‘Racismo ambiental precisa estar no centro das políticas climáticas’: Marcelo Rocha, ambientalista

    Para diretor do Instituto AYÍKA, que participa da COP 27, no Egito, debate sobre clima deve focar nas populações pretas e periféricas: ‘o novo Ministério de Meio Ambiente tem que ter pessoas pretas decidindo’

    Os mais afetados pelas mudanças climáticas no Brasil são as pessoas pretas e pobres que moram nas periferias do Brasil, mesmo não sendo as que mais emitem carbono e outros gases que causam os efeitos estufa — por isso, são elas que precisam estar no centro do debate ambiental. “Quando a gente fala sobre perdas e danos e eventos extremos, isso não atinge só a comunidade preta, mas atinge majoritariamente a comunidade preta. Promover a transformação desse lugar move toda a sociedade”, defende, em entrevista à Ponte, o ambientalista Marcelo Rocha, 24 anos.

    Fotógrafo, ativista em educação, negritude e mudanças climáticas, Marcelo é diretor executivo da ONG Instituto AYÍKA, que atua na intesecção entre raça, clima, gênero e território. A convite do Greenpeace, ele está participando da COP 27, a conferência internacional do clima organizada pela Organização das Nações Unidas, no Egito.

    Marcelo Rocha, diretor executivo da ONG Instituto AYÍKA, está na COP 27, no Egito |Foto: Divulgação

    Na entrevista, Marcelo aborda os impactos do racismo ambiental, que, embora pouco lembrado, tem um papel estrutural na sociedade. É o que se revela, por exemplo, quando vítimas de enchentes e deslizamentos moram em áreas pouco arborizadas e têm de receber os resíduos produzidos em bairros ricos. Para o ambientalista, a periferia já luta por melhorias ambientais há muito tempo, assim como não é de hoje que sente os efeitos da falta de política ambiental nos territórios marginalizados.

    Ponte – O que é racismo ambiental?

    Marcelo Rocha – É um termo que surgiu nos EUA, com o professor Benjamin Franklin Chavis, a partir da construção de uma usina de resíduos que atingiria principalmente a população negra, em 1981. Depois foi se criando um conceito para além dos protestos, e o combate ao racismo ambiental passa a ser também o trabalho de articular. O professor Franklin Chavis formula isso e tenta implantar este conceito dentro da definição da legislação ambiental. Racismo ambiental é toda e qualquer forma de afetar a comunidade negra através de políticas sobre meio ambiente e, hoje em dia, também sobre mudanças climáticas. Toda forma que reduz ou que gera uma vulnerabilidade maior para as populações é racismo climático passivo. 

    Ponte – Quais são os exemplos de racismo ambiental no Brasil?

    Marcelo – No Brasil, a crise climática é muito presente, principalmente através da indústria dos resíduos. A gente percebe que as periferias sempre são os lugares onde são alocados os grandes lixões, as grandes usinas de resíduos que causam danos ambientais. A área é degradada para isso acontecer, mas também modifica e causa problemas à saúde da população daquele lugar. Por exemplo, eu mesmo sou de Mauá, na Grande São Paulo,e a cidade já teve um lixão, onde quase todo lixo da capital ia para lá. Mauá é uma cidade que tem maioria de pessoas pretas, então isso automaticamente a gente não considera como acidental. Na hora de construir um plano diretor [lei básica do planejamento urbanístico de um município], as pessoas que têm menos dinheiro para pagar o aluguel são mandadas para as periferias. Quando se faz isso como política pública, você está afetando diretamente as pessoas e as comunidades. Quando se pensa nas mudanças climáticas, a gente sabe que já vive várias consequências nas periferias, como enchentes, falta de mobilidade urbana e desabamentos. Tudo isso afeta diretamente comunidades majoritariamente pretas. Enquanto isso, a gente vê soluções tecnológicas que vão diretamente para a população que tem dinheiro para pagar por isso, que são as elites brancas. Isso é uma forma de manutenção do racismo estrutural.

    Ponte – Dentro da COP27, como a comunidade internacional está vendo a questão do racismo ambiental no Brasil?

    Marcelo – Eles sabem que o Brasil é um país que tem grande potencial e grande relevância em vários assuntos, dentre eles o climáticos. Porém, nos últimos anos o Brasil foi conhecido pelo desgoverno e pela redução dessas políticas públicas. Quando o Brasil caminha nesse lugar, automaticamente quem é mais afetado é a população racializada. Mas, de mesma forma, há uma invisibilização gigante disso. Quando a gente fala hoje no Brasil sobre a Amazônia, a gente não fala de uma Amazônia urbana, que tem um grande número de população preta, que vive nas favelas. Um exemplo é Belém, que é uma cidade onde 52% da população vive em uma moradia de favela. Se a gente não falar sobre essa zona urbana, a gente mais uma vez está reforçando e aumentando essa desigualdade entre as populações racializadas. E aí a gente vive apenas uma falácia, de que falar sobre clima é falar apenas sobre o ambiente de florestas e o ambiente rural. Falar sobre clima é falar sobre toda a sociedade e, principalmente, quem está mais marginalizado. Quem sofre com as mudanças climáticas nas cidades são as populações periféricas, são as populações pretas. Quando a gente traz essas discussões aqui na própria COP, a gente traz para expandir e aumentar o investimento. Os financiamentos têm que pensar nas populações periféricas. Essas perdas já estão acontecendo na cidade, essas perdas e danos já estão acontecendo nas periferias do Brasil. Mas o Brasil não tem se levantado internacionalmente com essa pauta. E isso eu acho que é um papel dos movimentos sociais, que tem que trazer essa pauta, de reforçar o quanto é importante trazer a periferia, o quanto é importante discutir sobre perdas e danos de uma perspectiva preta e periférica.

    Ponte – Dentro do ativismo ambiental, a questão racial também é deixada em segundo plano como em outros setores da sociedade?

    Marcelo – Sim, isso ocorre. E mais uma vez, o racismo ambiental, assim como todas as outras formas de racismo, é uma exclusão e uma desumanização da pessoa preta na sociedade. Então, quando a gente pensa que a discussão climática não consegue chegar nesse lugar, que sequer isso chega na mesa, não está no texto de negociação e nem nos planos diretores. Isso vai diretamente para a definição de racismo ambiental. Quando a política não é aplicada, vai gerar morte e desigualdade para a população racializada. Divide a sociedade destinando o outro à morte, a se vulnerabilizar. É muito importante a gente trazer as periferias para a mesa, não apenas para falar sobre racismo, mas para falar sobre como a gente transforma toda uma sociedade. Porque quando a gente fala sobre a redução de resíduos, quando a gente fala sobre mobilidade urbana, quando a gente fala sobre perdas e danos e eventos extremos, isso não atinge só a comunidade preta, mas atinge majoritariamente a comunidade preta. Promover a transformação desse lugar move toda a sociedade. Tanto que o grito nunca foi para a gente transformar apenas uma coisa, mas para a gente transformar a sociedade em conjunto. A gente vê uma defasagem gigantesca aqui na COP, mas tem se levantado um grande movimento de líderes negros trabalhando por redução das emissões, trabalhando por mudanças climáticas. Ontem mesmo [13/11] a gente teve um jantar com quase 50 lideranças pretas do mundo inteiro discutindo essa questão das mudanças climáticas para a comunidade negra. É muito importante a movimentação que vem acontecendo. Essa é a minha terceira COP, antes havia pouca discussão e eu acho que a gente aumentou. Mas, ainda assim, isso precisa estar no texto e precisa estar na pauta. Precisa estar na política pública e no plano de efetivação de implementação dessas políticas.

    Ponte – Como as periferias enxergam o racismo ambiental?

    Marcelo – Existe um equívoco de pensar que as periferias não pensam nisso. Eu acho que a gente discute isso há muito tempo. As periferias têm lutado por saneamento básico há muitos anos. As periferias têm lutas por arborização há muitos anos. A gente tem uma luta por terra desde 1500 pra manter o nosso lugar, para manter a nossa terra, para nos manter aqui, da nossa forma. Tanto que o processo migratório, principalmente das periferias, é um processo de sair das suas terras, de sair do Nordeste brasileiro, de sair da floresta e vir para a cidade. E isso já é um processo de racismo, porque as pessoas não deveriam ter que sair das suas terras para ir para um outro lugar, para conseguir ter algum tipo de renda e sobreviver. Isso não é algo só do passado. A migração climática é um problema do futuro também. É uma questão muito importante a gente olhar para os planos diretores, a gente olhar para como a gente constrói a política pública, porque muitas vezes coloca a periferia num lugar de defesa apenas. A periferia já quer ter um lugar mais arborizado, já quer ter uma redução da conta elétrica, já quer pensar a transformação. São discussões históricas, mas a terminologia é atual. A gente hoje fala sobre mudanças climáticas, mas a luta pela terra é antiga. A gente hoje fala sobre mercado de carbono, mas está falando há tempos que a gente não emite tanto quanto outros países, não tanto quanto outras regiões. Porque da mesma forma que um morador do Alto de Pinheiros [bairro rico na zona sul da cidade de São Paulo], que é a região mais arborizada, tem mais direito ao verde, talvez seja o que mais consuma e o que mais emita carbono em vôos com viagens, com dezenas de carros, com toda uma emissão de gases de efeito estufa que prejudica a natureza e que prejudica o nosso ambiente comum. Mas a falta de acesso faz com que aquela pessoa que está no bairro periférico não seja o maior emissor. Pelo contrário, ela foi parar naquele lugar e às vezes a desflorestação daquele espaço foi por moradia, por sobrevivência, por culpa da gentrificação das cidades, por culpa de um processo de exclusão das pessoas, expulsão delas dos espaços e grandes centros.

    Ponte – Tem algum exemplo no mundo de programas de combate ao racismo ambiental?

    Marcelo – O Brasil tem que abrir espaço para a sociedade civil construir. Acho que um grande exemplo do que aconteceu, até falando da perspectiva de juventude, é o exemplo do Chile. Eles criaram um programa para que jovens de toda população pudessem ser negociadores climáticos. Devem sentar à mesa e poder propor coisas. E o Brasil ainda não tem essa política efetiva de colocar a juventude, de colocar população negra e periférica para dentro do espaço, negociando, propondo texto, propondo pautas. Acho que isso é essencial para a gente ver a mudança. Tem que haver a mudança de fora ou não tem como. A gente está distante disso. Eu acho que isso foi um grande exemplo de como trazer as pessoas para dentro, para a mesa de negociação, para fazer. Na Colômbia há um projeto que educa meninas e mulheres das periferias, principalmente em Barranquilla, para promover educação climática. Essas pessoas sabem o que está acontecendo, porque vivem na pele, mas não sabem dar uma nomenclatura. Sabem que aumentou o calor ali. Eu sei que lá em Alto de Pinheiros eu sinto um clima mais fresco, eu respiro melhor, que é onde eu trabalho, mas quando eu volto pra minha quebrada, ali já está uma outra situação e mais calor. Ali eu sofro mais. Quando começa o verão não tem como ficar dentro de casa, então a gente sabe disso, mas não sabe dar um nome. Isso é o papel da educação climática, o papel da educação ambiental. É importante para efetivar aquilo que a gente já constrói, para efetivar aquilo que a gente já faz.

    Ponte – Como conscientizar que o problema do racismo ambiental não é só dos pretos? 

    Marcelo – A Erica Malunguinho, que foi deputada estadual em São Paulo, tem uma frase que me inspira muito. Ela falou muito durante sua campanha sobre alternância de poder. A branquitude precisa entender o que é esse lugar da alternância de poder, principalmente para conseguir ter trocas efetivas e para conseguir construir sociedade. E eu acho que parte desse racismo ambiental se estrutura nessa falta.de troca, nessa falta de espaço onde a gente pode construir. Então, hoje a gente vê o espaço da COP. No ano passado o Alma Preta lançou uma pesquisa de que a gente tinha 6% de pessoas pretas aqui. Como um país que tem 56% de pessoas negras pode ter 6% de pessoas aqui discutindo a questão climática? Acho que não tem ainda uma política efetiva para trazer a juventude, esquecendo a pequena parcela das pessoas pretas que estão aqui discutindo. Pessoas que não são auto financiadas, que tentaram de todas formas vir para esse lugar, mas não foram convidadas necessariamente para tomar esse lugar. Então a gente precisa muito romper essa lógica e trazer uma efetividade nesse processo, onde as pessoas pretas possam realmente vir e ter discussões efetivas dentro dos espaços. Isso é um papel da branquitude, de ceder o seu lugar, de sair desse lugar e conseguir oferecer esse espaço para que a gente possa construir essa política pública de colocar a gente no peso. A responsabilidade é delas de criar esses espaços para que a gente possa construir a política pública efetivamente dentro dos espaços oficiais. Mais do que espaços de representatividade, apenas, mas espaços de equidade onde a gente possa ter voz e fala. 

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    Ponte – Você acredita que o próximo governo federal irá ter atenção sobre o racismo ambiental?

    Marcelo – Eu espero que isso seja um posicionamento do novo governo. Não tem como a gente continuar da forma que está. A gente viu nas primeiras convocações para o governo de transição que não tinha pessoas pretas. Logo após, a gente viu a chegada de algumas pessoas, mas ainda na questão de clima, a gente sente essa falta gigantesca de diálogo com o governo para que a gente possa ter efetivamente isso dentro da pauta. Então acho que é um desafio do novo governo colocar isso na pauta, abrir essas discussões e serem efetivas, não apenas em lugar de consulta, mas em lugar de tomada de decisão. Esse novo Ministério de Meio Ambiente tem que ter pessoas pretas decidindo, tem que ter pessoas pretas em cargos importantes. Tem que trazer a questão ambiental como uma pauta essencial desse novo governo. Não pode ser uma pauta secundária e muito menos é uma pauta identitária, é uma pauta de sociedade. Se a sociedade brasileira não resolver o racismo ambiental, a sociedade brasileira não consegue resolver o problema de clima, porque boa parte do problema climático no Brasil é causado pelo racismo ambiental. Então só tem como criar uma política efetiva de clima no Brasil se a gente resolver o problema do racismo ambiental.

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