‘Quem postar vídeo vai morrer’, diz PM a testemunhas de chacina em S. Vicente

    Após matar quatro pessoas no Complexo dos Diques, PMs voltaram para fazer ameaças, segundo moradores

    Local onde o corpo de um adolescente foi jogado pela PM | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Há mais de 30 anos, moradores periféricos construíram o que hoje é o Complexo do Dique, em São Vicente, no litoral sul de São Paulo. Apenas um corredor separa o Dique do Piçarro e o Dique do Caxeta, que formam o completo. O local é uma área localizada na periferia da região norte do município. Lá, algumas casas são feitas de alvenaria e outras de palafita. Os moradores vivem com um canal cortando as casas – quando chove, o canal enche. Também precisam desviar dos escombros e lixos acumulados no chão.

    Esse corredor, chamado de beco pelos moradores, foi usado como rota de fuga quando a comunidade foi surpreendida na última sexta-feira (8/11) por tiros disparados por policiais do Baep (Batalhões da Polícia Militar do Estado de São Paulo), mais conhecida como a “Rota do interior e litoral”. A tropa segue o modelo da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), o grupo mais matador da PM paulista, e cujo “padrão” de atuação é expandido para todo estado pelo governador João Doria (PSDB).

    Apesar da tentativa, a fuga não foi bem sucedida para todos os moradores. A operação daquele dia matou quatro pessoas, entre elas três jovens com menos de 18 anos. Um dos adolescentes, de apenas 15 anos, foi jogado no canal depois de ser baleado, como mostra vídeo obtido pela Ponte. Outro jovem ficou ferido pelos disparos feitos pelos policiais.

    A Ponte esteve nos diques na tarde desta terça-feira (12/11) e conversou com alguns moradores e familiares dos jovens mortos na ação do Baep. O clima geral é de tensão, existe bastante resistência para que cada um dê a sua versão dos fatos e até mesmo fale sobre seus familiares. Depois de muita conversa foi possível coletar as histórias. “Foram mais de 50 tiros”, relata uma moradora, que não quis se identificar por temer represálias.

    Muitas casas nos diques são de palafitas | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Outra moradora, de 22 anos, relembra como tudo começou. “Eles tumultuam aqui, chegam atirando, chegam invadindo as casas. Eu moro aqui e não tenho paz, não consigo dormir porque eles invadem direto o meu portão. Eles acham que todo mundo aqui é traficante, mas na comunidade tem morador, tem trabalhador, tem gente do bem. Eles já invadiram a minha casa, tudo encapuzado, e quebraram tudo. Eu não tô aqui porque eu quero e sim porque não tenho condições de morar em outro lugar”, relata a jovem à Ponte.

    A ação policial matou quatro pessoas foi realizada durante a tarde, por volta das 15h e 16h, momento em que a comunidade estava cheia de moradores. Entre crianças e mulheres, a moradora foi uma dessas pessoas que estava na rua quando a polícia chegou atirando no Dique do Piçarro. Do outro lado, no Dique do Caxeta, outros policiais militares cercavam a comunidade. Os moradores relatam que foi uma emboscada.

    A jovem de 22 anos mora no Dique do Piçarro há 12 anos. Ela relembra que, quando mudou para a região, era fácil encontrar crianças brincando nas ruas – jogando bola e brincando de esconde-esconde. Hoje, a realidade é outra. Desde o começo deste ano, afirma a moradora, operações policiais violentas acontecem na comunidade. Ela também conta que é comum os moradores serem surpreendidos pela Polícia Militar de madrugada, quando os PMs invadem as casas e quebram os pertences de quem mora na região.

    Beco usado pelos moradores para fugir dos tiros | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Para a jovem ouvida pela Ponte, o que aconteceu no local na última semana foi um massacre. “A PM foi matando todo mundo que vinha pela frente. A população começou a gritar para eles pararem, nisso eles jogaram uma bomba que fez um barulhão. Eles davam tiros em sequência, sem se importar se tinha criança. De sexta para cá, eles [PMs] tem vindo na parte da manhã”, afirma.

    “Eu moro aqui há 12 anos e nunca presenciei um tiroteio nem morte aqui.  Na hora do acontecimento foi muito rápido, a viatura já chegou atirando lá do campo, que tinha muita gente jogando bola, muita criança. Todo mundo correu, ninguém ia ficar. Os policiais já vieram com tudo e do outro lado já tinha outros PMs cercando. Não tinha saída. Lá no beco tem bastante morador e muitas crianças”, completa a moradora.

    Uma das vítimas foi Josemar dos Santos, 35 anos, dono de uma adega. Lá nos diques, ele é mais conhecido como Jhow. Em entrevista à Ponte, os familiares de Jhow contam que ele não era morador dos diques, mas vivia por lá para jogar futebol no campinho. Os parentes relatam como tudo aconteceu, mas preferiram não se identificar por temerem represálias dos policiais que circulam pela região todos os dias.

    Os tiros começaram no Dique do Piçarro, do lado esquerdo da comunidade | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    A irmã de Josemar conta que ele era o único homem dentre seis irmãos. A garçonete, apenas dois anos mais velha que o irmão, conta que ele era uma pessoa que todos podiam contar, um ótimo filho e um “irmãozão”. “Eu não tenho como descrever meu irmão. Estamos abalados com o que fizeram com ele. Ele sempre ia lá para jogar, porque ele tinha um time lá. Ele era um irmãozão, o que precisava dele ele tava junto sempre. Minha mãe e meu pai estão muito tristes, estão sem nem conseguir comer”, relata.

    Durante a ação, a irmã de Jhow estava em casa, mas, assim que soube que o irmão tinha sido baleado, correu para o Dique do Piçarro. “Me ligaram falando que os policiais tinham pegado o meu irmão. Os meninos estavam no Dique conversando enquanto esperavam para jogar bola. Tinha criança, mulheres, os meninos estavam todos conversando e foi na hora que gritaram para correr dos tiros. Todo mundo correu, não teve um que não correu”, descreve.

    Além do trauma, os moradores agora vivem com as marcas de tiro em suas casas | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    “Muita gente acabou correndo para esse beco, incluindo mulheres e crianças, que poderiam ter sido atingidas. Na hora que eu cheguei lá, tentei entrar nesse beco, mas tava cheio de polícia. Pedi autorização para entrar e eles apontaram as armas falando que iriam atirar. Demos a volta, do outro beco, foi quando eu vi o meu irmão no chão”, relembra. “Nessa hora, iam executar o outro menino, que sobreviveu, mas começaram a gritar. Eles falaram que o meu irmão tava vivo, mas ele não tava mais vivo, eles já tinham executado ele. Os PMs atiraram para matar, meu irmão tava com uma bala na cabeça que veio de lado. Eles apontaram e atiraram”, denuncia a irmã.

    Além dela, outra irmã de Jhow foi ao local. Ela tentou pedir ajuda para socorrer os quatro baleados, mas foi impedida pela polícia. A irmã estava do lado da outra e relata como foram os momentos de desespero em que elas tentaram socorrer o irmão em vão.

    “Eles fecharam os dois diques, falaram que quem passasse para o outro lado eles iam executar. Minha irmã falou que era da área da saúde, ligou para o resgate e o cara falou ‘passa o telefone para algum dos PMs para eles autorizarem a gente a mandar um resgate’. O resgate só poderia ir depois que os policiais autorizassem. Minha irmã falou que prestaria socorro mesmo se fosse filho deles, pediu para prestar socorro para os meninos baleados, foi quando um PM falou que não tinha mais ninguém baleado, que estavam todos mortos”.

    A mulher conta que foram mais de 45 minutos até os PMs liberarem que a ambulância chegasse ao local. “Eles estavam esperando morrer para depois chamar o resgate. Foi 45 minutos para chegar, sendo que o resgate estava tão perto que poderia salvar a vida dos meninos. A família do menino que sobreviveu está com medo, porque no domingo, quando eu estava enterrando o meu irmão, eles [PMs] estavam na favela quebrando tudo”, conta. “Eles não podem fazer o que fizeram, jogando o menino no canal, executando o menino e jogando dentro do canal. Todo mundo viu isso. E eles estavam de luva, atirando nos meninos de luva para não ter impressão digital”, aponta.

    Para a irmã, se a polícia achava que eles estavam devendo algo para a Justiça deveria prendê-los e não executá-los. “Eles não perguntaram, eles logo executaram. Nenhum dos quatro estava devendo nada. Os PMs têm que pagar pelo que fizeram para não fazer mais isso com ninguém. Se algum dos meninos tivesse errado era para levar preso, não matar desse jeito. Mas nenhum dos meninos tava devendo para justiça. Os policiais não podem ficar impunes”, crava.

    Um dos projéteis da ação foi encontrado por moradores no dique do Caxeta | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Quem também falou com a reportagem foi a esposa de Jhow. Juntos há seis anos, o casal morava junto há pouco mais de quatro anos. Eles não moravam nos diques, mas ali que encontravam lazer e tinham laços de amizade. “O Jhow sempre ajudou todo mundo aqui. Ele era um cara muito bom. Todo mundo aqui gosta muito dele. Eu ainda nem consegui entrar na minha casa, estou na minha mãe porque morávamos perto. Está sendo uma perda imensa. Ele tem dois filhos, a gente não tinha filho juntos, mas ele tinha dois filhos do outro casamento, um menino de 12 anos e uma menina de 9. Está sendo muito difícil acreditar que ele se foi e não está mais aqui com a gente”, conta a viúva à Ponte.

    Na hora que tudo aconteceu, a companheira de Jhow estava no mercado. Assim como a irmã dele, foi correndo para os diques quando soube que o marido havia sido baleado. “Minha prima me ligou e falou para eu correr: ‘corre corre, está cheio de polícia, correram atrás do Jhow’. Aí eu vim desesperada. Quando eu cheguei na metade do caminho me falaram que haviam baleado ele, mas para mim ele só tava baleado. Eu continuei vindo, quando cheguei me falaram que ele tava morto”, relata.

    “Tava cheio de policial. Quando eu tentei entrar, eles não deixaram, falaram ‘vai para lá, sua vagabunda, se não a gente vai atirar’. Aí eu falei que eles não podiam fazer isso e me responderam que podiam sim. As pessoas que estavam nas comportas gritaram para eu ir para lá”, completa.

    De acordo com a viúva, os moradores estão com medo de mostrar imagens da ação pois policiais voltaram aos diques para pegar alguns celulares. “Na mesma noite, eles [PMs] vieram no bar da tia e quebraram tudo. Perguntaram se a imprensa ia vir aqui e quem falasse eles viriam matar. A população tá com medo, porque eles tem coragem. Eles estão afastados agora, mas depois vão voltar ao normal. E eles vão vir e acabar com a família do pessoal. Eu só peço que eles se afastem de vez. Só pedimos justiça porque muitos moradores estão com medo”.

    “Falaram que quem postasse vídeo em rede social eles iriam vir aqui para matar. Não é assim que se faz. Eles acham que aqui todo mundo é bandido, mas não é. Todo mundo acorda 5h da manhã para trabalhar. Eles não podem fazer isso nem se fosse com bandido”, acrescenta a jovem, que conclui que queria que os policiais parassem de chegar dessa forma na comunidade.

    Marcas de tiros estão em muitas casas no Dique do Caxeta | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    A mãe de um dos adolescentes mortos desabafou pela morte do filho nas redes sociais, conforme reportagem do G1. Filho, pensei que tudo era um pesadelo, mas não é. Você se foi e não verei mais esse sorrisão seguido com essas lindas covinhas que você tinha. Você foi sabendo o quanto eu te amava e ainda te amo demais. Será eternamente meu primeiro príncipe”, escreveu a mulher, dizendo que “a dor no meu peito dói demais”.

    Debora Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, enxerga a ação da polícia militar nos diques como “um ato de terrorismo, parecia um centro de tortura” e critica as ações do Baep no litoral paulista. “O Baep é um batalhão de homicida. Ele veio para Baixada Santista para dar um freio na morte dos policiais e eles são muito truculentos, não respeitam as pessoas nas favelas e nas periferias. Os trabalhadores que tem os seus dormitórios nas favelas não poderiam estar passando pelo que estão passando, nós estamos chocados. Esse batalhão veio para ter um controle da população”, aponta Debora. “Os comandantes têm que começar a responder pelos atos de suas tropas”, conclui.

    Os Baeps são tropas baseadas no “padrão Rota” de atuação, conforma descrito pelo próprio governador João Doria no anúncio de ampliação da tropa para todo o estado. Desde janeiro deste ano, seis batalhões foram inaugurados com promessa de 22 unidades até o fim do mandato, em 2022. Seguindo a lógica de seu discurso na campanha eleitoral, o governador crava que, com ele, bandido ou vai parar na cadeia ou no cemitério.

    Sob o comando de Doria, a polícia paulista aumentou sua letalidade. De janeiro a junho de 2019, as polícias paulistas foram responsáveis por 31% dos homicídios registrados em todo o estado no período, estatística que representa 1 a cada 3 casos cometido pela polícia, seja Civil ou Militar. O governador, por sua vez, não condena o aumento nas mortes, pelo contrário, premia policiais envolvidos em ações com 11 mortos sem antes saber de a ação era legítima. Posteriormente, relatório da Ouvidoria da Polícia apontou que 4 suspeitos de roubo a banco na terceira ação mais mortal da PM paulista morreram com indícios de são terem reagido.

    Um dos novos Baeps fica localizado em São José do Rio Preto e acumulou dez pessoas mortas em duas ações num intervalo de cinco dias. Há a suspeita de que em uma dessas ações os policiais tenham executado os suspeitos. Além disso, a tropa treinava em um espaço cuja parede apresentava a inscrição “favela”.

    Comandante da Polícia Militar da Baixada Santista e Vale do Ribeira, Rogério Silva Pedro explicou em entrevista à TV Tribuna, filiada da TV Globo na Baixada Santista, explicou que os policiais foram afastados do serviço de rua – eles atuarão em setores administrativos, mantendo seus salários até a conclusão das investigações.

    “Essas imagens foram colocadas em uma mídia e anexadas aos autos de inquérito policial militar. Elas serão encaminhadas para a perícia, tanto do instituto de criminalística como também para nossa corregedoria. Vamos tentar observar, por meio dessas perícias, que seja avaliado quadro a quadro para verificar realmente qual foi a atitude do policial naquele momento”.

    A Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, chefiada pelo general João Camilo Pires de Campos nesta gestão Doria, sobre as denúncias dos moradores. Às 6h58 desta quarta-feira (13/11), a pasta explicou através de nota que “todas as circunstâncias relativas aos fatos são investigadas pela Delegacia de São Vicente e pela PM, que instaurou um inquérito policial militar com o acompanhamento da corregedoria da corporação”.

    Atualização às 10h08 de 13/11 – ERRATA: correção para alterar localização de São Vicente, município localizado no litoral sul de São Paulo e não norte, como informávamos anteriormente.

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