Além de proteger a corporação, proposta limita controle de estados sobre a PM e, segundo analistas, pode abrir caminho para um golpe em 2022, caso o presidente seja derrotado nas urnas
O papel nebuloso da polícia e a escalada da extrema-direita na corporação ganhou destaque na mídia em todo o mundo nos últimos dias. No cenário internacional, por causa da participação dela no atentado ao Capitólio nos EUA, enquanto aqui no Brasil, os holofotes se voltam no momento especialmente para uma proposta que está em discussão no Congresso Nacional, um substitutivo ao projeto de Lei PL 4363/2001. Se aprovado, segundo análise de especialistas, pode impulsionar ainda mais o avanço de posições políticas extremistas dentro da polícia militar.
“É um retrocesso institucional perigoso”, afirma o ex-secretário de segurança pública de Minas Gerais e professor da PUC Minas, Luiz Flávio Sapori. “Não traz avanços e reafirma atribuições do passado, principalmente do ponto de vista da militarização”. O texto propõe, por exemplo, criar cargos de generais para comandar as polícias militares. “Isso nunca existiu”, comenta o professor.
O texto do PL, além de propor que nomeação de comandantes-gerais venha de uma lista tríplice indicada por oficiais, cria o Conselho Nacional de Comandantes Gerais de Polícia Militar, com atribuições deliberativas, assento e representação no Ministério da Defesa e da Justiça e Segurança Pública. “Seria uma instância acima de governadores, que poderá tomar decisões sobre todas as polícias militares do país”, observa Sapori.
O professor chama a atenção ainda para outro detalhe que aparece na proposta. “O governo federal passa a ter atribuições na polícia militar do país, podendo determinar fardamento, viatura e até currículo de formatura.”
Segundo o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, a proposta aguarda a designação de um novo relator. Porém, ele alerta que, cumprida essa etapa, vai a votação, pois estão apensados a propostas prontas para plenário. “Essa é a estratégia, pegaram carona em um projeto antigo que está pronto para votação, ou seja, que já passou por todas as comissões”.
Golpe em 2022
Para alguns analistas, a proposta é considerada grave, porque parece ter o objetivo de blindar a polícia, limitar o controle de estados e abrir caminho para um golpe em 2022, caso o presidente seja derrotado nas urnas.
“É malfeito, construído sob a lógica do corporativismo”, afirma o professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e pesquisador na área de segurança pública, Rafael Alcadipani. Na opinião do professor, não traz soluções para a polícia que, em sua análise, precisa ser mais técnica e focada em metas. Segundo ele, o PL traz novos problemas.
“Pode trazer impactos expressivos para populações mais vulneráveis”, avalia. A falta de controle e de transparência, que já são clássicas nas polícias brasileiras, só devem piorar, prevê o professor.
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Para Alcadipani, o PL parece estar alinhado com uma perigosa escalada da extrema-direita na polícia militar brasileira. “Como ter uma polícia menos politizada é um debate que precisamos realizar”.
O pesquisador chama a atenção para o cenário de descontrole escancarado. “Fazem até campanha política como policiais, a polícia praticamente se tornou um partido político.”
Ele vê com preocupação um possível uso das polícias por Bolsonaro em uma possível derrota em 2022. “Há um risco de uma tentativa de golpe.”
Posições antidemocráticas
Quem ainda acha que a tal ascensão da extrema-direita nas polícias é exagero, pode encontrar razões para mudar de ideia em estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Desde julho de 2020, o Fórum tem produzido uma série de pesquisas que buscam mostrar justamente as ameaças do comprometimento político e ideológico das polícias.
Um desses estudos, chamado “Política e fé entre os policiais militares, civis e federais do Brasil”, entre outros dados, mostra o percentual de policiais que interagem em ambientes bolsonaristas nas redes sociais e uma outra parcela de policiais que espalham postagens defendendo ideias de ruptura institucional e medidas antidemocráticas como o fechamento do congresso nacional e prisão de ministros do supremo.
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Na opinião do diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima a questão não é a policia ser ou não de direita. “O problema é flertar com posições antidemocráticas”.
O grau de comprometimento das bases policiais com posições mais radicais do bolsonarismo é um aspecto ao qual precisamos estar atentos, segundo Lima.
Trabalho de base
“O bolsonarismo é maior que o Bolsonaro”, argumenta Lima. “É um movimento neoreacionário que ganha força no Brasil”. Para ele, tudo a ver com o que aconteceu com o Trump e com o que tem acontecido nos EUA, que culminou na invasão do Capitólio.
Lima lembra que essa escalada não é de hoje, e cita o motim do Ceará. “Bolsonaro não se posicionou contra as greves da polícia por lá”. Lima pondera que não se trata de proibir a participação política, mas é preciso regular para conter excessos e desvios. “Precisamos olhar para esse fenômeno da politização extrema das polícias.”
O ano de 2020 emitiu diversos sinais do grau de deterioração da institucionalidade das polícias brasileiras, sobretudo das militares, alerta Lima.
Outra ameaça que ele aponta é o “trabalho de base” que o bolsonarismo tem feito junto as policiais, com a ida de Bolsonaro, e aliados, em formaturas e o discurso a favor do excludente de ilicitude (dispositivo que permite que se cometa um crime em legítima defesa ou em exercício do dever).
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Sem dizer quem vai pagar a conta, Bolsonaro, no começo da semana (segunda, 11/1), prometeu desconto de 20% para policiais militares no Ceagesp. Um vídeo postado pela deputada Leticia Aguiar (PSL-SP) espalhou a novidade nas redes.
Lima observa que Bolsonaro, na prática, não fez nada substantivo para as polícias. “Não alterou o quadro normativo e deixou que elas construíssem as propostas de leis orgânicas, sob uma perspectiva de blindagem corporativista”. Uma minuta sobre a polícia civil também está em debate, mas ainde em estágios iniciais.
“Se por um lado, de segurança pública o projeto de lei não tem absolutamente nada, na prática Bolsonaro segue conquistando corações e mentes da base policial”, avalia Lima.
Na análise do professor do departamento de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Acácio Augusto, haverá impactos para periferias e favelas. “Se hoje a violência policial já é mais ou menos liberada, com uma instância acima justificando isso pode ser que aumente a letalidade”.
O professor da Unifesp ressalta ainda que, desde o pacote anticrime apresentado e do programa de segurança pública Em Frente Brasil, ainda na gestão do ministro Sérgio Moro, Bolsonaro já avançava com atuação sindicalista em relação aos policiais.
“O grande lobby dele era o excludente de ilicitude que, de certa forma, com estatutos como os autos de resistência, na prática já existe”. Augusto avalia que, portanto, o principal efeito do PL, caso seja aprovado, é de uma dificuldade ainda maior na apuração de casos da violência policial em periferias e favelas.