2019. O levantamento também destacou o aumento de armas de atiradores desportivos, foram encontrados 111.512 novos registros, 36,8% a mais que 2019, além do grande crescimento da quantidade de pessoas registradas como CACs (Registro de Colecionador, Atirador e Caçador) junto ao Exército Brasileiro, que passou de 200.178, em 2019, para 286.901, em 2020, um aumento de 43,3%.

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Na avaliação dos pesquisadores Isabel Figueiredo advogada, mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e Ivan Marques, advogado, mestre em Sociologia e Direitos Humanos pela London School of Economics and Political Science (LSE), presidente da Organização Internacional Control Arms e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o aumento expressivo no número de registros de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) é preocupante por uma série de fatores. “O primeiro é o acesso virtualmente ilimitado da categoria a tipos de armas e calibres com alto poder ofensivo. O segundo é a dificuldade histórica do Exército Brasileiro em fiscalizar essa categoria que tende a ter armas em abundância em suas residências.”

Segundo a análise do relatório, o desvio de finalidade no uso destas armas é outro fator que traz preocupação no aumento de armas registradas por CACs. “Com medidas como a liberação do ‘porte de trânsito’, que permite que atiradores desportivos carreguem armas municiadas e para pronto uso no trajeto de sua residência até o local de treinamento, foram observados diversos casos em que atiradores simplesmente passaram a portar armas sem necessariamente estar no caminho de treinos ou competições”.

Eles também chamam a atenção ao fato de que o aumento do acesso a armas e calibres antes limitados às forças de segurança e defesa ao cidadão comum e aos CACs provoca a  desidratação de medidas de rastreamento e controle de armas de fogo munição, enquanto o governo facilita “a subversão da categoria por criminosos”.

Ajude a Ponte!

“Investir em investigação contra o tráfico internacional e nacional de armas e munições, aumentar o controle de arsenais públicos para evitar o desvio e promover campanhas de entrega voluntária de armas para retirar da sociedade armas não desejadas são ferramentas importantes para a diminuição da violência armada no Brasil”, dizem os pesquisadores.

Outro lado

A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública de Goiás sobre o índice de letalidade policial, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) sobre a vacinação de pessoas privadas de liberdade, as secretarias de segurança ou equivalentes dos estados do Acre, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Sergipe osbre a falta de dados sobre violência contra LGBTs e o Ministério da Justiça e a Polícia Federal sobre o crescimento do armamento civil e aguarda respostas.

Ponte questionou a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo sobre qual é a posição da pasta frente aos fatos relacionados a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau e a Penitenciária de Marilia, segundo a pasta são seguidas “determinações do Centro de Contingência do coronavírus, com adoção de protocolos rígidos de segurança sanitária, suspenção de atividades coletivas, intensificação da limpeza em todas as áreas, restrição de acesso às unidades, distribuição de equipamentos de proteção pessoal (máscaras e luvas), monitoramento dos grupos de risco e testagem em massa.  As medidas são tomadas em todas as unidades prisionais do sistema carcerário, sem exceção, incluindo portanto as penitenciárias de Marília e de Presidente Venceslau.”

Sobre a vacinação, a SAP informa que na Penitenciária de Marília, 129 presos foram imunizados contra a Covid-19, recebendo a 1ª dose da vacina. “Mais 100 doses serão recebidas nesta sexta-feira (16). Na Penitenciária II de Presidente Venceslau, 463 foram imunizados contra a Covid-19, recebendo a 1ª dose da vacina. Outros 121 detentos também serão imunizados hoje, da faixa etária entre 30 e 39 anos, conforme calendário estipulado pelo GVE – Grupo de Vigilância Epidemiológica do município de Presidente Venceslau”.

A assessoria da Sejusp de Minas Gerais declarou que está trabalhando para a aplicação do filtro. “Apesar de este recorte de vítimas LGBTQIA+ já existir no Registro de Eventos de Defesa Social (Reds), a base de dados ainda não está consolidada para extração pelo sistema. Trata-se de uma informação autodeclarada e que não é de preenchimento obrigatório, o que dificulta a extração das estatísticas”, justificou.

A Polícia Civil do Ceará informou que, em 17 de maio deste ano, implementou “uma comissão de monitoramento das ocorrências de CVLI (Crimes Violentos Letais Intencionais) contra pessoas LGBTQIA+ consumadas a partir de 2020”, ligada ao Departamento de Polícia Judiciária de Proteção aos Grupos Vulneráveis, em todo o estado. Além disso, declarou que o órgão fez uma atualização no Sistema de Informações Policiais que “permitiu a inclusão dos campos referentes à orientação sexual e identidade de gênero”. A pasta informou que busca esclarecer os crimes contra essa população. “Com a adequação desses campos, é possível identificar com mais facilidade os crimes de LGBTfobia, bem como melhorar os dados estatísticos concernentes à população LGBTQIA+. Para aprimorar o atendimento às vítimas, a Delegacia Eletrônica (Deletron) incluiu em maio de 2021, três novas tipificações criminais para registro de ocorrências. Com a alteração, os crimes de preconceito, sejam eles por raça, cor ou por condutas homofóbicas ou transfóbicas, podem ser registrados pela internet pelo endereço eletrônico https://www.delegaciaeletronica.ce.gov.br“, diz trecho da nota.

A Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul** informou que ainda não dispõe de “um código” que sistematize informações sobre o público LGBT+ nos boletins de ocorrências, mas que está planejando essa mudança além de qualificar a tropa, e que em dezembro de 2020 foi criada primeira Delegacia Especializada de Combate a Intolerância de Porto Alegre. “Desde o início do ano, vem sendo estudado, junto com o setor de tecnologia, alterações que integrem um código de fato específico nas ocorrências. Além da questão tecnológica, a inclusão desse novo código demanda a capacitação do efetivo da ponta para a utilização correta dessas informações, o que está em fase planejamento”, informou.

*ERRATA: A reportagem havia apontado que o pesquisador Dennis Pacheco explicou que o estudo de Paul Chevigny indicava 15% como taxa considerada abusiva em relação à proporção de letalidade policial e mortes violentas intencionais. O índice, na verdade, é 1/15, que corresponde a 7%. O texto foi corrigido às 16h30, de 15/7/2021.

**Reportagem atualizada às 10h11, de 16/7/2021, para inclusão de resposta da SSP-RS.

Correções

*ERRATA: A reportagem havia apontado que o pesquisador Dennis Pacheco explicou que o estudo de Paul Chevigny indicava 15% como taxa considerada abusiva em relação à proporção de letalidade policial e mortes violentas intencionais. O índice, na verdade, é 1/15, que corresponde a 7%. O texto foi corrigido às 16h30, de 15/7/2021. **Reportagem atualizada às 10h11, de 16/7/2021, para inclusão de resposta da SSP-RS.

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