Com rimas carregadas de luto e luta, poetas homenageiam Luana Barbosa, morta há dois anos, no interior de SP, depois de ser espancada pela Polícia Militar
Com um grito uníssono de “Luana, Presente”, as vozes e as dores de 40 mulheres, em sua maioria negras, lésbicas e bissexuais com punhos cerrados para cima, ecoaram pelo Espaço Cultural Tia Estela, no Viaduto Alcântara Machado, na noite de 13/04. A escolha da data não foi à toa: completava-se dois anos do assassinato de Luana Barbosa.
“A Luana é uma pessoa que não teve visibilidade suficiente no seu assassinato. Sua morte não teve um significado político para o país. A gente sofre e respeita a morte da Marielle, mas entendemos que ela teve mais visibilidade, não só por ser uma mulher negra e lésbica, mas, por estar dentro de um partido. Luana não estava dentro de um partido. Hoje a sua família está abandonada por todos, movimentos sociais, judiciário e Estado”. É dessa forma que a assistente social Fernanda Gomes, 29 anos, enfatiza a importância de lembrar de Luana Barbosa dos Reis, morta depois de ser espancada pela Polícia Militar em 2016.
Na sexta-feira, a Ponte publicou uma reportagem que dava conta justamente dessa sensação de impunidade : após dois anos, nenhum dos três PMs suspeitos da morte foram denunciados formalmente. A investigação está em fase de inquérito com recorrentes pedidos de prorrogação de prazos por parte do delegado do caso.
Na segunda edição do ‘Slam Luana Presente’, as poetas que participaram da batalha fizeram questão de lembrar toda a trajetória de Luana Barbosa como mulher negra, lésbica e periférica. Liberdade feminina fora dos padrões de estéticos e comportamentais, genocídio negro, racismo estrutural, lesbofobia, patriarcado, fome e pobreza estiveram entre as rimas recitadas.
Para Jade Quebra, escritora e poeta que ficou com o segundo lugar do slam, batalhas de poesias com essa temática ajudam a lembrar mortes como a de Luana. “É importante colocar isso em pauta, fazer com que as pessoas que estão aqui pela poesia saiam conhecendo quem foi Luana Barbosa. Quando a gente que cresce nas periferias, somos acostumados com a morte. A morte de Luana é um bagulho que não dói tanto quanto saber que só a gente lembra dela. Ela representa uma resistência, da gente nunca esquecer a sua morte e não deixar as pessoas esquecerem”, conta.
O slam foi criado pela Coletiva Luana Barbosa, grupo formado por 9 mulheres negras e indígenas, das quais 8 são lésbicas e uma bissexual, que se conheceram na Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo, em 2016. A caminhada precede a Parada do Orgulho LGBT todos os anos. Lê Nor, Jhenifer Santine, Anne Sarinara, Renata Alves, Fernanda Gomes, Elizandra Delon, Michelle, Ariane Oliveira e Márcia são os nomes que integram a Coletiva.
“Esse slam surgiu de uma necessidade da gente lidar com a arte, através das nossas dores, e de reunir e dar protagonismo para as mulheres que são negras, bissexuais e lésbicas, a partir do momento que essas mulheres estão em cena, fazendo as suas poesias ou fazendo a sua referência a sua própria arte. Essa é a segunda edição, o slam ainda tá nascendo, ainda estamos estruturando essas ideias. Temos como pretensão fazer esse evento uma vez por mês, sempre em local público ou ocupação, principalmente esses lugares sem visibilidade que o Estado negligencia”, explica a grafiteira Lê Nor, de 28 anos.
Para a historiadora e artista plástica Mara Mbhali, 23, a morte de Luana não pode seguir sem justiça. “A gente tem Luana Barbosa como nossa igual, como mulher preta. E a gente entende o quanto a sociedade oprime a gente e Luana se tornou só mais uma estatística. Não é certo tirarem a nossa vida assim. Luana representa tudo isso pra gente e nos faz lutar, permanecer vivas, pra isso não acontecer isso de novo”, defende.
‘Eu sofro a mesma fita que ela sofreu’
A vencedora da noite foi a autônoma Aline Exu, de 21 anos. Ela recitou uma poesia na primeira edição do Slam Luana Presente, mas não participou da batalha por se sentir insegura. Um mês depois, ela deixou o medo de lado para ganhar aplausos e elogios de todas.
Em conversa com a Ponte, ela relembrou as semelhanças que tem com Luana Barbosa. “Ela me representa porque ela era uma mina preta, sapatão e masculinizada como eu, e, com certeza, também devia ser estereotipada como marginal. Eu sofro a mesma fita que ela sofreu. Uma semana depois da sua morte, eu sofri um enquadro violento da polícia e naquele momento eu pensei ‘eu sou a próxima’”, disse Aline.
Cah Ju, pedagoga de 31 anos, também sente o mesmo medo de ser a próxima. “Eu não conhecia a Luana, mas a morte dela foi e é uma dor bem forte. Porque podia ser eu, penso todos os dias que podia ser eu. Hoje eu olho e vejo que faz dois anos que eu não tô nas estatísticas, porque ela entrou no meu lugar”, desabafa.
Luta pela vida
Uma das lutas que a Coletiva pretende travar é pelo uso do termo lesbocídio, pois, para elas, o termo feminicídio é muito amplo e não contempla o recorte de que mulheres lésbicas são assassinadas unicamente por serem lésbicas.
De acordo com o Dossiê sobre Lesbocídio, feito pelo Núcleo de Inclusão Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), houve um aumento de 150% de crimes de lesbocídio entre 2014 e 2017: de 16 mortes para 54. Em 2018, já foram registradas 26 mortes motivadas pela orientação sexual das vítimas.
Cerca de 83% dos crimes contra mulheres lésbicas, ainda segundo o dossiê, são cometidos por homens que não possuem parentesco com as vítimas, quadro diferente dos casos de feminicídio, que tem mais ocorrências com a violência doméstica.