Para especialista, situação do Presídio Promotor José Costa, de Sete Lagoas (MG), mostra que “a prisão tira a condição de humana do ser humano”
Há um ano, os presos do Presídio Promotor José Costa, de Sete Lagoas, cidade localizada a 80 km de Belo Horizonte, em Minas Gerais, estão recebendo comida azeda. É o que denuncia o movimento Mães do Cárcere. Por carta, os detentos reclamam que estão magros por não conseguirem comer. Segundo as famílias, con frequência os presos ficam 15 dias sem uma refeição adequada.
Além disso, as familiares apontam que a comunicação com os presos está com graves falhas: as cartas estão demorando para entrar e sair do presídio e as chamadas de vídeo, prometidas para acontecerem uma vez por mês, não estão ocorrendo no prazo combinado com a direção da unidade.
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“Estamos totalmente sem comunicação com os nossos parentes dentro da unidade. A videochamada deveria ser feita todos os meses, mas em março ainda estão fazendo as de fevereiro. Mais da metade das familiares já estão mais de um mês sem falar com os familiares”, conta a mãe de um preso à Ponte.
“Nas poucas comunicações, eles reclamam da situação. Esse problema já tem um ano. Já fizemos duas manifestações na porta do presídio e o diretor transferiu presos por causa disso. O nosso medo é esse: há represálias do diretor”.
A mãe explica que Emerson Costa Soares, diretor de segurança da unidade, após a primeira manifestação feita em 2020, montou um grupo no WhatsApp para passar as informações do que acontecia lá dentro, mas que ele mesmo desfez o grupo posteriormente.
“Ele simplesmente saiu do grupo, falou que não ia ficar e saiu. As mães questionavam muito ele. A direção fala que não tem casos de Covid-19 lá dentro, no grupo ele nos mandavam a higienização. Agora estamos sem informação nenhuma, nem o telefone fixo de lá atende”.
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Para Andreia MF, idealizadora movimento Mães do Cárcere e militante de direitos humanos, é a falta de funcionários na unidade que gera o problema da comida azeda. “A comida é feita de um dia pro outro e não fica na refrigeração porque comida de preso é comida pra porco”.
“A gente já tem essas denúncias há muito tempo. Presos são tratados piores do que animais. Estamos falando de seres humanos que estão presos e precisam ser reintegrados à sociedade. O Estado tem essa obrigação”, aponta.
Andreia reforça que os movimentos sociais, como as Mães do Cárcere, a Amparar, Amigos e Familiares de Presos e a Pastoral Carcerária, que acaba cumprindo esse papel do Estado. “A gente se coloca na frente da luta para atender as familiares e não fechamos a porta na cara delas”.
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A ativista ainda aponta que a situação no presídio de Sete Lagoas não é isolada. “A única coisa que muda nas denúncias de presídios é nome do presídio, o nome da direção e a distância. A opressão é a mesma”.
“Diante do que está acontecendo no país e no mundo, o Estado acha sempre uma maneira de piorar a situação. Com boa vontade, já teríamos resolvido muitas coisas, mas o interesse deles não é resolver porque dizem que são regalias. Onde tá escrito que dar uma comida, que é o mínimo, ter atenção da família, é regalia?”, questiona.
Andreia argumenta que dentro do sistema prisional há idosos, pessoas com deficiência, com questões psicológicas e jovens. “Já passou da hora do Estado começar a fazer as coisas porque eles estão criando um barril de pólvora. E eles querem isso: um matando o outro. A desgraça entre o preto, o pobre e o favelado”.
A única arma para mudar essa realidade, garante Andreia, é conscientizar os jovens periféricos da situação das cadeias. “O Estado brinca de marionete com as nossas vidas. Chega de ver gente morrer. Vamos gerar mais escolas, sem escola e uma mente estudada é um gatilho certo. Só a educação vai salvar esse mundo”.
‘O sistema prisional é uma reprodução das desigualdades da sociedade’
A pedido da Ponte, a advogada Patrícia Silveira da Silva, mestranda em Direito na Universidade Federal do Paraná e responsável no Infovírus por colher informações sobre o avanço da pandemia no sistema prisional de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e também do sistema socioeducativo, analisou as denúncias enviadas pelo movimento Mães do Cárcere.
Para ela, a situação expõe uma situação mais profunda. “Comunicação com os familiares e comidas de boa qualidade eram direitos minimamente disponibilizados, mas, atualmente, com a pandemia, a gente precisa destacar que está sendo utilizado pelo sistema prisional, pelo próprio poder judiciário, para agravar as situações de precariedade”.
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Para a especialista, o “sistema prisional é uma reprodução das desigualdades que existem na sociedade em si”. “O sistema de justiça, o sistema de controle social, é voltado para uma reprodução de desigualdade racial, de gênero e classe. Os presídios são majoritariamente ocupados por pessoas negras, tanto do sexo feminino, quanto do sexo masculino, e isso se estende pro sistema sócio-educativo”.
Patrícia aponta para uma dupla vitimização de mulheres negras nesse processo do encarceramento. “Além de estarem ocupadas na posição de chefe de família, muitas vezes, enquanto o seu companheiro ou parente está privado de liberdade, ela tem que administrar a família e o próprio familiar que está preso”.
Tudo isso, continua Patrícia, acontece pela seletividade do sistema penal e da escolha das desigualdades que serão reproduzidas nas cadeias. “A gente consegue enxergar na medida em que essas denúncias vem aparecendo, porque as pessoas que estão lá dentro não tem acesso à saúde, à educação e ao saneamento básico, que vivem nas margens da sociedade e em regiões periféricas”.
Para ela, é preciso destacar a responsabilidade do poder judiciário e das polícias para esse controle social sobre essas pessoas. “Não são todos os crimes que são investigados da mesma forma, não são todos eles que são penalizados da mesma forma. Conseguimos ver que a estrutura do sistema penal e o objetivo da prisão, de prevenção de crimes, é falho”.
“A gente consegue perceber muito que o lugar da prisão tira a condição de humana do ser humano, por isso ele pode ficar sem contato com a família e comer comida estragada. Justamente porque ele deixa de ser humano no momento em que no momento em que ele comete um crime”, continua.
Por fim, Patrícia avalia que esse é um problema estrutural e que é preciso repensar alternativas para as prisões. “É imprescindível que a gente pense alternativas à prisão e não somente a pena de prisão, sobretudo porque os casos e os crimes não deixam de ser cometidos. Aumentar as penas não combate os crimes”.
Outro lado
A reportagem encaminhou as denúncias recebidas para o Depen, o Sejusp e o governo de Minas Gerais e aguarda retorno.