Em vídeo, PMs jogam pessoa na água após tiro, em São Vicente (SP)

    Policiais do Baep, a ‘Rota do interior e litoral’, mataram 4 pessoas na ação; especialista define como ‘completamente inaceitável’

    Testemunhas flagraram o momento em que uma pessoa é jogada na água após disparo feito por policiais militares do Baep (Batalhões da Polícia Militar do Estado de São Paulo), que possui no interior e litoral do estado o padrão de atuação da Rota, considerada a tropa mais letal da policia paulista. O caso aconteceu em São Vicente, litoral paulista, na tarde de sexta-feira (8/11). Na ação, a PM matou quatro pessoas.

    Nas imagens, um morador do Dique do Caxeta grava quando um PM aparece perto de um córrego e outro PM se aproxima e puxa conversa, apontando para os lados. É possível ouvir som de tiros. Na sequência, dois policiais aparecem no local e jogam uma pessoa na água. “Eles estão puxando o corpo do moleque. Ai, que agonia”, descreve a pessoa que filma a cena. “Nossa! Jogaram dentro da água o corpo dele”, segue, encerrando a gravação.

    Segundo apurado pela Ponte com moradores de São Vicente, a ação do Baep resultou em quatro pessoas mortas. A descrição é de que a tropa entrou no local já atirando, sem dar chance para as pessoas nem sequer conversarem, como apontam. “Os meninos correram e eles [PMs] atiraram, já chegaram atirando”, explica uma pessoa, que pediu anonimato com medo de sofrer represálias.

    O Dique do Caxeta é uma área da periferia no norte do município, distante 70 quilômetros da capital paulista. A região é formada por casas de alvenaria e outras de palafita, como as registradas nas imagens. Em contato com a Ponte, a Corregedoria da Polícia Militar confirmou a instauração de inquérito para investigar o que aconteceu no Dique e que os policiais envolvidos no caso foram afastados do serviço de rua, cumprindo trabalho administrativo no transcorrer da apuração e sem perda de salários. O setor de investigações de crimes cometidos por PMs confirmou a morte de quatro pessoas neste caso.

    A Ouvidoria das Polícias de São Paulo também solicitou acompanhamento das investigações. “Vou solicitar os laudos técnicos para analisar. Ocorrência grave”, classificou o ouvidor, Benedito Mariano.

    Para o professor da FGV (Faculdade Getúlio Vargas) e integrante do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) Rafael Alcadipani, as imagens demonstram uma ação inimaginável vinda da polícia militar. “É completamente inaceitável que em 2019 a gente veja policiais militares tendo uma ação desse tipo. Eu não estou conseguindo palavras, uma palavra para dizer o absurdo que é você ver policiais pegando o corpo de uma pessoa e jogando dentro de um lago”, define o especialista.

    Segundo Alcadipani, o caso de São Vicente reflete uma falha de segurança pública. “Isso denota um problema grave de subcultura organizacional, a necessidade urgente de repensarmos a forma como estamos fazendo a gestão da segurança pública e a forma em que a sociedade aceita que esse tipo de coisa seja naturalizada, que as polícias aceitem que esse tipo de coisa aconteça e todos mundo aceita que algo assim seja feito”, diz.

    Para o professor, cenas como essas são possíveis apenas pela existência desse um aval popular de que a polícia mate em serviço. “Do meu ponto de vista, isso existe porque há um consenso mudo que se cala e aceita que essas coisas aconteçam. É revoltante imaginar um agente do estado fazendo isso”, critica Rafael Alcadipani.

    A polícia paulista aumentou sua letalidade em ação sob comando de João Doria (PSDB), que assumiu o posto de governador do estado em 1º de janeiro. Daquele mês até junho de 2019, as polícias foram responsáveis por 31% dos homicídios registrados no estado, o que representa 1 a cada 3 casos sendo protagonizado pela polícia, seja Civil ou Militar.

    Doria, por sua vez, não condenou o aumento da letalidade, seguindo a lógica de campanha de que, com ele, polícia levaria bandido “para a delegacia ou cemitério”. O governador homenageou PMs da Rota e do COE (Comandos e Ações Especiais) que atuaram em ação com a morte de 11 suspeitos de assalto a banco em Guararema, cidade na Grande São Paulo. Posteriormente, a Ouvidoria da Polícia apontou que ao menos quatro deles morreram sem reagir.

    Ampliação do ‘Padrão Rota’

    Desde a posse como governador paulista, em janeiro, Doria investiu na ampliação do Baep para todo o estado, com a promessa de 22 novas sedes. O Baep, como destacado por Doria, é conhecido por ser uma tropa de atuação no “padrão Rota” fora da capital paulista. A Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) é considerada a tropa mais letal entre todas que formam a PM paulista, com histórico de sangue vindo desde a época da ditadura militar, conforme revelado pelo jornalista Caco Barcelos no livro “Rota 66”.

    Anteriormente, o estado possuía quatro unidades do batalhão, que ganhou mais seis desde janeiro: o 6º Baep, em São Bernardo do Campo, o 7º, sediado na capital, subordinado ao Comando de Policiamento de Área Metropolitana-1 (CPA/M-1); o 8º, em Presidente Prudente; o 9º, em São José do Rio Preto. Em 26 de agosto, mais dois batalhões foram inaugurados: o 10º, em Piracicaba, e o 11º, em Ribeirão Preto.

    Momento em que PMs aparecem nas imagens e jogam a pessoa na água | Foto: Reprodução

    Em outubro, policiais do Baep localizado em São José do Rio Preto mataram dez pessoas em duas ações num intervalo de cinco dias. Nos dias 7 e 12 de outubro, com quatro e seis mortos, nesta ordem. No primeiro caso, a polícia descreve que quatro homens tentaram assaltar uma chácara a 11 quilômetros do centro da cidade. Todos morreram. Na segunda ação, seis homens foram mortos após denúncia anônima descrever que eles possuíam armas de grosso calibre em uma casa na região central da cidade. novamente, todos morreram e um policial foi ferido no peito, mas sem gravidade pois o colete à prova de balas bloqueou o disparo. Os policiais são investigados e suspeitos de executarem os suspeitos na primeira ocorrência.

    Posteriormente, a Ponte mostrou que policiais do Baep de São José do Rio Preto treinavam combate a inimigos em local com a inscrição “favela”, nas paredes.

    Para o coronel aposentado da PM paulista José Vicente da Silva Filho, é um “absurdo” o estado ter mais Baeps. Segundo ele, por tirar aproximadamente 5 mil policiais das ruas enquanto são treinados e pela possibilidade de mais mortes acontecerem. “O risco que sempre tem é o controle de letalidade. Tivemos um incremento de mortes [provocadas pela polícia] desse ano no Vale do Paraíba em relação ao ano passado. Mas é prematuro julgar que tem efeito da estruturação dos Baeps ou pelo conceito errado de emprego policial”, avalia Vicente.

    Já Adilson Paes de Souza, também coronel reformado da PM e mestre em direitos humanos, considera que a fala de Doria sobre o “Padrão Rota” é um aval para a PM matar. “Não é de hoje que estão falando de ‘padrão Rota’ de policiamento. Na verdade, é passar mensagem de que se pode matar, que polícia presente na rua significa polícia que mata. Foi usado durante a campanha do Bolsodoria, ele usou isso muito”, pontua. “A Rota tem essa mística e fama de ser a tropa que mata, assim como o Bope no Rio de Janeiro. A Rota é o nosso Bope e vice-versa”, segue.

    A Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, administrada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), e a PM, comandada pelo coronel Marcelo Vieira Salles, sobre a cena em que os PMs jogam uma pessoa na água. Em nota, a pasta explica que “todas as circunstâncias relativas aos fatos são investigadas pela Delegacia de São Vicente e pela PM, que instaurou um inquérito policial militar com o acompanhamento da corregedoria da corporação. O referido vídeo foi anexado ao IPM (Inquérito Policial Militar) e os policiais envolvidos estão afastados do serviço operacional”, sustenta.

    Atualizado às 17h57 de sábado (9/11) – inclusão de informações vindas da Corregedoria da Polícia Militar sobre afastamento dos policiais e a morte de quatro pessoas. Também para incluir posicionamento da Ouvidoria das Polícias.

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