Refletindo a Liberdade | Diego: ‘A maior dificuldade é enfrentar o preconceito’

“Cheguei a acreditar que não conseguiria mais ir embora. Entrei numa depressão tão grande que não tinha mais força para nada. Comecei a pensar nos meus filhos, na minha família e em tudo que eu tinha perdido naqueles anos”

Ilustração: Rafael Coutinho

A série Refletindo a Liberdade é uma produção da ONG Reflexões da Liberdade, que, desde 2017, gera impacto social fazendo com que a sociedade repense os processos que enchem as prisões, ressignificando os territórios e desenvolvendo a comunidade para que reivindiquem a vivência das políticas públicas. A série traz os depoimentos de cinco egressos com diferentes histórias de vida, e será publicada ao longo desta semana, até o dia 1/4.

Me chamo Diego*, tenho 35 anos. Vivo em São Paulo. As lembranças que guardo da infância não são as melhores. Meus pais sempre trabalharam muito. A gente era pobre, mas nunca faltou nada em casa.

Nessa época, o meu pai e minha mãe estavam juntos, a gente não passava por necessidades, mas depois o meu pai ficou desempregado e começou a beber bastante, aí deu uma apertada.

Quando ele bebia, isso gerava muitas brigas em casa, era muito turbulento. Ele se tornava outra pessoa, um homem muito nervoso e impaciente. Ainda pequeno, o vi agredir minha mãe algumas vezes. Se toda a relação deles foi conturbada, o fim pareceu uma guerra. Todos saímos abalados da situação: eu, minha irmã e meus pais. Meu pai bateu na minha mãe, minha mãe saiu de noite com a minha irmã, foi embora, sumiu. 

Finalmente, aos 10 anos, meus pais se separaram.

Para mim, a separação deles foi um divisor de águas. Me senti partido ao meio. Minha irmã, Jéssica, foi viver com a minha mãe em Pindamonhangaba, enquanto fiquei com o meu pai em Mogi das Cruzes. 

Não passou muito tempo até que um dia estava na escola e fui chamado na diretoria. Quando cheguei lá, minha mãe estava me esperando com o Conselho Tutelar. De lá, parti com ela para Pindamonhangaba. 

Olhando para trás, aquilo foi um erro: não me adaptei na nova cidade, não conhecia ninguém. Tampouco, minha mãe se relacionava bem com família dela de Pindamonhangaba. Fomos morar na casa de um tio, com quem tínhamos quase nenhum contato. Parecia ser questão de dias até que algo novamente desse errado para nós.

E assim foi: certo dia, meu primo e a minha irmã, ambos crianças, começaram a discutir. Meu primo, mais velho e muito maior do que ela, durante a briga, bateu nela. Meu impulso foi defendê-la, então parti para cima dele. O que começou como algo pequeno, acabou ganhando uma proporção muito maior. Meu tio tomou as dores do filho e me colocou para fora de casa. Estava com 12 anos. Insisti que a minha mãe ficasse com a minha irmã e acabei vindo embora. 

De volta a Mogi das Cruzes, passei a viver com meu pai, meus tios e minhas tias. Quando completei 15, já estava envolvido com drogas.

Um dos meus tios vendia drogas: crack e maconha. Ele não fazia isso na minha frente, mas nenhum de nós era bobo. Ainda adolescente, eu já fazia alguns trabalhos como pedreiro, ajudava meus tios e pai, conseguia tirar R$70, às vezes R$80 por mês. Mas não demorou muito tempo para eu começar a traficar. Eu era pequeno e fui vendo aquilo, crescendo e observando, até que em certo momento pensei em começar a vender. ‘Isso dá dinheiro’, pensei.

A gente, criado em periferia, vê outras famílias que podem dar tudo aos filhos: roupas, bicicleta, enquanto em casa não tinha nada. “É por aqui, então, que eu vou conseguir as minhas coisas”. E foi aí que comecei. 

Eu sabia onde eram os locais em que se comprava e sabia para quem vender, sabia como embalava e como vendia. Já era o bastante. Aí busquei essa droga e comecei a vender escondido. Ninguém sabia. No primeiro momento, não dava nada, sobrava apenas um pouco de dinheiro. 

Em pouco tempo, meus tios e meu pai descobriram, ficaram bravos, queriam bater em mim e deram fim nas drogas. Mas sabe como é, nada me segurava mais. 

Naquela altura, eu era bastante jovem, mas já tinha passado por poucas e boas. Entendia os riscos do que estava fazendo e sabia onde poderia ficar e como deveria agir. Até ali, não tinha medo.

Com 17 anos me tornei pai, fui morar com uma pessoa. A gente vivia no quintal da minha avó, em Mogi das Cruzes. Tinha vez que trabalhava, tinha vez que ia vender drogas. 

Aos 21, depois de cinco anos no tráfico, tive curiosidade de experimentar. Na época, vendia cocaína lá na estação no Brás e via todo mundo cheirando, daí quando fui ver já estava no crack. Acabei desandando completamente e comecei a cometer vários crimes. Aprendi a roubar.

Parei de vender. Olhava a balança: o tráfico tem uma condenação maior do que o furto. Pensava “se eu for preso por furto, pelo menos a condenação é menor”. E fui ganhando mais dinheiro. Então comecei a furtar. Muitos celulares, carteiras no metrô, no trem. Sempre nos horários de pico, na parte da tarde. 

Com 23 fui preso.

Morava em Mogi, ia para São Paulo todos os dias. Era 2010, fui pego por furto de veículo. Após o furto, percorri alguns quilômetros, até ser parado próximo ao bairro da Liberdade.

Quando parei no trânsito, dois carros de polícia encostaram, um em cada lado, mandaram eu descer e perguntaram de quem era o veículo. Falei na lata que tinha furtado. Eles disseram que já sabiam e que estavam me seguindo desde a Vila Mariana.

“Fica de boa, coloca o braço para trás, a casa caiu, você está preso”. Fiquei tranquilo, não apanhei, nem nada nessa primeira prisão. Era dia, 14h. 

Quem comete crime, sabe que o destino é esse aí. Uma hora pode ir preso ou tomar um tiro. Eu não tinha medo, mas sabia o que estava fazendo. Você faz sabendo o que pode acontecer. 

Depois que fui preso, não consegui elaborar muito bem o que estava acontecendo, mas fiquei assombrado por um pensamento que me deixou arrasado. Naquela manhã levei o meu filho para creche e ele não queria ficar lá, queria passar o dia comigo. E, antes de entrar, ele perguntou se eu ia buscá-lo e eu prometi que sim. No momento que eu entrei no corró (gíria para cela), a primeira coisa que lembrei foi do meu filho. “Agora não vou poder buscá-lo” Foi o que mais me marcou.

Após 11 meses, ganhei liberdade e voltei para Mogi.

Durante os últimos sete anos, fui preso oito vezes. Ia e voltava. 

A última vez foi em 2021. Tentei furtar um celular no centro de São Paulo, mas logo viram e começaram a gritar “pega ladrão”. Tentei fugir, mas não consegui correr rápido o suficiente.

Eu estava morando num abrigo e minha vida estava virada de pernas para o ar. 

Estava separado da minha esposa, tudo estava uma bagunça danada.

Nessa última prisão, me vi num momento que eu não aceitava, não me conformava. Lá dentro, tive um momento de surto, e tive uma overdose medicamentosa. Fui parar na enfermaria de tão mal que fiquei. Cheguei a acreditar que não conseguiria mais ir embora. Entrei numa depressão tão grande que não tinha mais força para nada. Comecei a pensar nos meus filhos, na minha família e em tudo que eu tinha perdido naqueles anos. Poderia ter sido um bom pai, um bom marido, mas não fui. 

Foto: Alice Vergueiro / IDDD

Me perguntei o que tinha construído.

Depois disso, ainda na prisão, muita gente ficou com medo de que eu surtasse de novo. Vi que muitos se preocupavam comigo, mesmo sem me conhecer ou ter trocado uma palavra comigo antes. Os presos me ajudaram. Alguns eu já conhecia, outros nunca tinha visto. Isso mexeu comigo. Muitos se preocuparam e começaram a conversar comigo, sem ganhar nada em troca.

Vi que minha vida tem valor, sim. Coloquei na minha cabeça que tudo daria certo e que em algum momento eu sairia dali. Passei a escrever com frequência para o meu pai, restabeleci as relações e fui me acalmando.

Saí em maio deste ano. Nem acreditei quando me chamaram. Depois que peguei o alvará, fiquei meio sem rumo. Foi um dia maravilhoso. Apenas saí andando. 

Voltei para Mogi das Cruzes e continuo aqui, assim me mantenho perto dos meus filhos e da minha família.

Vou falar que não está sendo fácil, mas sigo lutando. Vivo em um abrigo e trabalho com o meu tio em construção. Morar num abrigo não é o mesmo ritmo que uma prisão, mas é bem parecido. Tem suas regras, seus horários, tem pessoas diferentes que você nunca viu. É pesado. Pessoas que querem mudar, e outras que não estão nem aí com nada.

Tenho a minha cama e divido o quarto com outra pessoa.

Meu próximo plano é tirar minha habilitação. Quero juntar um dinheiro, ajudar mais meus filhos e alugar uma casa. Apesar de tudo, tenho conseguido me manter na linha, não tenho mais aqueles pensamentos ruins e entendi que não preciso largar mão de tudo mais uma vez.

A vida aqui fora segue. A gente começa a valorizar tudo que parecia fixo e estabelecido: os filhos, a família, e o convívio com as pessoas que amamos.

A maior dificuldade quando saímos da prisão é enfrentar o preconceito. Muitos pensam que não podemos mudar, que não temos mais jeito. Isso dificulta demais, principalmente quando o assunto é trabalho.

Fui em duas entrevistas de emprego e quando me pediram atestado de antecedentes, já levantei e fui embora porque sabia que não tinha chances. E aí vemos a indiferença, a falta de fé na nossa mudança e isso machuca.

Mas não tenho vergonha da minha história e não vejo motivos para escondê-la, até porque não é possível: não posso fugir dela.

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Tenho um primo, preso recentemente, tento aconselhá-lo e passar toda a lição que aprendi. Digo que dá para gente mudar, que a gente pode ser feliz e que a gente pode recomeçar. 

E tento repetir tudo isso para mim mesmo também. Nada acabou. Foi uma falha, uma fase ruim.

*O nome foi alterado para preservar a identidade do entrevistado

Entrevistas e depoimentos por Humberto Maruchel Tozze e edição por Thiago Ansel

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