Quando brancos processam negros e indígenas que denunciam racismo

Advogada bolsonarista e jornalistas Madeleine Lacsko e Rachel Sheherazade estão entre os brancos que recorrem ao Judiciário para não serem chamados de racistas; alvos dos processos apontam tentativa de silenciamento

As jornalistas Madeleine Lacsko e Rachel Sheherazade e a advogada Carolina Costa Miranda | Fotos: Redes sociais

A historiadora Bruna Santiago se assustou quando recebeu, na semana passada, uma intimação judicial. “Psicologicamente, eu estou muito abalada”, lamenta. Uma advogada branca de Campina Grande (PB) pede que a jovem negra lhe pague R$ 20 mil de indenização por danos morais e faça um pedido público de desculpas. O motivo foi Bruna ter questionado uma foto postada pela advogada, num grupo de oito pessoas, todas brancas, que aparecem em um bar sob a legenda “Reunião da Cuscuz Clã”, em 30 de setembro.

Bruna compartilhou a foto, que tinha sido repostada pela conta do Instagram do bar, no seu Twitter com a legenda: “A supremacia branca de Campina Grande perdeu a vergonha na cara mesmo”. A postagem da historiadora foi apagada após o juiz Algacyr Rodrigues Negromonte, do Juizado Especial Cível da Paraíba, acatar a liminar (pedido de urgência) da advogada Carolina Costa Miranda para que o conteúdo fosse removido. Além de Bruna, outras três pessoas negras que apontaram cunho racista na foto feita por Carolina também estão sendo processadas.

Reprodução da postagem feita por Bruna Santiago em 1/10/2022, com rostos e nomes censurados a pedido da historiadora | Foto: Reprodução

A defesa da advogada alegou que a expressão seria uma referência ao ao nome do álbum Cuscuz Clã, do músico negro Chico César, lançado em 1996. Segundo a defesa, houve “interpretação totalmente equivocada” das quatro pessoas negras que relacionaram a legenda com o grupo supremacista branco norte-americano Ku Klux Klan, o que teria causado “danos” à imagem e honra da advogada e de seus amigos, “como se fossem racistas”.

Trecho da petição do processo movido por Carolina Costa Miranda | Foto: Reprodução

O contexto, porém, parece ser outro. Nas redes sociais, Carolina indica ser apoiadora do presidente Jair Bolsonaro (PL) desde 2018. Em setembro deste ano, durante a campanha eleitoral, o então presidenciável Luis Inácio Lula da Silva (PT) comparou os atos do Dia da Independência, com grande presença de bolsonaristas, a uma “reunião da Ku Klux Klan” pela participação majoritária de pessoas brancas.

A declaração foi ironizada por Bolsonaro no Twitter, que adaptou o nome do grupo supremacista (ou compreendeu de forma errada) a um prato típico em alguns estados do Nordeste, o cuscuz: “Parece que o ex-presidiário se sentiu excluído após esse vídeo. Em resposta, chamou o povo de ‘cuscuz clã’, talvez porque assistiu a milhões de brasileiros vestindo amarelo”, escreveu. Não demorou para que eleitores e candidatos bolsonaristas se apropriassem da expressão para demonstrar apoio.

Justiça Eleitoral mandou retirar outdoor com referência à Ku Klux Klan com apoio a Bolsonaro em Blumenau (SC)| Foto: Reprodução/Twitter

“É um grupo de advogados, as redes sociais deles são só de conteúdo bolsonarista, então eles estavam muito por dentro do que estava acontecendo quando postaram essa foto”, aponta Bruna, que é conhecida nas redes sociais pela conta @leituraspretas, é doutoranda em história, pesquisadora das relações de raça e gênero no Brasil e nos Estados Unidos e autora do livro O Pensamento de Angela Davis.

“Várias pessoas compartilharam o print falando do absurdo e que tinha cunho racista”, prossegue. “Ninguém estava falando desse CD [do Chico César], o que estava no contexto de fato era da carreata do Bolsonaro [algumas carreatas e motociatas usaram a expressão em fotos de divulgação].”

Com a repercussão, o bar que havia repostado a foto de Carolina acabou se retratando e publicando uma nota em que disse não apoiar “manifestação ou apologia a políticos e movimentos ligados ao ódio e ao preconceito”, que “racismo é crime” e que o estabelecimento estaria trabalhando “para que os responsáveis sejam punidos conforme a LEI”.

Carolina Costa Miranda é apoiadora do futuro ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas redes sociais | Foto: Reprodução

Bruna afirma que, dias depois, amigos da advogada a procuraram. “Falaram de forma muito intimidadora, querendo pegar um tipo de confissão minha, fizeram todo um cercamento e acabaram processando várias pessoas da cidade que são feministas, são negras e que compartilharam”, diz Bruna. “Um rapaz do grupo da ‘Cuscuz Clã’ alegou que era filho de um militante do movimento negro, então jamais seria racista, e eu achei muito simbólico colocarem esse rapaz para falar comigo para defender o grupo, dizendo que não tinha nenhum viés político, sendo que todos postam a favor de Bolsonaro.”

“Eu vejo como mais uma ferramenta para que esses brancos se vitimizem”, critica a historiadora sobre a judicialização do caso. “A branquitude é vitimista porque acusa a gente daquilo que ela é, então a prática do racismo com o advento das redes sociais acaba não sendo uma coisa que pega bem para eles. Eles não deixam de ser racistas, eles são racistas explicitamente, se protegem dentro daquilo que eles têm poder”.

Bruna abriu uma campanha de financiamento coletivo online para obter recursos para gastos com defesa. Para ela, o processo é um meio de intimidação. “É uma forma de silenciamento, porque se a gente tem medo de se expressar, se a gente sabe que eles têm um poder socioeconômico maior fazendo com que as pessoas tenham medo de falar, eles podem continuar sendo racistas abertamente”, aponta.

A defesa de Carolina argumenta que o “dano à imagem” se deu pela associação a Ku Klux Klan, mas também por entender que lhe foi atribuída a prática de racismo, crime previsto na Lei nº 7.716/1989, e que, por isso, Bruna e os demais estariam praticando calúnia, que é imputar um crime de forma mentirosa a alguém, conforme o artigo 138 do Código Penal. Essa interpretação ensejou não apenas o processo movido pela advogada como outros levantados pela Ponte por duas jornalistas contra outras pessoas, também solicitando indenizações, por discussões em redes sociais.

Silenciamento

Ao menos seis pessoas (três negras, uma indígena, uma travesti e um homem branco) estão sendo processadas pela jornalista e colunista do UOL Madeleine Lacsko um ano depois de uma discussão no Twitter em que ela foi chamada de racista e transfóbica. A jornalista entrou com pedidos de indenização individuais cobrando R$ 48 mil por danos morais de cada uma das seis e remoção das postagens no Juizado Especial Cível de Cotia, na Grande São Paulo. A justificativa das ações judiciais é de que eles estariam cometendo calúnia (ao imputar falsamente crime de racismo e/ou transfobia) e difamação (atribuir um ato ofensivo à reputação) contra ela e que os tweets feriram a sua honra e imagem.

Madeleine Lacsko vende curso em que ensina a combater o que chama de “identitarismo” | Foto: Reprodução/Instagram

Tudo começou em julho de 2021, quando o então assessor da Presidência da República Tércio Arnaud Thomaz repostou na rede social uma reportagem do site Brasil 247 que tinha a foto do historiador Jones Manoel e a declaração “Jones Manoel diz que já comprou fogos para eventual morte de Bolsonaro”. Na imagem, Jones, que é negro, usa cabelo black power e barba. O então secretário Especial de Cultura e hoje deputado federal eleito por São Paulo pelo PL, Mario Frias, comentou: “Realmente eu não sei. Mas se soubesse diria que ele precisa de um bom banho”.

O tweet com a frase racista, que associa as características físicas de uma pessoa negra a sujeira, foi rebatida pelo próprio historiador e apagada depois pelo Twitter. “Governo liberal-fascista de Bolsonaro é lotado de racistas, nazistas e tudo que não presta”, escreveu Manoel, que é militante do PCB e, na época, disse que processaria Frias pelo ataque.

A repercussão do caso gerou diversas manifestações nas redes sociais. Uma delas foi a de Madeleine, cujo tweet ainda está disponível, que disse no mesmo dia:

Diversas pessoas, com muitos ou poucos seguidores, influenciadores digitais ou não, passaram a questioná-la sobre o comentário e se a jornalista estaria reduzindo uma denúncia de racismo a um “chilique”. Um rapaz respondeu: “racismo é chilique? denunciar racismo é chilique?! tá virando notícia porque é uma figura do governo cometendo um crime abertamente. mas é óbvio pra que pra branquitude, isso é chilique. se você um de vocês chorando aí tinha que ser visto”. O comentário teve como réplica de Madeleine “Bom, amigo, quando eu chorei ninguém viu não. Só quando foi para vir dar lição de moral em mulher”.

As declarações de Madeleine foram comentadas pela estudante de gastronomia, chefe de cozinha e influenciadora indígena Deborah Santos Martins, que foi um desses seis alvos de processo pela jornalista. Deborah escreveu na ocasião: “Tá vendo porque feminista branca é uma desgraça? Em algum momento ela vai usar do feminismo pra se esquivar de ser acusada de alguma merda. Tá proibido agora chamar racista de racista porque é ‘dar lição de moral em mulher’. Vai tomar no cu Madeleine”.

À Ponte, Deborah disse que usou a situação como um exemplo de que diversas pautas, entre elas o feminismo, precisariam ter um olhar mais interseccional, ou seja, integrar problemáticas de raça, de classe e afins. “Eu usei o tweet dela para provar esse ponto, porque não é um caso isolado de uma mulher branca que se usa do feminismo para atacar minorias racializadas”, afirma.

“Falei que esse é o modus operandi de pessoas racistas porque acham que podem se safar do ataque, das represálias, ela sendo uma jornalista, uma pessoa com influência nas redes sociais colocando tudo no fato da conta de ela ser mulher, como ela sendo mulher não desse o poder de oprimir outras pessoas”, explica.

Outro usuário do Twitter que também usou o tweet de Madeleine para fazer um comentário foi o advogado e pesquisador João Coimbra Sousa. Ele fez um “print” do texto dela e escreveu “exemplo” ao dizer que “se seu feminismo iguala homens brancos e homens negros na categoria ‘macho’, você é uma supremacista branca”. João Coimbra também é alvo de ação judicial e a crítica que fez vai na mesma linha de Deborah. “Ela usou a perspectiva de gênero para diminuir a luta do homem negro e apagar a violência contra o homem negro”, afirma.

O problema que João identifica, contudo, é que o reconhecimento do racismo para condenar uma pessoa parte da interpretação do Judiciário, que é majoritariamente branco. Um exemplo é o caso da cantora Ludmilla. Em março de 2021, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reverteu uma condenação contra a socialite Val Marchiori para indenizar a cantora por ter dito que o cabelo dela “parecia de bombril”. Os desembargadores acataram a argumentação da defesa de Val de que o comentário não se referiu ao cabelo próprio da funkeira e sim a uma peruca de cabelo black power que “usava como fantasia”.

“Não é assim que a gente deveria discutir racismo no Brasil”, critica João Coimbra. “O racismo não é só um crime, é a estrutura que faz com que um juiz branco, togado, decida sobre um tema que ele não conhece, não é cobrado para saber e diminui o conhecimento de quem sabe”, prossegue.

“Não tem como tipificar [criminalmente] um comportamento que se perpertua por séculos porque a construção da sociedade, do ordenamento jurídico, do Estado burguês, foi feita sobre os corpos negros e as terras indígenas roubadas. Quando não existe política pública, como acesso à saúde para a população, que é uma maioria pobre e negra, isso é racismo”, explica.

Outro exemplo aconteceu com a empresária Luanna Teofillo que foi demitida da agência PR Newswire após denunciar ser vítima de racismo quando a então chefe, Thais Antoniolli, disse ‘tira isso’ ao ver suas tranças no cabelo, em 2016. Passados cinco anos, a funcionária não teve a denúncia aceita na esfera criminal e ainda foi condenada a pagar uma indenização de R$ 15 mil à antiga empresa por suposta difamação por conta das postagens que fez nas redes sociais.

Em 2020, uma reportagem da Ponte foi censurada e retirada do ar após denunciar a batalha judicial enfrentada pela empresária negra. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a decisão e a matéria voltou ao ar. Em âmbito administrativo, a Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo condenou a empresa e Antoniolli a pagarem multa à pasta, com base na Lei estadual 14.187/2010, que pune empresas e pessoas físicas por discriminação racial.

Deborah e João também relatam o mesmo sentimento de silenciamento que Luanna contou na época à Ponte. “A ameaça do processo é ainda mais perigosa porque entra na sua cabeça como um movimento de autocensura e quem perde é a população. A ideia é essa porque impede de pautar politicamente o racismo”, afirma o pesquisador.

Direito de nomear

Das seis ações, apenas uma já teve uma sentença, a movida contra Deborah. O juiz Eduardo de Lima Galduróz não deu ganho de causa para Madeleine ao argumentar que as postagens dela estavam amparadas pelo direito à liberdade de expressão.

“De fato, ao sugerir que um ativista negro, a quem foi sugerido tomasse banho, não tivesse sido vítima de racismo, tratando-se antes de fruto de sua suscetibilidade exacerbada, a autora [Madeleine] — aliás, repita-se, figura pública — sujeita-se naturalmente a críticas, com a informalidade típica da linguagem das redes (por ela própria empregada ao utilizar a expressão ‘macho chiliquento’), inclusive daquelas que vejam, em tal conduta, uma atitude de leniência com o racismo”, redigiu o magistrado.

A decisão foi proferida em 3 de outubro e a jornalista teria 10 dias para recorrer, mas não o fez e a ação judicial foi extinta. Para Aline Passos, advogada que representa Deborah, João e mais um jornalista branco processado por Madeleine, o fato de o Juizado Especial Cível ser um órgão do Poder Judiciário voltado a causas de menor complexidade e que não exige gastos na primeira instância se torna uma “estratégia” de gerar intimidação sem ônus para quem processa.

“Se você entra numa Vara Cível Comum, quando entra com processo, você tem que pagar custas e honorários. Já no Juizado Especial, na primeira instância, você não precisa. Por isso ela optou por não recorrer. Mas gera para o Judiciário um custo, tem custo de servidores, custo do juiz, do processo judicial eletrônico, está mobilizando o Judiciário por treta de internet porque sabe que não vai pagar, além do custo emocional para pessoa que está sendo processada”, critica.

Aline também questiona nos processos uma suposta “instrumentalização do judiciário” em virtude de um curso administrado por Madeleine, intitulado “Cidadania Digital”, que oferece um pacote de aulas em que ensina “Análise Profissional de Casos Reais que Envolvem a Manipulação da Cidadania Digital” e afirma “Entenda como Madeleine Lacsko lutou e venceu judicialmente ataques virtuais e aprenda a colocar seus ensinamentos em prática”.

Reprodução do site em que Madeleine Lacsko vende um curso chamado “Cidadania Digital” em que se apresenta como especialista do assunto.

A jornalista também vende livros tratando sobre o tema de uso de redes sociais e de “identitarismo“, com uma campanha de financiamento coletivo para discutir sobre o assunto que conceitua como um “projeto de autoritarismo”, que perpetua a “cultura do cancelamento”, causa “divisionismo social” a partir de uma “turma que sequestrou as pautas identitárias para transformar no mercado da lacração, sem ajudar nenhuma minoria e ainda validando perseguições”.

“Todos os dias você vê por aí o tal do ‘alerta de gatilho’, linguagem de gênero neutro, ideologia de gênero, separação das pessoas por categoria de etnia ou orientação sexual. Isso tem ajudado quem? Um mercado que vende o alívio da culpa burguesa”, escreveu Madeleine no site da campanha.

A socióloga Flavia Rios, em entrevista ao Nexo, explica que esse conceito de “identitarismo” tem sido simplificado de forma de ataque a grupos sociais que fazem reivindicações por igualdade no espaço público e são lidos como fragmentadores políticos. “Esse é um equívoco muito grande, porque esse discurso sobre um suposto divisionismo estabelece o pressuposto de que há uma oposição entre os grupos que reivindicam diversidade, pluralismo, respeito, reconhecimento, e os que reivindicam demandas materiais ou econômicas”, explica.

O advogado e pesquisador João Coimbra Sousa ainda aponta uma outra camada, em que as próprias pessoas brancas não se reconhecem como identidade. “A defesa do branco é uma ideia de ser neutro, um humano que não tem sabor, ele é o normal e todo o resto é um desvio”, pondera.

A advogada Aline Passos aponta que processar pessoas por ser ter sido chamado de racista numa tentativa de se dizer antirracista mostra o oposto. “A gente sofre de excesso de informação e informação equivocada, mas não dá para dizer que a gente sofre de falta de informação, principalmente em alguns estratos sociais”, critica.

Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Yasmin Rodrigues concorda. “Que outra forma as pessoas que sentem o racismo se manifestarão, senão falando exatamente que o sentiram? Fere a honra de pessoas brancas serem chamadas de racistas, mas não fere a honra agir em desfavor das pessoas pretas?”, critica.

“A meu ver, decisões desse tipo demonstram uma escolha do Judiciário numa educação para o desencorajamento da denúncia. Quando, em verdade, o que pessoas brancas precisam é justamente serem apontadas quando cometem algum ato racista — e ninguém está livre disso, em uma sociedade estruturada por esse sistema de distribuição de humanidade. Os antirracistas aproveitarão a oportunidade para reavaliarem suas ações, os demais se sentirão gravemente ofendidos”, afirma Yasmin.

Aline Passos, que também é doutora em sociologia pela Universidade Federal de Sergipe e colunista da Ponte, acrescenta que uma mudança estrutural não se concretiza sem desconforto: “Pessoas brancas como eu precisam, em primeiro lugar, parar para entender o que está sendo colocado. Não é um exercício fácil, mas não dá para escapar de algum tipo de responsabilização”.

E quem não tem feito esse exercício é a jornalista Rachel Sheherazade. Em 2021, ela moveu um processo com pedido de indenização contra o jornalista e ex-deputado Jean Wyllys após ter sido chamada de racista no Twitter.

Tweets de Sheherazade e Wyllys que fomentaram discussão no Twitter | Imagens: Reprodução

Além da postagem ter sido removida por decisão liminar (de urgência) na época, o tribunal paulista condenou Wyllys, em agosto deste ano, a pagar R$ 30 mil à comunicadora. A petição de Sheherazade também foi feita ao Juizado Especial Cível de Barueri, na região metropolitana, e pelo mesmo escritório que representa Madeleine Lacsko. Ambas comemoraram a sentença pelas redes sociais.

Representante de Wyllys e sócio no Flora, Matheus & Mangabeira Sociedade de Advogados, Lucas Mourão aponta que está recorrendo da sentença e que o ex-deputado fez referência a um fato notório na carreira da jornalista que aconteceu em 2014, quando era âncora e comentarista do jornal SBT Brasil, ao dizer ser “compreensível” um adolescente de 15 anos ser torturado por “justiceiros” por ter cometido pequenos furtos no Rio de Janeiro.

“Ele está respaldado numa conduta muito específica de quando ela defendeu que seria legítimo determinado grupo de pessoas amarrar um adolescente negro pelado pelo pescoço no meio da rua e dar uma coça nele sem qualquer legalidade. Apontar esse fato como racista não configura calúnia”, afirma.

Na época, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública contra o SBT pelas declarações de Sheherazade por violação aos direitos da criança e do adolescente e por estimular tortura e “justiça com as próprias mãos”. Contudo, a Justiça Federal acabou julgando improcedente a ação do MPF.

Mourão, que atua na defesa de casos que envolvem a temática da liberdade de expressão, explica que nomear condutas não se restringe a crimes. “Historicamente, racismo, machismo, qualquer violência contra grupos minorizados são se tratam apenas de crimes, são também uma classificação política de determinadas condutas que violentam determinados grupos”, explica.

Ele configura esse tipo de processo como assédio judicial e forma de silenciamento similar a um movimento que tem sido discutido na Inglaterra e nos Estados Unidos, o SLAPP, cuja sigla significa Strategic Lawsuit Against Public Participation, ou seja, ação judicial estratégica contra participação pública.

“Quando uma pessoa pública processa outra pessoa, seja pública ou anônima, por falar sobre determinado tema, ainda que essa autora do processo não tenha expectativa de vencer esse processo ou nenhuma chance de vencer, acaba criando um ambiente hostil a respeito daquele assunto”, explica Mourão.

No caso específico de Sheherazade, a avaliação do advogado é de que o intuito não é necessariamente receber uma indenização. “O objetivo é que o evento em que ela incita linchamento de um adolescente negro nu amarrado num poste seja comentado e reverberado anos depois daquilo que aconteceu e manchou, de alguma forma, a imagem pública dela. Então, se alguém recupera esse assunto e começa a falar sobre isso e aponta que tinha, sim, traços de racismo naquela afirmação, ela entra com processo para que isso seja hostilizado pelo sistema judiciário e que as pessoas se sintam constrangidas a falar sobre aquele tema”, afirma o advogado. “A pessoa que está sendo processada vai precisar contratar advogado, vai ter que comparecer à audiência, ter recursos psicológicos, inclusive, tempo e dinheiro para se defender e ela, que é uma pessoa famosa e tem recursos próprios, geralmente maiores que seus opositores, faz com facilidade.”

Ajude a Ponte!

Bruna Santiago, Deborah Martins e João Coimbra relataram à Ponte que decidiram falar sobre os processos justamente para não se esmorecerem e terem o direito de se expressar.

“A gente precisa discutir sobre um sentimento de antinegritude em que uma lei que veio para proteger pessoas negras e indígenas está sendo subvertida por pessoas brancas”, aponta Bruna. “É um também um questionamento sobre o compromisso de uma justiça antirracista porque esses processos vão se acumulando e as decisões abrem precedentes para outras coisas e se essas pessoas sabem que podem ter uma Justiça conivente com isso, então dá mais liberdade ainda para eles”.

“Não vou passar o resto da minha vida me podando e me diminuindo para que outras pessoas se sintam confortáveis”, complementa Deborah. “É muito cômodo para eles parar de me posicionar e falar as coisas que eu acredito, de agir de acordo com meus valores e minha ideologia. É isso que eles querem, foi isso que ela quis: me intimidar, me calar, me silenciar”.

O que dizem as citadas

A Ponte procurou o escritório Mainenti, Grossi e Froes de Aguilar Sociedade de Advogados, que representa as jornalistas Madeleine Lacsko e Rachel Sheherazade. Pedimos entrevista com os advogados e/ou com as duas a respeito dos processos e dos questionamentos levantados pelas pessoas que estão sendo processadas. Por e-mail, o escritório encaminhou a seguinte nota:

Nossas clientes não tem interesse em prestar esclarecimentos sobre os processos e consequentemente nós, representantes, também não.

As questões estão sendo discutidas nos autos e levada à apreciação do Judiciário, conforme averigua por você.

Sendo assim, agradeço o contato, mas cordialmente iremos nos manifestar somente nos autos dos processos.

Também procuramos, por telefone e e-mail, o escritório Trajano & Melo Advocacia, que representa Carolina Costa Miranda, mas não tivemos retorno até a publicação. Caso se manifeste, a reportagem será atualizada.

Já que Tamo junto até aqui…

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