Documentário aborda luta por representatividade de candidatas negras inspiradas na vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, durante corrida eleitoral no Rio
O assassinato da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018, se tornou um marco no cenário político da cidade carioca e do Brasil. Com o trauma deixado pela execução da parlamentar e do motorista Anderson Gomes, veio também a vontade de preservar e expandir o legado de Marielle.
É o que mostra o documentário Sementes: Mulheres negras na política, que acompanhou a campanha de seis candidatas que se inspiraram na vereadora carioca. Produzido pela Noix Cultura, o filme mostra a rotina de mulheres na disputa eleitoral de 2018, na luta por representatividade no Poder Legislativo.
Jaqueline Gomes de Jesus, Mônica Francisco, Renata Souza, Rose Cipriano, Tainá de Paula e Talíria Petrone. Candidatas à Câmara dos Deputados e à Assembleia Legislativa do Rio, elas são mulheres negras que representam a resistência política em um cenário árido em diversidade. Segundo dados do Congresso em Foco, o Rio de Janeiro foi o estado que mais teve candidaturas de mulheres negras na última eleição: 237 se candidataram e seis foram eleitas, um aumento de 151% em relação aos dados do pleito de 2014.
No entanto, a representação feminina — e negra — no Congresso está bem longe de um cenário igualitário. No Brasil, menos de 10% das cadeiras existentes na Câmara dos Deputados são ocupadas por mulheres. E no caso de mulheres negras, o número é ainda menor. O país é 155º lugar do mundo no ranking de participação feminina no Poder Legislativo. É o país com a menor taxa da América do Sul, segundo a lista da União Parlamentar (UIP), atualizada em junho de 2018.
O documentário, feito pelas diretoras Éthel Oliveira e Júlia Mariano, mostra os esforços das seis candidatas para garantir educação pública de qualidade, preservação dos direitos humanos e dos direitos da população LGBT. Elas também dão foco a luta antirracista e a questão da negritude no país. A ideia para o documentário surgiu após a percepção do aumento de pré-candidaturas influenciadas pela atuação da Marielle no Rio de Janeiro. O filme conta com uma equipe exclusivamente de mulheres e cuja metade das colaboradoras são negras.
Recentemente, uma campanha de financiamento coletivo foi lançada para que o documentário pudesse ser finalizado. Segundo Júlia Mariano, o objetivo é fazer com que Sementes circule além do circuito comercial e tradicional do cinema. “Estamos trabalhando para levar o filme para escolas públicas, institutos federais, coletivos de jovens negras, associações de moradores, bibliotecas populares, etc. Ou seja, fazer o cinema chegar onde normalmente não chega. Nosso objetivo primordial é aproximar o filme do nosso público alvo: jovens e mulheres negras que vivem nas periferias e favelas”.
Para as diretoras, um ponto importante do filme é a direção, roteiro, direção de fotografia e som: feita 100% por mulheres negras. “Essa questão se relaciona a forma de olhar, a forma que buscamos contar essa história. E também por perceber o quanto é importante demandarmos por mais mulheres, negras, brancas ou indígenas em funções técnicas e de cabeça de equipe. De dar-se conta de como o mercado audiovisual também é um espaço dominado por homens brancos das elites. Isso também só muda, se demandarmos tais mudanças”.
O financiamento coletivo do documentário está sendo feito na plataforma Benfeitoria. As contribuições variam entre R$ 20 e R$ 1000. Em entrevista à Ponte, as diretoras Oliveira e Mariano falaram sobre o processo de produção do documentário e como foi feita a escolha das seis candidatas que são mostradas em Sementes.
Como a morte da Marielle impactou vocês?
Éthel Oliveira: Esse assassinato é um recado para que nossa ousadia e determinação sejam estancadas. Isso, ao mesmo tempo que é aterrorizante, é sinal de que nós estamos abalando as estruturas. Estou convicta disso e me aponta para a necessidade de pensarmos estratégias de sobrevivência nas lutas individuais e coletivas.
Júlia Mariano: Eu conheci a Marielle em 2013, nas manifestações de junho. Fiz campanha voluntária para ela em 2016 e sentia que ela me representava como nenhum político antes havia me representado. Acompanhava de perto a mandata e era sempre um prazer imenso encontrar com Marielle. Soube do assassinato ainda na noite do dia 14 de março e fiquei em choque, não conseguia parar de chorar. Fui para o espaço Plínio Arruda, na Lapa, que faz parte do gabinete do também vereador Renato Cinco, e fiquei lá, chorando a morte dela entre muitos amigos e conhecidos. Uma noite de terror e muita tristeza. Mas naquela noite mesmo veio a certeza de que a tentativa de calar Marielle e os avanços de seu mandato não iriam parar o movimento. De que era preciso buscar forças pra seguir com a forma de fazer política que Marielle defendia.
Por que “Sementes”? Como o projeto surge?
JM: O “Sementes” surge da percepção do movimento crescente de pré-candidaturas de mulheres negras as cargos de deputadas federal e estadual. Helena Dias, uma das roteiristas do documentário, comentou comigo sobre a onda de eventos desse tipo que estavam surgindo nas redes sociais e do desejo dela de acompanhar essas mulheres durante a campanha. Saímos um dia para gravar um encontro promovido pelo PSOL (“Se o Estado Fosse Nosso”) em Manguinhos, Zona Norte do Rio. Lá estavam Dani Monteiro e Mônica Francisco. Ali sentimos a força dessas candidaturas e da possibilidade de mudança que se apresentava nas eleições de 2018. Então escrevemos o argumento do filme e começamos a articular a equipe para começar a acompanhar esse movimento. Daí chegaram a Éthel Oliveira, a Lumena Aleluia e a Marina Alves. Tê-las na equipe desde bem cedo foi definidor para o documentário tomar os rumos e o corpo que tomou. Considero o movimento de mulheres negras na política a coisa mais importante que surgiu no último ano. É a linha de fuga pra quem quer construir um país mais justo e possível para todos. Essas mulheres são o que nos movem desde então. O título “Sementes” veio da própria experiência de filmagem, já que era uma expressão recorrente para relacionar as candidatas ao legado de Marielle Franco.
Como foi a escolha por essas candidatas?
JM: Não foi nada fácil! Eram muitas candidatas maravilhosas, e a vontade era poder acompanhar todas elas. Mas sendo uma produção independente, sem nenhum financiamento ou patrocínio, e levando o projeto na guerrilha, tínhamos que definir um número possível de mulheres para acompanhar. Decidimos por seis candidatas, que trouxessem pautas diferentes para o filme: segurança pública; habitação popular; transfobia e o que fazer para evitar o preconceito; educação popular; a pauta evangélica progressista e uma representante da Baixada Fluminense que, como pauta, tem a educação pública de qualidade. Daí fechamos as candidatas: Renata Souza, Tainá de Paula, Jaqueline de Jesus, Talíria Petrone, Rose Cipriano e Mônica Francisco.
Como foram as filmagens? Tem algum episódio durante esse período que tenha marcado vocês de forma mais forte?
ÉO: A produção aconteceu na urgência da mobilização das campanhas. Uma produção muito na guerrilha pois não temos nenhum financiamento até agora mas sabíamos que precisamos seguir filmando o tanto que a gente pudesse. Fizemos a primeira etapa até as eleições do primeiro turno e voltamos a filmar a partir da posse das deputada s eleitas. Acompanhamos os primeiros dias das deputadas estaduais Mônica Francisco e Renata Souza no Rio, e em Brasília seguimos com a Talíria. Um episódio que me marcou foi quando acompanhamos a deputada Renata Souza na comemoração dos 15 anos do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos. Lá estavam várias mães que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado, inclusive Dona Marinete, mãe da Marielle. Essas mães começaram a relatar seus sentimentos a partir dos assassinatos dos filhos e da luta delas por justiça. Num certo momento, uma delas disse que orava todos os dias pela Renata e pela Mônica, para que não acontecesse com elas o que aconteceu com a Marielle. Depois daquele dia eu nunca mais fui a mesma, porque me senti tão apequenada na frente daquelas mulheres vítimas de uma das maiores injustiça do mundo e continuavam de pé e na luta. A dona Marinete ali, ouvindo tudo aquilo, aparentemente mantendo-se firme. Isso foi muito impactante pra mim. Também tive a noção exata da importância das comissões de Direitos Humanos, pois é primeiramente neste espaço onde as pessoas pobres recorrem em auxílio contra as atrocidades do Estado
JM: A filmagem foi uma experiência intensa. Sem patrocínio ou financiamento, tendo que lidar com todas as dificuldades de se produzir nessa situação, com equipe reduzida e uma agenda louca e frenética de campanha. Foi um período bastante desafiador. A sorte é que nossa equipe é maravilhosa e a possibilidade de co-dirigir o film e com a Éthel Oliveira também aliviou em muito o peso da filmagem pra mim! Mas não foi fácil. Não é fácil produzir de forma independente no Brasil. Contamos com a generosidade e compromisso de diversas profissionais do audiovisual do Rio de Janeiro que nos cederam equipamento e força de trabalho por entenderem a importância histórica de acompanhar as candidatas negras nas eleições de 2018. Isso foi muito lindo de ver e viver. Foi um movimento potente de mulheres que tomaram para si a responsabilidade de contar essa história e até hoje colaboram de diversas formas para o “Sementes” acontecer. Mas também é muito sério ver que, no Rio de Janeiro, todas as formas de políticas públicas de financiamento audiovisual estão suspensas, não temos fomento em nenhuma esfera: nem municipal, nem estadual nem federal. A produção independente carioca está agonizando e isso é muito triste e preocupante.
Neste período em que vocês estiveram em contato com as pautas dessas candidatas, como perceberam a importância dessa visão da mulher negra sobre as problemáticas? Porque essa visão é importante?
ÉO: Quando as mulheres negras ocupam os espaços de poder, as mudança acontecem imediatamente e com mais velocidade. Às vezes mudanças pequenas, mas determinantes para modificar certas paisagens. As mulheres negras e periféricas têm experiências de dores e ressignificações criativas muito profundas. Temos um visão mais circular da nossa ação no mundo. Então é disso que esse mundo precisa: olhares panorâmicos. Basta de legisladores que governam em exclusiva causa própria e contra a população.
JM: Escutar de perto as prioridades e pautas das candidatas negras foi e ainda é extremamente importante para mim, amplia minha percepção de mundo. Todas elas veem de militância de muitos anos, de conhecer os problemas de perto, de não se iludir com soluções fáceis e rápidas e de ter uma visão holística dos problemas no estado do Rio de Janeiro. Então vê-las em ação é vislumbrar caminhos possíveis de mudança.
Estamos há um ano da morte da Marielle e ainda não sabemos quem mandou matá-la. Há suspeitas que políticos e policiais tem atrapalhado as investigações propositalmente. Como foi a relação das candidatas com as autoridades, durante debates, por exemplo, passeatas, em que levantavam pautas que dialogam com as de Marielle? Perceberam algo diferente?
ÉO: Isto as atinge de forma pessoal, pois eram amigas. Todas elas cresceram vendo e sentindo as violações do Estado em seus territórios e optaram por se organizarem coletivamente para mudarem a estrutura. O que percebo é que o que existe hoje na Alerj é uma força coletiva destas mulheres. Elas não estão isoladas, não se sentem só e isso faz toda a diferença. Uma encontra apoio na outra. Imaginem a solidão da Marielle na Câmara? Hoje, o panorama das casas legislativas já é um pouco mais favorável.
JM: As candidatas sempre defenderam e defendem a resolução completa do caso e culpam o Estado pela morosidade na resposta. E eu concordo 100% com elas. Essa sempre foi a postura de todas elas em qualquer debate ou embate político que presenciei. Mas como a Éthel bem pontua, existe hoje a possibilidade de uma força coletiva na Alerj e também no Congresso Nacional, já que mais mulheres negras foram eleitas em 2018 para cargos o Legislativos! E isso sem dúvida faz muita diferença!
Como foi participar dessas passeatas acompanhadas por essas mulheres em comparação às passeatas em que participaram antes, ou sozinhas?
ÉO: É uma observação muito interessante, pois me traz um sentido coletivo muito forte. Por exemplo, transitar com a Talíria na multidão é uma loucura, o povo pára ela em todo canto e o tempo todo pra expressar seus votos de aliança e solidariedade. Isso me traz mais esperança.
JM: Foi sempre intenso e emocionante. Ver como as pessoas nas ruas, principalmente as mulheres, se relacionavam com elas, me dava uma esperança no poder de mudança do coletivo. Foi interessante também ver, com o avançar da campanha, como muitas delas começavam a ter de fato fãs pelas ruas, quase numa relação de celebridade política e como isso era estranho inclusive para elas. Acompanhamos o movimento de saírem do (quase) anonimato para uma projeção política ainda não vista antes no Rio de Janeiro. Bonito demais poder acompanhar isso!
O que vocês esperam com o documentário? Qual mensagem gostariam de passar?
ÉO: Esperamos que o filme circule em diferentes territórios. As personagens que acompanhamos representam uma pluralidade de identidades e qualidades. Que o “Sementes” seja um instrumento pra trazer novos olhares e pensamentos sobre a necessidade de modificarmos essa estrutura que nos cega e oprime. Esse é meu primeiro longa-metragem e, particularmente, enquanto uma diretora lésbica e preta, gostaria de me conectar com outras negras lésbicas do campo das artes visuais para nos fortalecermos no empenho de registro da nossa própria memória.
JM: Nosso maior objetivo com o “Sementes” é contar a história desse levante político feminino e negro, de como é possível transformar a dor em ação política efetiva. De mostrar como é possível pensar uma nova forma de fazer política, que combine militância e política institucional. De mostrar como é importante que corpos negros ocupem os espaços institucionais antes reservados apenas para homens e mulheres brancos representantes das elites. E como forma de ampliar o alcance do documentário, estamos desenvolvendo um projeto de distribuição de impacto social, que tem como objetivo levar o documentário onde normalmente ele não chega: bairros periféricos, favelas, escolas públicas, institutos federais, bibliotecas populares, etc. Promover eventos tanto de exibição do filme como de debates, em parceria com as personagens do documentário, pra tentar nesse movimento diminuir o espaço entre a sociedade civil e a política institucional. Nosso foco é levar a discussão sobre “o que é fazer política?” para as ruas.
Qual o legado de Marielle, na opinião de vocês?
ÉO: É uma tragédia que este legado tenha vindo a partir dessa dor inominável. Eles não contavam que os ecos daqueles tiros chegassem a tantas pessoas. Nós nunca mais seremos as mesmas depois de 14 de março de 2018, e isso nos despertou para importância de construirmos estratégias e ferramentas para nos mantermos vivas e em nossas lutas.
JM: Não sei se posso responder essa pergunta, porque minha sensação é que com o tempo, o significado de Marielle e do que aconteceu com ela se ampliarão. Mas acho que seu legado passa por entendermos a necessidade urgente de uma maior representatividade de mulheres e, principalmente, mulheres negras e indígenas na política institucional. Penso que desde 2013 vivemos uma crise profunda de representatividade política. Essa crise tem levado a decisões incoerentes e ensandecidas da maioria dos brasileiros, num mar de equivocações sem fim. E vejo nas novas e atuais ‘mandatas’ de diversas mulheres em todo Brasil um resgate de uma sanidade política. Pra mim, elas e suas propostas são a única linha de fuga possível. A potência das mulheres negras não nasce com Marielle, é claro. Temos poucas, porém potentes representantes negras na política brasileira, como a Benedita da Silva no Rio de Janeiro, que é a única dos cinco últimos ex-governadores que não foi presa nem está sendo investigada, diga-se de passagem. Mas acho que a figura da Marielle como legado leva essa luta de representatividade a um outro lugar e escancara – agora com pouco que sabemos sobre seu assassinato – o Estado corrompido , corrupto e violento a que estamos submetidas.
[…] mulheres negras foram eleitas para ocupar cargos de deputadas estaduais e federais. Três ex-assessoras de Marielle se tornaram deputadas estaduais pelo PSOL do Rio de Janeiro e entraram para a história da […]
[…] outras mulheres negras foram eleitas para ocupar cargos de deputadas estaduais e federais. Três ex-assessoras de Marielle se tornaram deputadas estaduais pelo PSOL do Rio de Janeiro e entraram para a história da Alerj […]