‘Porta-voz da polícia’ e ‘retrocesso’: como defensores avaliam atual ouvidor da Polícia de SP

    Para fundadora das Mães de Maio, postura de Elizeu Soares Lopes não condiz com chefe de órgão de controle da atividade policial: ‘é um cooperador da violência’

    Débora Maria da Silva, fundadora das Mães de Maio, durante protesto em 17/11/2016 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    O advogado Elizeu Soares Lopes completou um mês no cargo de ouvidor da Polícia de São Paulo e não tem convencido lideranças históricas na defesa dos direitos humanos. Isso porque tem dado declarações consideradas negativas considerando o cargo e o papel que deveria exercer: o de fiscalizar a atividade policial.

    Em entrevista à Ponte, negou que a polícia paulista mate muito e seja racista, e afirmou que muitos ativistas “talvez não saibam que a polícia se preocupa com os direitos humanos”. Números expostos em recente reportagem a partir do relatório do órgão que passou a comandar contradizem a sua fala: o aumento de mortos pela polícia foi da ordem de 11,5% e só a Rota, a tropa mais letal da PM, matou 98% mais pessoas de 2018 para 2019.

    Fundadora do Movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, que conviveu com ouvidores anteriores desde o início da sua luta, em maio de 2006, pontua que caso seja verdadeira a afirmação de Elizeu, de que sua relação com os movimentos sociais “será a mais ampla e dialógica possível”, ele terá que se esforçar muito.

    “Essa postura não é de ouvidor, é de cooperador da violência policial. Eu acho que a gente tem que dar uma aula de direitos humanos para ele. Nós viemos de uma violência policial, de uma retaliação da polícia em cima de nosso filhos e a gente vê que a ouvidoria está tendo um retrocesso muito grande”, declarou Débora.

    “Esse ouvidor não representa os movimentos sociais, não representa as mães que vêem os filhos sendo forjados, torturados, executados e desaparecendo com as ações violentas da polícia. Então a gente vê que tem um braço armado que mata e a gente não tem controle. E o papel da ouvidoria é denunciar, não é acobertar”, enfatizou a líder das Mães de Maio.

    Mesmo em terceiro lugar na lista tríplice, Elizeu foi o escolhido do governador João Doria (PSDB), que quebrou a tradição existente desde o surgimento da Ouvidoria, há 25 anos, de renovar o mandato do ouvidor. O advogado entrou no lugar do sociólogo Benedito Mariano, que no último dia no cargo, manifestou chateação com a atitude do governador. “Eu soube pelo Diário Oficial. Acho que faltou delicadeza do governador que poderia ter avisado quem estava no cargo que não ia ficar. Foi deselegante”, criticou. E continuou: “Acredito que eu não fui nomeado muito mais pelo que fiz do que pelo que não fiz”.

    Débora concorda com a avaliação de Mariano e afirma que ele não foi reconduzido ao cargo porque cumpriu o seu papel e incomodou o governo. “Ele era um articulador. Era um trabalho muito precioso para os movimentos sociais”, elogia.

    Atual ouvidor Elizeu Soares Lopes em seu gabinete | Foto: Caio Castor/Ponte Jornalismo

    Quem compartilha de visão semelhante é Marcia Conti, coordenadora das Mães em Luto da Leste, que prevê tempos difíceis na gestão do novo ouvidor. “Imagina um parceiro de Doria para ajudar um povo que, inclusive, fica acuado e violado de seus direitos nas periferias. Agora estamos nos sentindo mais acuados e frágeis na mão dessa ouvidoria. Somos povão que precisa de um poder público que nos proteja”, completou.

    O legado perdido

    Primeira pessoa a ocupar o cargo de Ouvidor da Polícia logo após sua criação em 1995, o sociólogo Benedito Domingos Mariano, que deixou a cadeira em fevereiro, manifestou incômodo com a postura e criticou algumas declarações de seu sucessor.

    Escolhido por Mario Covas, Mariano esteve a frente do órgão por quase sete anos, entre 1995 e 2000, e mais tarde, ocupou o cargo mais dois anos, de 2018 a 2020, na gestão de Geraldo Alckmin, ambos ex-governadores do PSDB. De acordo com ele, suas passagens pela pasta foram pautadas por uma frase dita por Covas: “A Ouvidoria da Polícia não serve ao governo senão para abrir os olhos onde há cegueira. A Ouvidoria da Polícia serve ao povo de São Paulo”.

    Benedito Mariano ocupou cargo de ouvidor por sete anos divido em duas passagens | Foto: Caio Castor/Ponte Jornalismo

    Benedito Mariano afirmou ter ficado preocupado com a declaração de Elizeu dada à Ponte, em entrevista no início deste mês, quando afirmou que pretende criar “um ambiente em que o ouvidor e a Ouvidoria possam não ser vistos como inimigos das instituições de segurança pública”.

    Para ele, a impressão é que falta clareza a Elizeu sobre a função de um ouvidor. “Não é questão de ser inimigo da polícia, mas não pode se omitir em se posicionar sobre as demandas que a população encaminha sobre atos irregulares ou com indícios de crimes envolvendo policiais”, disse Mariano.

    O antigo ouvidor ainda acredita que declarações desse tipo podem desqualificar, em alguma nível, o trabalho de 25 anos da instituição. “Dizer que a Ouvidoria não é inimiga das polícias pode indicar que os ouvidores anteriores eram inimigos da polícia. Nenhum ouvidor da polícia é inimigo das polícias fazendo o controle da atividade policial. O órgão contribui para melhorar a atividade policial”, explica.

    Durante a conversa com a reportagem, que durou cerca de uma hora, e foi realizada na última sexta-feira (6/3), Mariano se mostrou irritado pelo fato de o atual Ouvidor não dar, em suas palavras, a devida importância ao órgão.

    “A narrativa que o ouvidor adotou, tanto na entrevista à Ponte como para a Folha, parece mais um porta-voz das instituições policiais do que um chefe de um órgão de controle da atividade policial”.

    As críticas também são baseadas, segundo Mariano, em uma fala de Lopes, que teria afirmado à Ponte, que vai se manifestar em alguns casos somente após a conclusão das investigações, caso do Massacre de Paraisópolis, em que nove jovens morreram após ação da Polícia Militar. “Me causou estranheza ele dizer que só vai se manifestar após as investigações das polícias Civil e Militar. Há investigações que podem demorar de um a dois anos, ou seja, se aguardar a decisão final ele pode ficar dois anos no mandato e não ter feito nenhuma manifestação”, sustentou.

    Para Mariano, caso a postura de Lopes não mude, a tendência é uma diminuição na quantidade de denúncias tanto realizadas pela população quanto por policiais. “A narrativa que ele deu nas duas entrevistas pode colocar em xeque a credibilidade do órgão de controle social da atividade policial”, concluiu.

    O antigo ouvidor também criticou a postura de Lopes, que tornou público o apoio recebido de políticos ligados à Bancada da Bala, como são conhecidos os deputados estaduais que têm carreira policial. “Quando você procura quem despreza o órgão de controle pode, indiretamente, estar indicando qual o perfil de ouvidoria que vai se estabelecer no mandato”, disse Mariano, que contou sempre ter tido cuidado com o tema e tentado ser o mais imparcial possível politicamente. “Eu respeito todos os deputados porque foram eleitos com voto popular. Entretanto, jamais pediria apoio para parlamentar que, por várias vezes, manifestou desprezo pela ouvidoria”.

    Entre os antigos ouvidores, não é somente o sociólogo que analisa com preocupação a postura adotada por Elizeu Soares Lopes. O advogado Julio César Neves, que permaneceu no cargo durante quatro anos e foi sucedido justamente por Mariano, também defende que para ser ouvidor é necessário ter conhecimento da atuação.

    “O ouvidor precisa saber o que significa a palavra ombudsman [profissional contratado para lançar um olhar crítico sobre a atuação de um órgão e criar mecanismos de diálogo com público externo], aí vai entender o que é estar no cargo. O ouvidor está ali para exercer a fiscalização da polícia. Não só receber denúncia”, completou o advogado.

    Procurado através de sua assessoria de imprensa, o atual ouvidor Elizeu Soares Lopes enviou a seguinte nota: “Agradeço a preocupação dos ex-ouvidores, a quem eu respeito, e dos representantes de movimentos sociais. Mas quero tranquilizá-los: eu sei das minhas obrigações e responsabilidades, conforme preconiza a Lei Complementar nº 826/97. Meu dever é fazer a polícia trabalhar melhor, ouvindo a população, a sociedade civil organizada, a imprensa, os especialistas e todos aqueles que tenham vontade de contribuir, não de destruir as instituições. Estão todos convidados, inclusive os ex-ouvidores, a virem conhecer as profundas mudanças que estamos fazendo na Ouvidoria para coloca-la no rumo certo”.

    Reportagem atualizada às 20h23 do dia 10/3 para inclusão da nota da Ouvidoria da Polícia de SP

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