Sob Tarcísio, mortes de pessoas negras pela polícia cresceu 84% em 5 meses

De 312 vítimas mortas pelas polícias Civil e Militar de SP, 204 foram identificadas como pretas e pardas; no mesmo período de 2023, esse perfil correspondeu a 111 das 189 mortes

Movimento Negro Unificado (MNU) se manifestou contra a violência policial em março de 2024 durante ato do Dia da Mulher | Foto: Daniel Arroyo / Ponte

As polícias Civil e Militar, sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite, mataram 83,7% mais pessoas negras de janeiro a maio de 2024 em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso porque foram 204 vítimas identificadas como pretas e pardas ante a 111 com esse perfil em 2023, conforme dados dos boletins de ocorrência divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) nesta terça-feira (25/6).

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A Ponte contou histórias de algumas vítimas negras do braço armado do Estado em 2024: Hildebrando Simão Neto, de 24 anos, José Marques Nunes da Silva, 45, Alex Macedo de Paiva Almeida, 30, Tiago Henrique de Oliveira Batan, 27, Matheus dos Santos Silva, 19,  Matheus Menezes Simões, 21, Venâncio Vieira dos Santos Neto, entre outras.

Já o número de vítimas indicadas como brancas subiu 26,7% (71 para 90). Um dos casos que recebeu bastante repercussão em maio foi a morte do aposentado Clóvis Marcondes de Souza, 70, baleado pela PM na cabeça enquanto caminhava na calçada a caminho da farmácia, na região do Tatuapé, na zona leste da capital. O sargento Roberto Marcio de Oliveira, que fez o disparo de dentro da viatura, disse que foi “acidental” e por isso não comunicou a Polícia Civil, o que era obrigatório.

Para Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o aumento expressivo de mortes com esse perfil indica que a gestão tem um alvo, ainda mais que a maioria da população paulista é branca (58%), de acordo com o Censo de 2022. “Isso certamente não é por acaso porque dialoga muito com a trajetória histórica do Brasil e com a trajetória histórica do discurso sobre letalidade policial e limpeza social”, explica.

Coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha concorda. “É um dado muito triste, mas, infelizmente, acho que não nos surpreende. Quando a gente olha para própria Operação Verão, que aconteceu nos três primeiros meses desse ano, a maioria das vítimas eram negras. Então, isso é só o retrato de um aumento da letalidade da polícia de São Paulo que a gente sabe que é uma letalidade que tem um viés de raça”, afirma.

Pelo quinto mês seguido, as mortes por intervenção policial subiram: foram 312 vítimas contra 189 no mesmo intervalo de 2023, o que representou um aumento de 65%. O ápice se deu nos meses de fevereiro e março, em meio a Operação Verão, quando a violência policial na Baixada Santista escalou após os assassinatos de três policiais militares, especialmente depois que o soldado Samuel Wesley Cosmo foi morto durante um patrulhamento no dia 2 de fevereiro, em Santos. Ele integrava as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM paulista e a única que pode atuar em todo o estado.

A operação teve o mesmo modus operandi da Operação Escudo, que foi deflagrada logo após o assassinato do soldado Patrick Reis, também da Rota, em julho de 2023. Essas ações em resposta a homicídios de policiais que o governador e o secretário instituíram são consideradas ações organizadas de vingança, criticadas por moradores de bairros pobres e por ativistas de direitos humanos pelas práticas de execuções, torturas e ameaças, que já foram denunciadas duas vezes na Organização das Nações Unidas (ONU) e também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O reflexo disso é o crescimento das mortes pelas polícias especialmente durante o serviço: a alta foi de 82,7% de janeiro a maio (145 para 265), cenário que rompeu uma tendência de queda observada em 2022.

Para Dennis Pacheco, apesar das críticas, Tarcísio passou a se sentir “mais confortável” em recrudescer a violência policial para se manter alinhado à sua base eleitoral. “No primeiro período do mandato, me pareceu que ele tinha essa característica de ser um período de teste. ‘Até onde eu posso ir com o recrudescimento da violência policial, da brutalidade policial? E qual vai ser o impacto disso na minha imagem, nas minhas bases eleitorais?’ E, infelizmente, o impacto não foi suficiente para que ele fosse dissuadido de implementar essas políticas”, avalia.

Um dos retrocessos sinalizados é o programa de câmeras nas fardas da PM. Em 2023, o governador retirou R$ 57 milhões do projeto para outras áreas e não incluiu valor específico para a Lei Orçamentária Anual para 2024. No final de maio, lançou um novo edital dos dispositivos que, na visão de organizações e pesquisadores, desmonta a política de combate à letalidade policial, uma vez que retirou instrumentos importantes como a gravação ininterrupta do policiamento.

A Defensoria Pública de São Paulo chegou a pedir a suspensão do edital ao Supremo Tribunal Federal (STF), mas o presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso, negou o pedido e disse que as explicações dadas pelo governo atendem as diretrizes da portaria do Ministério da Justiça e Segurança Pública, publicada no mesmo mês. O secretário executivo adjunto da pasta, Marivaldo Pereira, já tinha declarado que “não há nenhuma similaridade” entre o edital paulista e a portaria por prever o acionamento da gravação por decisão do policial. O Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, também tinha solicitado mudanças no texto, apesar de não ter se oposto ao acionamento manual.

Segundo a gestão Tarcísio-Derrite, a PM não vai ficar sem os dispositivos usados desde 2021 enquanto o processo de licitação não for concluído. A vencedora do pregão foi a estadunidense Motorola ao custo mensal de R$ 4,3 milhões para 12 mil equipamentos, que estão em fase de testes. A empresa já tinha sido testada em 2020, quando doou 200 câmeras por meio de um convênio sem repasse de verbas a partir de um chamamento público feito pelo governo estadual, como a Ponte mostrou em 2021. A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre os resultados dos testes na época e as câmeras fornecidas no novo edital, mas não houve resposta.

Ainda que tenha contribuído com a redução da letalidade, os cinco batalhões mais letais da PM permanecem cobertos pelo programa. A Rota, por exemplo, matou em fevereiro e março (19) o equivalente à metade de vítimas que fez em 2023 inteiro (38), como a Ponte revelou. De janeiro a maio deste ano, foram 29 vítimas. No mesmo período do ano passado foram 15, de acordo com dados do Ministério Público de São Paulo (MPSP), obtidos via Lei de Acesso à Informação.

Para Pacheco, além da legitimação da violência pelos discursos do governador e do secretário, faltam responsabilização e reforço dos mecanismos de controle externo da atividade policial. “Em relação à pesquisa mais recente que a gente tem, o Ministério Público de São Paulo é absolutamente conivente com esse modelo de policiamento, com esse modelo de ‘segurança, pública’, que é de combate a inimigos, que não está fundamentado na cidadania e nos direitos humanos, mas numa lógica militarista de ‘nós contra eles'”, critica.

Uma das formas de medir excesso da letalidade policial é comparar a proporção com o número de vítimas de homicídios dolosos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que o ideal é a proporção de 10% de mortes pela polícia em relação ao total de homicídios, e os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que índice maior de 7% já seria considerado abusivo.

A proporção nos cinco primeiros meses do ano no estado foi de 22,3% enquanto no mesmo intervalo de 2023 o índice ficou em 13,8%.

Outra forma de fazer essa mensuração é a comparação com as mortes de policiais, mas o dado ainda não havia sido divulgado até a publicação deste texto.

Enquanto a letalidade policial vem subindo, o número de vítimas de homicídios dolosos alcançou o menor indicador da série histórica no acumulado de janeiro a maio com 1.086 assassinatos, ainda que no mês passado tenha crescido de 200 para 206.

Tanto Rocha quanto Pacheco destacam que o fenômeno dos homicídios tem explicações mais complexas do que a atuação integrada das forças de segurança pública, que foi o argumento usado pela SSP.

“É muito grave quando a gente considera que quase um quinto dos assassinatos cometidos no estado de São Paulo foi cometido pela polícia”, sinaliza o pesquisador do Sou da Paz. “Em 2019, a gente tinha alguns bairros igual Paraisópolis [periferia da zona sul da capital] em que mais da metade dos assassinatos eram cometidos pela polícia do que por dinâmicas de feminicídio, de brigas de bar, pelo crime organizado e que acho cada vez mais a gente tem caminhado para a volta desse cenário onde a polícia é responsável por um montante absurdo de mortes violentas. Então, em algumas regiões da cidade de São Paulo, talvez a melhor política pública possível fosse tirar a polícia para reduzir o número de mortes”.

No Atlas da Violência divulgado na última semana, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou 52.391 homicídios ocultos no Brasil em 2022, ou seja, mortes violentas sem causa determinada registradas pelo sistema de saúde sem que o Estado conseguisse identificar a causa por meio de investigação. Só em São Paulo, a pesquisa estimou 6.622 homicídios ocultos. “São Paulo é o caso mais extremo: em 2022, enquanto a taxa de homicídios registrados era de 6,8 para cada cem mil habitantes, a taxa estimada naquele ano era de 12,0. Com isso o estado de São Paulo deixa de ser a UF [unidade federativa] menos violenta da nação, passando para a terceira posição, atrás de Santa Catarina e do Distrito Federal”, escreveram os autores.

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Contudo, Rocha pondera que é preciso analisar com profundidade os dados produzidos e divulgados pela Secretaria de Segurança Pública, que têm como base os boletins de ocorrência, para verificar essa tendência.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre o aumento da letalidade policial, a alta nos casos de pessoas negras, o andamento das investigações nas mortes ocorridas durante as operações Escudo e Verão, além do programa de câmeras corporais. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:

Todas as ocorrências de mortes em confronto nas operações mencionadas são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar com acompanhamento do Ministério Público e Poder Judiciário. A pasta investe permanentemente na capacitação dos policiais, aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, e em políticas públicas para reduzir a letalidade policial. Os cursos ao efetivo são constantemente aprimorados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aprimoram os treinamentos, bem como as estruturas investigativas.

Durante a formação, todo o policial, civil e militar, cursa a disciplina de Direitos Humanos, que aborda o combate ao racismo e a outros crimes de intolerância, inclusive com discussões sobre abordagem e atendimento de vítimas. A SSP aumentou a carga horária dessa matéria nas academias. Além disso, a PM paulista também tem participação acadêmica no grupo de trabalho “Movimento Antirracista – Segurança do Futuro”, sob coordenação da Universidade Zumbi dos Palmares.

Câmeras corporais
A proposta aprovada no pregão para a contratação de 12 mil novas câmeras operacionais portáteis (COPs) para a Polícia Militar irá ampliar em 18,5% o número de equipamentos disponíveis no estado, com um custo menor. Além disso, as novas câmeras terão tecnologia mais moderna, com a inclusão de novas funcionalidades. O processo de licitação está, atualmente, na fase de entrega de amostras e todas as etapas, desde o lançamento do edital, cumpre rigorosamente a legislação vigente. Cabe destacar, ainda, sua conformidade com as diretrizes estabelecidas pela Portaria nº 648/2024 do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

A reportagem também acionou a assessoria do Ministério Público de São Paulo com os mesmos questionamentos. O órgão envidou a seguinte resposta:

O MPSP informa que todas as mortes ocorridas no âmbito da Operação Escudo e da Operação Verão são objeto de Procedimentos de Investigação Criminal instaurados pela instituição.

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