Oitava etapa da quinta fase da Operação Caronte aconteceu no fim da tarde desta quinta (19); ação teve 10 presos e 15 detidos para “averiguação” na Rua Frederico Steidel, novo endereço do “fluxo”
A Polícia Civil de São Paulo, em conjunto com a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana, deflagrou a partir das 16h desta quinta-feira (19/5) a oitava etapa da quinta fase da Operação Caronte, ação comandada pelo 77º DP (Santa Cecília) e pela delegacia seccional do centro com o alegado objetivo de combater o tráfico de drogas na cena aberta de venda e consumo de entorpecentes no centro de São Paulo conhecida pejorativamente como “Cracolândia”.
Depois da ação realizada na quarta-feira passada (11/5), que espalhou pessoas em situação de rua por toda a região, uma concentração se formou na Rua Frederico Steidel, ao lado do Terminal Amaral Gurgel e da estação de metrô Santa Cecília, com barracas e venda e consumo de drogas, cena que é chamada de “fluxo”. A operação desta quinta-feira (19) cercou as entradas da rua, colocou as pessoas no chão sentadas e só as deixava sair após uma revista minuciosa realizadas por guardas civis da Inspetoria de Operações Especiais (Iope).
A ação foi avisada à imprensa na garagem do 3º DP (Campos Elíseos). O delegado Roberto Monteiro, titular da seccional, disse que essa era a 12ª incursão da Polícia Civil no fluxo no âmbito dessa operação. “O importante é que fazemos uma repressão contínua ao tráfico de drogas e, ao mesmo tempo, temos o trabalho social da Prefeitura de São Paulo e do Estado também para dar assistência ao dependente químico, é um trabalho longo, com persistência e resiliência”, declarou.
No entanto, o delegado ignorou os casos de violência denunciados pela reportagem na ação de 11 de maio, como um imigrante angolano em situação de rua agredido na cabeça com cassetete pela GCM e a morte de Raimundo Donato Rodrigues Fonseca Júnior, que estava em situação de rua e tinha dependência química e foi baleado por policiais civis do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra) – unidade que também participava da operação na Rua Frederico Steidel – e cujos episódios foram alvo de protestos no domingo (15) contra a truculência policial. “Nesses dez meses, não tivemos nenhuma intercorrência com usuários. Não tivemos usuários feridos nem mesmo traficantes. Penso que, quando trabalhamos bem e a ação é bem planejada, não há danos colaterais nem para o marginal.”
A equipe da Ponte registrou um homem detido na operação que contou que os policiais fecharam as ruas e chegaram jogando bombas de efeito moral e atirando com balas de borracha. Segundo comunicado da Polícia Civil, o objetivo da operação seria cumprir 32 mandados de prisão que ficaram pendentes da ação na Princesa Isabel. Segundo um investigador da Polícia Civil, 15 pessoas foram detidas “para averiguação” e 10 foram presas. Não é legal detenções para averiguação, mas os investigadores alegaram que se tratavam de pessoas que poderiam estar sem documentos, que tinham algum problema mental ou estarem desaparecidas. Porém, não deram maiores detalhes. Umm relatório posterior da Polícia Civil aponta que oito pessoas foram presas em flagrante, acusadas de tráfico, além de outras duas com mandado de prisão em aberto. Dois menores de idade foram arpeendidos mas encaminahdos aos responsáveis legais.
A reportagem da Ponte acompanhou o processo do começo ao fim. Em um momento, Edilson Santana Fernandes, 56 anos, que diz ser médico aposentado e que hoje vende água no centro, tentava deixar o cerco para seguir com seu tratamento de leucemia, mas foi impedido pelos policiais. “Eu não tenho nada com a Justiça, só quero ir para o meu tratamento. Não sou ladrão, não sou vagabundo. Tô pedindo para que me revistem!”, disse, indignado. Um policial civil chegou a sacar um celular e filmar a reportagem, que registrava a cena, e disse que furar o cerco para falar com o idoso poderia “gerar tumulto”, embora outras equipes de televisão circulavam por entre as pessoas do fluxo sem serem impedidas.
O repórter fotográfico Daniel Arroyo também foi repreendido pela Polícia Civil que o acusou de estar “incitando” as pessoas ao filmá-las gritando “cadê os direitos humanos?”. “Eles estão entrando em processo de abstinência”, disse uma policial enquanto empurrava o fotojornalista.
Os pertences das pessoas em situação de rua ficaram espalhados pelo chão e alguns foram jogados fora na operações de limpeza urbana. Nas revistas, permitiam levar cobertores e alguns objetos.
A parte de assistência social ficava a 160 metros do local, na Rua Helvétia, onde a prefeitura implementou uma tenda do Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT) para atendimento emergencial e que, segundo a prefeitura, mantém quatro equipes (duas diurnas e duas noturnas) multiprofissionais incluindo psicólogos, assistentes sociais, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e oficineiros para realizar o acolhimento e realizar encaminhamentos. A reportagem esteve no local, sendo que as pessoas que foram revistadas se encontravam aglomeradas na rua em frente ao equipamento.
O secretário executivo Projetos Estratégicos Alexis Vargas, que estava na área, disse que seria servida alimentação no local e que as pessoas estavam aguardando. “O serviço aqui funciona 24 horas, o perfil fa vaga que ele [a pessoa] precisa, a gente encaminha daqui”, disse. Vargas também disse que mesmo se ocorrer outra migração do fluxo, operações continuarão a ser realizadas “o quanto forem necessárias”. “Não vamos deixar o tráfico se instalar de novo.”
Paralelamente à operação, também houve panelaço em prédios vizinhos e uma manifestação de moradores do bairro de Santa Cecília que empunhavam cartazes com “fora, Cracolândia” ao lado da rampa de acesso do terminal de ônibus Amaral Gurgel e que pediam a volta do sossego de antes e uma ação efetiva do poder público. Perguntamos a investigadores no local se a operação se desencadeou por conta dos protestos de moradores, já que esse era o segundo ato, sendo que na quarta-feira (18) estiveram no Elevado João Goulart, o que foi negado.
A operação de 11 de maio fez o Ministério Público Estadual abrir um inquérito, na segunda-feira (16), para apurar a atuação da Prefeitura de São Paulo durante e depois da incursão das forças de segurança pública, já que os promotores classificaram que as pessoas em situação de rua foram tratadas como “gado” e que o programa Redenção não previa o uso da violência para dispersar o fluxo como método de tratamento. A Defensoria Pública também denunciou a violência à Corte Interamericana de Direitos Humanos nesta quinta-feira (19).
O promotor de Direitos Humanos – Saúde Pública Arthur Pinto Filho disse à reportagem, na ocasião, que a estratégia lembrava a operação “Dor e Sofrimento” de 2012. Se você está apanhando todo o dia e alguém te abre uma porta para sair daquela violência, você vai entrar nessa porta. Então, o que aconteceu em 2012 foi exatamente isso: as pessoas apanhavam na rua e algumas buscaram refúgio nos equipamentos de saúde, inclusive em comunidades terapêuticas do interior. O Estado mandava essas pessoas para as comunidades terapêuticas, ficavam lá 15 dias, 20 dias, saíam e voltavam para a ‘Cracolândia’. Tinha mais violência, procuravam novamente e voltavam”, critica. “A efetividade disso foi zero porque as pessoas iam para as comunidades [terapêuticas] fugir da violência e depois retornavam para a mesma situação porque não havia, como não há agora, uma articulação para que a pessoa saia de forma organizada: com moradia, trabalho e renda. Se ela não tiver isso, ela fica um tempo e volta para a ‘Cracolândia’”.
Veja abaixo mais fotos da operação desta quinta-feira (19)
Atualização: a reportagem foi atualizada às 17h do dia 20/5/2022 para detalhar as prisões realizadas pela Polícia Civil