‘População mais pobre infectada pelo coronavírus protege os ricos’, aponta biólogo

    Fernando Reinach, pesquisador do Monitoramento Covid-19 na cidade de São Paulo, detalha a relação da “imunidade de rebanho”, desigualdade social e racismo

    Favela de Paraisópolis criou métodos próprios para se proteger do coronavírus | Foto: Gui Christ/National Geographic

    Uma pessoa negra tem 2,5 vezes mais chances de ter contraído o coronavírus no município de São Paulo. É o que aponta o Monitoramento Covid-19, do Projeto SoroEpi MSP, feito pela parceria do Instituto Semeia, Grupo Fleury, IBOPE Inteligência e Todos pela Saúde.

    O estudo foi realizado entre 15 e 24 de junho de 2020 em domicílios paulistanos e analisou 1.183 amostras de sangue. Além disso, os pesquisadores colheram informações pessoais como raça, renda familiar e gênero da população. A atuação dos pesquisadores foi dividida em duas: nas áreas ricas e nas áreas periféricas da cidade.

    Confira a pesquisa completa

    Um dos elementos que o estudo revela é que a “imunidade de rebanho” vai proteger os mais ricos em detrimento de mais mortes e contágio entre os pobres. Esse é um conceito de epidemiologia que mostra que o vírus vai se espalhar enquanto ele acha pessoas para se espalhar, como explica o biólogo Fernando Reinach, um dos pesquisadores do projeto.

    “Ele [o vírus] vai, passa para outra pessoa, mas, antes de atingir 100% das pessoas, ele vai parar. A razão que ele para é que, quando ele vai de uma pessoa para a outra, e muitas pessoas já foram atingidas e são resistentes, ele não consegue ir para o ar, ir para outra pessoa”, explica Reinach.

    No começo da pandemia, detalha o biólogo, como ninguém mais tinha a doença, quem estava infectado poderia passar o vírus para qualquer pessoa que encontrasse. “Mais para frente, você tem 30% das pessoas já infectadas, então se você encontra algumas pessoas só uma parte vai pegar, porque a outra já pegou. Quando chega 60, 70 ou 80% o vírus não encontra pessoas para passar”.

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    Por isso, a minoria que ainda não pegou fica protegida pela maioria que já pegou. “Quando você vacina uma população enorme, por exemplo, o vírus não consegue mais passar de uma pessoa para outra, mesmo se essa pessoa não estiver vacina, ela acaba sendo protegida pelo fato de as outras pessoas estarem imunizadas. Uma parte das pessoas que fica bem protegida em casa enquanto todo mundo pega a doença, essas pessoas ficam protegidas pela imunidade de rebanho, porque o vírus não consegue mais circular”, exemplifica Reinach.

    No contexto atual do coronavírus no país, se o índice continuar crescendo, “parte da população que se infecta mais, automaticamente protege a minoria que não foi infectada. Os que conseguem se proteger mais, no fim, ficam protegidos pelo fato de todos os outros terem sido contaminados”, destaca.

    “A interpretação correta é de que, em São Paulo, assim como no Brasil, as pessoas negras têm mais dificuldades de se proteger, de se isolar e uma situação financeira pior, portanto pegam mais o vírus”, analisa Reinach.

    Gráfico: Junião

    O método de pesquisa usado no Monitoramento Covid-19 foi a soroprevalência: “Quando você é infectado pelo coronavírus, seu sistema imunológico desenvolve uma resposta. Você produz anticorpos contra o vírus e é por isso que você melhora. Então, a soroprevalência é uma medida da quantidade dos anticorpos nas pessoas”, explica.

    Os resultados da pesquisa apontam a relação do coronavírus com a desigualdade social e, consequentemente, o racismo. Nas áreas periféricas, com menos renda familiar, analisadas pela pesquisa, o resultado de soroprevalência foi de 16%, enquanto as áreas centrais, que concentram as rendas familiares mais altas da cidade, não passaram de 6%. A soroprevalência entre pessoas negras é 2,5 vezes maior do que nos brancos, 19,7% e 7,9%, respectivamente.

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    “Isso não quer dizer que seja uma questão racial, é uma questão socioeconômica”, explica o biólogo. “Quando você olha o dado tem duas interpretações possíveis. Uma que é genética, que pessoas negras pegam mais o vírus e pessoas brancas pegam menos, mas essa não é a interpretação correta”, argumenta.

    Outro ponto importante da pesquisa é que a soroprevalência diminui com o aumento do nível educacional. Ou seja, uma pessoa que não completou o ensino fundamental tem 4,5 vezes mais chance de ter tido contato com o vírus do que pessoas que terminaram o ensino superior: (22,9% e 5,1%, respectivamente). Os participantes que vivem em habitações com cinco ou mais pessoas têm 2 vezes mais chance de ter tido contato com a Covid-19 e, portanto, dado essa resposta imunológica: são 15,8% contra 8,1% entre os que moram em casas com uma ou até duas pessoas.

    Desigualdade e racismo caminham juntos

    Para o advogado e médico sanitarista Daniel Dourado, integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP, a partir de pesquisas como essas, que mostram que as pessoas mais vulneráveis são as que não puderam ficar em casa, é preciso dar um passo além e adotar medidas para protegê-las.

    “O ponto que vale chamar a atenção é que essa desigualdade no Brasil é evidentemente ligada à exclusão e ao racismo. É um indicador indireto que se torna direto, porque vemos mais pessoas pretas se contaminando e morrendo pelo vírus, por terem menos acesso. Isso revela muito a estrutura social, a forma como a nossa sociedade está organizada”, explica.

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    A avaliação do médico sanitarista Daniel Dourado é de que, se atingirmos a imunidade de rebanho no Brasil, vai ser algo “cruel e desigual”. “Vai ser às custas da população pobre e negra que vai se contaminar, vai morrer e isso vai proteger uma população que não precisou sair de casa, que não precisou se expor”.

    Por isso, avalia Dourado, “o uso da máscara é para proteger a sociedade, não para me proteger. Se todo mundo usa máscara cria-se uma cultura de solidariedade social”.

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    Com a flexibilização da quarentena, e a volta do comércio na cidade de São Paulo, explica o biólogo Fernando Reinach, o futuro ainda é incerto. “Talvez a gente tenha mais casos de infecção nas regiões centrais, porque lá tem menos pessoas contaminadas e, aí, essa desigualdade desapareça”, explica o biólogo.

    “A tendência, quando você libera as pessoas de um lado para o outro, é que os números passem a convergir para o mesmo valor. Agora temos o mais rico trancado em casa e o pessoal mais pobre não consegue se isolar. Quando todo mundo voltar a circular, o mais rico e o mais pobre saírem para trabalhar, eles vão acabar pegando a doença”, finaliza.

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