Decisão da 2ª Turma do Tribunal anula prova ligada ao integrante da Força Nacional que serviu de base para condenação e obriga Justiça estadual a realizar novo julgamento
O STF (Supremo Tribunal Federal) invalidou o depoimento do policial militar Maurício Alves da Silva, infiltrado em protestos na época da Copa do Mundo de 2014, usado como prova na condenação de 23 manifestantes no Rio de Janeiro. Para a Corte, a ação aconteceu de maneira ilegal, o que faz a sentença ser anulada e acaba forçando a realização de um novo julgamento, dessa vez sem o depoimento de Maurício e provas decorrentes de suas falas.
Segundo os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski, em decisão unânime, o processo de infiltrar Maurício nos grupos anti-Copa do Mundo não respeitou trâmites legais, como receber autorização judicial e ter acompanhamento da Justiça estadual. Assim, anularam todas as provas do processo que estejam ligadas à atuação do policial.
Isso poderá beneficiar todo o grupo de 23 condenados. Mas cabe destacar que, segundo o STF, o caso específico analisado na tarde desta terça-feira (26/2) é o da advogada Eloisa Samy, condenada por formação de quadrilha e corrupção de menores. Quando houve a decisão desfavorável, Eloisa conversou com a Ponte e manifestou indignação. “Grande parte daquelas pessoas eu mal conhecia. Com alguns deles tive um contato eventual, mas não eram amigos do meu convívio. Tudo isso é um absurdo desde o começo”, afirmou na época. Com relação ao crime de “corrupção de menores”, Eloisa contou que um dos adolescentes que estava no grupo acusado, na época menor de idade e hoje com 22 anos, é filho adotivo dela.
Maurício, o infiltrado, era policial militar do Distrito Federal e, à época, atuava na Força Nacional. Essa tropa era responsável pela segurança nos grandes eventos ocorridos no Rio de Janeiro, como a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Ele se infiltrou em grupos de manifestantes e coletou provas responsáveis pela condenação de 23 pessoas em julho de 2018. Entidades analisaram que a condenação era uma tentativa de “criminalizar a luta popular“.
“Eu quase chorei. Estava com minha mãe no hospital, ela está com um problema na visão, foi quando meu advogado ligou… Foi unânime. 4 a 0! Ainda não li a decisão, mas finalmente começo a sentir que alguma justiça está sendo feita nesse caso, principalmente em relação a mim. Só existia essa prova contra mim, absolutamente mais nada, só a fala fo Maurício. E minha luta pela absolvição era por ausência de justa causa”, comemora Eloisa Samy, uma das 23 condenadas no processo.
Segundo ela, o processo é “garantia de absolvição, seja quando vier”, ainda que não considere possível vir do juiz Flavio Itabaiana, responsável pela condenação no RJ. “Quero processar o Estado. Só Deus sabe o inferno que tenho vivido nestes anos, especialmente depois da condenação a 7 ano no ano passado. Ele [Itabaiana] vai manter a condenação, não tenho a menor dúvida. Não vai reformar a sentença, não excluirá o depoimento do Maurício. Mas estou muito satisfeita, o itabaiana ou o segundo grau vão nos absolver”, diz.
As penas definidas em 17 de julho de 2018 variam de 5 a 7 anos de prisão, a maioria por formação de quadrilha e corrupção de menores, sentença que fez com que os manifestantes alertassem para a possibilidade de “qualquer um ser condenado” com a ação da Justiça. No texto, o juiz considerou que muitos dos réus têm “personalidade distorcida” e chamou o grupo de “associação criminosa armada com participação de menores”.
Para o advogado Marino D’Icarahy, que atua na defesa de sete integrantes do grupo, a decisão é motivo de comemoração e dá “um gás” para a defesa. Segundo ele, o membro da Força agiu “totalmente fora da legalidade” ao prestar um papel que seria de função da PF a nível nacional e, como envolvia questão estadual, o trabalho investigativo cabia à Polícia Civil do RJ.
“Ele estava errado em tudo, inclusive se fosse considerada legal a infiltração, teria violado a legislação várias vezes porque os métodos que utilizou quebram a validade da infiltração, a rigidez da prova”, explica o defensor, elencando parte da quebra de métodos “como ter intimidade com algumas pessoas no ponto de vista íntimo sexual, adentrou nos grupos de Telegram [aplicativo de mensagens instantâneas como o WhatsApp], financiou rodadas de chopp para a galera, financiou camiseta preta com dizeres ‘Foda-se a Copa’… É um conjunto de ações que, se for confrontar com regulamento desse tipo de arapongagem, é ilegal”, define Marino.
Segundo ele, o PM acusou injustamente as pessoas de forma consciente. “Ele mentiu, sei do processo de cabo a rabo. Contra a Eloisa é uma acusação infame, não tem a mínima procedência. Todos que atuam no movimento são capazes de endossar. Ao longo desse processo conseguimos desmascarar um conjunto de procedimentos irregulares. Escritórios de advocacia tiveram seus sigilos invadidos ilegalmente, por exemplo”, sustenta o defensor.
A partir de agora, o passo adiante será retomar a fase de julgamento. O juiz Flavio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do RJ, receberá a decisão do STF e terá que definir um novo julgamento para o caso. Não há prazo exato para esta nova análise. Segundo Marino, algo que preocupa.
“Esse juiz dorme com o processo, que fica trancado no armário dele. Ninguém acessa esses autos sem autorização dele. Ele já deve saber do resultado, matematicamente, milimetricamente, ele deu sentença no dia 17 de julho de 2018, porque no dia 18 de julho completaria quatro anos do recebimento da denúncia e seria o primeiro marco prescricional”, explica.
“O juiz será intimado, tem que proferir um novo julgamento. Mas será proferido baseado em que prova e quando? A decisão enfraquece a prova já passado o marco prescricional. Iremos discutir essa questão da dosimetria da pena. A tendência é a gente fazer um upgrade da defesa, vamos ganhar um gás. O maior objetivo é ganhar a guerra no final”, finaliza Marino D’Icarahy.
Em São Paulo, um caso similar aconteceu com os 18 do CCSP (Centro Cultural São Paulo), inocentados das acusações de formação de quadrilha após serem detidos em 4 de setembro de 2016 antes de uma manifestação contra o então presidente da república, Michel Temer (MDB). Esse caso teve a colaboração de um infiltrado do Exército, o capitão Willian Pina Botelho sob o codinome Balta Nunes. Diferentemente do ocorrido no RJ, a Justiça de São Paulo não considerou as declarações de Balta como provas no processo que inocentou o grupo. Em dezembro, contudo, o Ministério Público recorreu da decisão da Justiça, alegando que o kit de primeiros socorros encontrados com os manifestantes seria prova de enfrentamento contra Estado.