Fruto de uma gambiarra legislativa, as prisões temporárias são “atestado de incompetência investigativa”, além de inconstitucionais e uma forma legalizada de torturar suspeitos, afirma a professora Aline Passos
As prisões temporárias dos ativistas Paulo Galo, 32 anos, dos Entregadores Antifascistas e de Géssica de Paula Silva, 29 anos, ocorridas na última quarta-feira (28/7), provocaram debates nas redes sociais em torno da legalidade e da forma como essas prisões são usadas no Brasil. Galo foi preso após se apresentar de forma voluntária no 11º DP (Santo Amaro) após investigações da Polícia Civil sobre o incêndio à base da estátua do bandeirante Borba Gato, em Santo Amaro, zona sul da capital paulista, ocorrido no sábado (24/7).
A prisão do casal ocorreu a partir de um pedido apresentado pela Polícia Civil, que alega “associação criminosa”, definido no artigo 288 do Código Penal como “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”.
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O ativista afirmou que teve participação na ação, mas Géssica não esteve presente no momento do ato. Ainda assim, o casal que tem uma criança de três anos ficou preso. A ativista e costureira foi solta após a juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) revogar a prisão temporária nesta sexta-feira (30/7).
Os advogados Jacob Filho e André Lozano Andrade, que representam o casal, criticaram veementemente a prisão temporária, uma vez que o casal se apresentou à polícia de forma espontânea. Galo afirmou que a proposta da ação seria “abrir o debate”. Em entrevista à Ponte na última quarta-feira (28), Jacob apontou inconsistências na prisão do casal. “Você pega políticos que foram presos mas a mulher não, porque tem um filho menor. Mas quando se trata de uma mulher negra, periférica, aí sim. A Géssica tem uma criança de três anos. Você tem uma decisão da Suprema Corte que veda esse tipo de prisão, mas ela está mantida”, afirmou.
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O advogado se refere a um habeas corpus coletivo da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de fevereiro de 2018 que determina que mães com filhos de até 12 anos que tenham prisão cautelar decretada cumpram prisão domiciliar.
A conduta da polícia com a chancela judicial gerou uma série de críticas jurídicas e levou a uma forte campanha nas redes sociais. Em entrevista à Ponte, Aline Passos, professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia, doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e colunista da Ponte, afirma que o que está em curso é a caracterização de um movimento social como uma organização criminosa. Ela também explica que as prisões temporárias são uma forma de tortura psicológica ou física e ainda um “atestado de incompetência investigativa”.
Surgimento das prisões temporárias
No ordenamento jurídico brasileiro as prisões por averiguação foram substituídas pelas prisões temporárias que existiam antes da promulgação da Constituição de 1988 e que com a nova Carta tornaram-se ilegais, explica Aline Passos. “Em 1989, o então presidente José Sarney, criou a prisão temporária por meio de uma medida provisória”.
Tratava-se, portanto, de uma inconstitucionalidade, de acordo com a professora, “já que matéria penal só pode ser objeto de lei em sentido estrito, e não de ato unipessoal do presidente. No entanto, a medida provisória, uma vez submetida ao Congresso Nacional, foi aprovada, apesar de inconstitucional. E essa gambiarra respondia, justamente, à insatisfação das forças policiais com o desaparecimento da prisão para averiguação, muito comum no período anterior.”
Significava que a polícia podia prender, levar para a delegacia, e lá “encontrar um motivo” para manter preso, esclarece Passos. “A constituição de 1988 deixou bem claro que prisão só poderia ser por mandado ou em flagrante. Isso dificultava o trabalho de uma polícia acostumada a extrair confissões nas carceragens. Um polícia cuja ‘investigação’ consistia em fazer obras de ficção: criava-se uma história e buscava-se, então, um jeito de fazer as pessoas corresponderem aos papéis”.
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Dessa forma, as prisões temporárias passaram a estimular práticas preconceituosas, diz Aline. “Obviamente, quase sempre histórias perversas que retroalimentavam todo o racismo, perseguição religiosa, misoginia que são estruturais na sociedade brasileira. Nos anos 1990, por exemplo, as narrativas policiais alimentavam o pânico moral sobre ‘magia negra’ que, obviamente, era uma maneira de criminalizar religiões de matriz afro-brasileira. Havia um caso, a polícia criava um roteiro de filme ruim a partir da existência de uma ‘seita’ e chamava a isso de investigação”.
A lei da prisão temporária é a 7.960/1989, que determina em seu artigo 2º que “a prisão temporária será decretada pelo juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade”.
Ela pode ser aplicada em apenas três casos, sendo eles, “quando imprescindível para as investigações do inquérito policial”, quando “o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade”, ou “quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado de morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro.”
Sigilo no caso Galo e Géssica e a criminalização do movimento social
As prisões temporárias de Galo e Géssica, na visão de Aline Passos, são questionáveis em diversos aspectos, sobretudo na acusação da associação criminosa. “A associação criminosa (art. 288 do Código Penal) é um crime que precisa de três ou mais pessoas para se concretizar. A decisão da juíza contemplou essa exigência ou apontou duas pessoas apenas e ficou por isso mesmo? Indicou, pelo menos, fortes indícios de presença de outros integrantes? Ou foi na base da suposição de um terceiro integrante genérico, fantasmagórico, mera presunção?”.
Segundo ela, a associação criminosa não é apenas um grupo que se junta e pratica um crime. “É uma relação entre os membros que exige o mínimo de estabilidade, de coordenação.”
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E é neste ponto que reside o perigo em caracterizar organizações políticas como associações criminosas, aponta. “Se estamos falando de uma pessoa militante, como o Galo, o que está em curso é a caracterização do seu grupo político como criminoso. E veja que, aqui, não estou falando sequer de qualquer ato praticado. Estou falando da existência da organização política e do movimento social, não da criminalização da ação direta que chamuscou uma estátua feia, ridícula, que homenageia o genocídio. É da própria organização e/ou movimento social, pela sua existência.”
A decisão que decretou a prisão temporária foi colocada sob sigilo, outro ponto questionável em toda a ação investigativa e judicial, alega Passos. “As diligências em andamento nos inquéritos policiais, obviamente, são sigilosas, para não comprometer a investigação. Mas uma decisão judicial que decreta prisão não pode ser. A fundamentação dessa decisão não pode ser sigilosa. Pelo menos denunciar o sigilo seria interessante”, sugere.
Polícia acostumada com tortura
Recorrente na ditadura militar (1964-1985) a prática de tortura deixou suas marcas nas polícias do atual período democrático, e segundo a pesquisadora é daí que vem a necessidade da prisão temporária. “Perder a prisão por averiguação fez as polícias perguntarem ‘e como vamos investigar agora?’. Claro, tudo que as polícias brasileiras entendiam, e alguns até hoje, por investigação, é que precisa do corpo de alguém à disposição, porque é desse corpo que vai sair ‘a verdade’”.
A prisão temporária, inicialmente, tinha o prazo de duração de um inquérito comum: cinco dias prorrogáveis por mais cinco dias, o que segundo Passos não permite uma investigação consistente. “O que se investiga em cinco dias com a polícia técnica que temos? Nada. Não sai uma perícia em cinco dias. Não se ouve todos os informantes necessários em cinco dias”.
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“Então, para que servem esses cinco dias de prisão?”, questiona a professora. “A resposta correta é: tortura. Na linguagem policialesca-popular, podemos dizer que é para ‘dar um susto’, ‘dar um aperto’. Mesmo que não haja tortura física, mas muitas vezes há, na própria prisão na carceragem, os policiais dizem ‘é melhor você colaborar’, tudo isso tem a função de fazer a pessoa pensar ‘vou falar logo para me ver livre desse inferno’”.
A chancela judicial das prisões temporárias
Todas as prisões temporárias precisam ser autorizadas pela Justiça atualmente, como explica a professora e pesquisadora. “A prisão temporária só pode ser usada em inquéritos. Diferente da sua antecessora, a prisão para averiguação, a temporária precisa de mandado judicial para ser efetuada. No entanto, a expectativa de que o judiciário exercesse qualquer controle sobre esse tipo de prisão foi imensamente frustrada, como sempre. A magistratura brasileira passou apenas a chancelar, colocar uma assinatura, validar, os pedidos da polícia”.
Os requisitos da lei são muito abertos, ou seja, não há clareza de quando elas podem e devem ser aplicadas, o que provoca a banalização de seu uso. “O que significa ‘quando imprescindível para as investigações do inquérito policial’? Significa na verdade: ‘quando o delegado disser que precisa da pessoa presa para ‘investigar’. Não há o que ser investigado no corpo de uma pessoa presa que um exame de corpo de delito no IML (Instituto Médico-Legal) não possa fazer”, crítica.
Nesse sentido, a necessidade da prisão para a investigação demonstra incompetência da polícia, na visão da pesquisadora. “Se você precisa ‘prender para investigar’, muito provavelmente, você não vai investigar nada. A prisão também influencia os parentes, amigos, vizinhos, comunidade. A prisão temporária vai ter esse efeito também de alerta que ‘facilita’ outras pessoas a ‘abrirem a boca’”, diz.
Além do mais, ela ressalta que o ônus da investigação é sempre do Estado. “Quando se prende porque é ‘imprescindível’ para a investigação isso é um imenso atestado de incompetência investigativa. Algo que nós sabemos pela frequência com que as polícias brasileiras bagunçam, propositalmente ou não, os locais onde ocorrem os crimes”.
Mudanças na aplicação da lei
A lei da prisão temporária só pode ser aplicada aos crimes listados na lei. Ela foi sofrendo alterações diretas e indiretas ao longo do tempo, como a prorrogação de conclusões de inquéritos policiais, informa Passos. “Por exemplo, com a lei de crimes hediondos, que é de um ano depois, ou seja, de 1990, todas as pessoas acusadas desses crimes podem ter prisão temporária decretada por 30 dias prorrogáveis por mais 30 dias. Isso mexeu profundamente nos inquéritos, que passaram, então, a poder durar até 60 dias”.
Como vários crimes para os quais cabem a prisão temporária são hediondos e a lei de crimes hediondos estabelece um prazo de 30 dias para prisão temporária que pode ser prorrogado por mais 30 dias, existem prisões temporárias que acabam ocorrendo por até 60 dias, como aponta Passos. “Há casos em que as pessoas não são sequer formalmente acusadas, mas meramente indiciadas e ficando presas temporariamente por até dois meses”.
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