Sem nome social e pelo gênero masculino, Chiara é violentada até no processo que julga seu assassinato

Acusado de matar jovem transexual a facadas e jogar seu corpo de um prédio em 2020 vai a júri popular na segunda (25). Em mais de 300 folhas do processo, o nome de Chiara não aparece nenhuma vez e homicídio não é tratado como transfobia

Chiara foi morta com duas facadas e jogada 7º andar de um prédio no centro da cidade de São Paulo, em 2020 | Foto: Arquivo pessoal

Foram mais de 300 páginas lidas e em nenhuma momento investigadores, delegado, promotores e juízes citam o nome de Chiara Duarte Pereira, 28, no processo que investiga e julga seu assassinato, ocorrido em 2 de setembro de 2020. Ela foi morta a facadas e jogada do 7º andar de um prédio na região da Sé, no centro da capital paulista, pelo ambulante Jeferson Pereira Santos, que tinha 18 anos na época. No mesmo dia ele foi preso em flagrante porque moradores suspeitaram do cheiro de fumaça que saía da janela do banheiro, momento que ele tentava queimar os pertences da vítima, e outros viram o corpo de Chiara caindo.

Se de um lado a família tentava preservar a memória e a imagem pela qual a jovem se identificava, como no velório quando a mãe fez questão de passar um batom na filha para ser enterrada, por outro, as autoridades responsáveis pela apuração da morte brutal que teve repercussão na imprensa apenas a tratavam como travesti seguido de um pronome masculino ou de “vítima”. Chiara passa a ter um nome só na página 210 dos autos, quando o laudo necroscópico que indicou oito ferimentos de faca em seu corpo foi remetido ao Tribunal de Justiça (TJ-SP). Mas a violência continuava pois a identificação era o o seu nome de batismo – e é o que segue sendo referenciado dali em diante.

O relatório da investigação da Polícia Civil foi finalizado pelo delegado Marco Antonio Duarte, do 8º DP (Brás), e remetido ao Ministério Público Estadual sem os laudos estarem prontos e sem procurar a família ou conhecidos da vítima. O promotor Romeu Galiano Zanelli Junior denunciou Jeferson por homicídio simples e solicitou os laudos faltantes, o que foi acatado pelo juiz Victor Garms Gonçalves, da 1ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda. Meses depois, Jeferson foi pronunciado para ser julgado por um Conselho de Sentença (um colegiado de sete pessoas da sociedade civil) cujo júri popular está marcado para o dia 25 de abril, na próxima segunda-feira.

O acusado está mantido preso preventivamente (por tempo indeterminado até o julgamento) e alegou em depoimentos e durante as audiências que conheceu Chiara na Praça da Sé e a convidou para ir a sua casa beber. Depois, ao terem relações sexuais, disse que “ficou muito irritado” e se sentiu “enganado” por “descobrir” que ela era travesti, começaram a discutir e tentou mandá-la embora, mas ela teria pedido mais bebida e pagamento pelo programa. Jeferson justifica que Chiara tentou agredí-lo com uma faca e o atingiu em dois dedos e que reagiu em defesa ao golpeá-la. Ao perceber que ela tinha morrido, resolveu jogar o corpo porque “ficou com vergonha” de a família descobrir que ele tinha se relacionado com uma travesti. A vítima foi jogada seminua do prédio.

No processo, não há exame de corpo de delito do ambulante para comprovar os ferimentos. O advogado Lucas Batista Lacerda, que o representa, argumentou que Jeferson atuou em legítima defesa porque teria sido alvo de agressões à faca. Ele solicitou a liberdade provisória do acusado justificando que não atrapalharia as investigações e por conta da situação de pandemia, mas o TJ negou.

Nas entrevistas dadas à Ponte na época do crime, o irmão de Chiara, Luan Duarte, apontou que ela se identificava enquanto mulher trans, ou seja, se identifica como mulher. Já travesti é a pessoa cujo tratamento se dá pelo gênero feminino, mas não necessariamente se identifica enquanto mulher.

Nem o delegado, o promotor ou o juiz levantaram a possibilidade de ter sido um crime motivado por transfobia, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter equiparado a LGBTfobia ao crime de racismo há quase três anos, ou por transfeminicídio. O feminicídio é um qualificador do homicídio, ou seja, agrava a pena, e é previsto para assassinatos de mulheres pela condição do gênero feminino (como violência doméstica e discriminação). Além disso, apesar de estar em vigor desde 2015 a inclusão de nome social e motivação de crime por homofobia ou transfobia nos boletins de ocorrência do estado de São Paulo, “transfobia” é outra palavra que sequer aparece no inquérito policial.

O registro apenas indica um aviso para caso as testemunhas queiram “solicitar a aplicação das punições administrativas contra o autor da infração” previstas na Lei Estadual nº 10.948/01, que trata de penalidades para práticas discriminação em razão de orientação sexual – o que também está errado porque orientação sexual (heterossexual, gay, lésbica etc) é diferente de identidade de gênero (mulher cisgênero, mulher trans, travesti etc) -, para denúncia no site da Secretaria de Justiça e Cidadania.

Romeu Galiano, inclusive, foi o mesmo promotor que denunciou Jonatas Araujo dos Santos, 27, por feminícidio contra a jovem trans Larissa Rodrigues da Silva, 21, morta a pauladas em maio de 2019, na região do Planalto Paulista, na zona sul da cidade de São Paulo. Na denúncia, ele escreveu: “o crime foi cometido por razões da condição de sexo feminino, pois envolveu menosprezo e discriminação à condição de mulher da vítima. É que, embora do sexo biológico masculino, ela havia adotado identidade de gênero feminina. Consta que ela era conhecida e tratada socialmente como mulher, por seus familiares, amigos e pessoas com quem convivia”.

Em junho do ano passado, um júri popular condenou Jonatas pelo feminicídio, um reconhecimento raro do Poder Judiciário para crimes contra mulheres trans e travestis que são assassinadas por conta do gênero. A aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans, por exemplo, aconteceu pela primeira vez neste ano, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu o pedido de medida protetiva a uma mulher trans que teve as solicitações negadas na primeira e segunda instâncias do Tribunal de Justiça de São Paulo, que justificaram que a proteção da lei seria limitada à condições biológicas, ou seja, apenas para mulheres cisgênero (que nasceram e se identificam com o gênero feminino).

Os ministros, porém, entenderam que gênero é uma construção social. “O verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha seria punir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher em virtude do gênero, e não por razão do sexo”, argumentou o relator Rogerio Schietti Cruz, que foi acompanhado por unanimidade pelos ministros da Sexta Turma do STJ.

Os casos de Chiara e de Larissa são muito parecidos. Ambas jovens trans que buscavam sustento na prostituição, foram executadas por clientes de maneira brutal e cujas mortes tiveram cobertura da imprensa. Para a presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) Heloísa Alves, “é evidente que a motivação do crime contra a Chiara foi transfobia” e que a forma como as autoridades não respeitaram sua identidade e não reconheceram o ódio empregado contra a vítima é “absurdo”, mostrando que “ainda se tem muito a caminhar para que se tenha sensibilização sobre os casos e para que esse tipo de situação não aconteça”.

“Se a gente fizer uma pesquisa nos crimes cometidos contra travestis e transexuais, não só aqueles que tiveram repercussão como o da Laura Vermont [em SP], da Dandara, no Ceará, sempre há alguma marca do ódio nesses casos porque não basta matar, tem que deixar claro que é um corpo que não deveria não existir, são [vistas] como aberrações e não pessoas, mata e joga do prédio, é essa a simbologia que existe quando vemos requintes de crueldade por parte do assassino”, lamenta Alves.

A advogada especialista em Direito da Diversidade e diretora da Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexo (ABMLBTI) Marina Ganzarolli enfatiza que existem ainda mais dois reconhecimentos legais de violência contra mulheres trans e travestis. “O HC [habeas corpus] 541237 do Distrito Federal, que foi julgado no STJ [em 2020], consolidou o entendimento de que o júri pode aplicar a qualificadora de feminicídio quando a vítima for mulher trans e, mais recentemente, em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Recomendação 128, que adota protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Então, são um precedente jurisprudencial e uma normativa que regulamentam exatamente o contrário do que está acontecendo nesse processo”, avalia.

Heloísa Alves aponta que a maior dificuldade que se tem hoje é fazer cumprir a decisão do STF e o não reconhecimento da norma é uma “segunda violência” quando a população LGBT+ também procura órgãos do sistema de Justiça para denunciar crimes e têm seus relatos minimizados, o que também dificulta o levantamento de casos para a efetivação de políticas públicas. “Nós temos visto muitas delegacias que não investigam os casos como motivação de homofobia, transfobia, e o crime de ódio, que tem uma pena maior, acaba não sendo qualificado como tal e apenas como homicídio sem a motivação, acaba sendo qualificado como lesão corporal quando é lesão corporal, como latrocínio. A gente tem tentado dialogar com o Ministério Público, com a Polícia Civil, com a Secretaria de Segurança Pública para mostrar a importância de cumprir essa decisão e que o sistema de Justiça funcione efetivamente”.

Ajude a Ponte!

Procurada pela Ponte, a família não sabia sobre o andamento do processo nem a data marcada do júri. A mãe, Lucilene Duarte, disse que espera que justiça seja feita, já que soube do julgamento e irá acompanhá-lo. Ela passou o contato de um advogado que estaria cuidando do caso, embora ele não apareça habilitado no processo como assistente de acusação. Tentamos localizá-lo por mensagem e ligações, mas não tivemos resposta.

O que diz a polícia

Pedimos entrevista com o delegado Marco Antonio Duarte e questionamentos sobre a investigação do caso de Chiara, a ausência de dados sobre ela, o tratamento no pronome masculino, a não existência de campo de motivação por transfobia no boletim de ocorrência, e se a Polícia Civil realiza capacitação a profissionais para lidar com o público LGBT+. A In Press, assessoria terceirizada da Secretaria da Segurança Pública, encaminhou a seguinte nota:

O caso citado foi investigado pelo 8º Distrito Policial, concluído e encaminhado para análise do Poder Judiciário. A Polícia Civil esclarece que todos os temas relacionados aos Direitos Humanos, inclusive diversidade sexual e de gênero, são tratados nos cursos de formação da Acadepol. A PC também possui procedimento padrão, adotado em todas as delegacias do Estado, para atendimento de ocorrências de violência de gênero.

O que diz o Ministério Público

Também solicitamos entrevista com o promotor Romeu Galiano Zanelli Junior sobre o caso, mas a assessoria respondeu que a posição do MP “está nos autos do processo”.

O que diz o Tribunal de Justiça

Questionamos a assessoria do TJ sobre os magistrados que atuaram no processo (desde a audiência de custódia ao juiz natural do caso) que apenas reiteraram o tratamento dado a Chiara pelos demais órgãos durante o processo, porém, não tivemos resposta.

Reportagem atualizada às 17h33, de 20/4/2022, para incluir respostas da SSP e do MP.

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