Evento de lançamento de relatório sobre violações na Operação Verão na Baixada mostrou cenário agudo de crise. “Estado não pode executar povo pobre”, afirma Regina Santos, do Movimento Negro Unificado
Pedidos de responsabilização do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário Guilherme Derrite marcaram a audiência pública realizada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), em São Paulo, nesta segunda-feira (23/3). O evento trouxe o lançamento do “II Relatório de Monitoramento de Violação de Direitos Humanos na Baixada Santista Durante a Segunda Fase da Operação Escudo”. O documento aponta execuções, falta de socorro e de perícia, evidenciando o cenário agudo de crise no litoral paulista.
Até o momento, as polícias comandadas por Tarcísio e Derrite são responsáveis por 51 mortes na região dentro da chamda Operação Verão (ou Operação Escudo, o governo tem sido dúbio ao nomear o massacre na Baixada Santista em 2024) .“O Estado não pode executar o povo pobre, preto e periférico. Temos obrigação de colocar na cadeia o governador Tarcísio de Freitas e o secretário Guilherme Derrite”, disse Regina Santos, coordenadora de formação do Movimento Negro Unificado (MNU) em São Paulo, em discurso durante a audiência.
O que o grupo formado por 13 entidades (como a Ouvidoria das Polícias, a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio e o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) que assinam o relatório ouviu dos moradores de Santos, São Vicente e Cubatão. No documento, estão as histórias de 12 vítimas e dois feridos, além de recomendações para garantir a responsabilização dos envolvidos nas mortes e evitar que a barbárie volte a se repetir.
Entre os casos está a morte de cinco homens, em São Vicente, em 27 de fevereiro. Dois deles tinham 17 anos e os demais 18, 24 e 32. Segundo testemunhas, os corpos teriam sido arrastados pelos agentes até um mangue. Apesar de a versão dos familiares diferir da dos PMs — que falaram em troca de tiros — uma perícia no local foi descartada, inviabilizando a produção de uma prova técnica.
A situação não é um caso isolado. “O cenário tem só se agravado”, diz o ouvidor das Polícias, Cláudio Silva. “Cinco pessoas morreram em uma ação e há perícia de laudo do local. Isso é um dado muito relevante. Como que em uma cena supostamente de troca de tiros, você dispensa [perícia]?”, comenta sobre o caso de São Vicente.
O relatório também cita casos contados pela Ponte, como as mortes de Hildebrando Simão Neto, 24 anos, Davi Gonçalves Júnior, 20, José Marques Nunes da Silva, 45, Leonel Santos, 36 anos e Jefferson Miranda, 37.
A dispensa da apreensão das armas dos policiais que mataram o pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30, informação publicada com exclusividade pela Ponte, também citada no relatório.
Outro dado divulgado pela Ponte citado no documento é sobre o suicídio de policiais. Em 2023, 31 policiais cometeram suicídio, o maior número em 11 anos e um aumento de 63% em relação ao ano anterior. Foi a segunda causa mais frequente de mortes de policiais, atrás de morte natural (32). “Ou seja, em meio às operações vinganças, o resultado para a Polícia Militar foi o crescimento do número de policiais assassinados e vitimados por suicídio”, diz o relatório.
Esse foi o segundo relatório produzido pelas entidades. A primeira versão reuniu histórias de oito vítimas nas cidades de Santos, São Vicente e Itanhaém. O documento mostrou que a PM vitimou pelo menos dois adolescentes e teve uma criança entre os alvos de abordagem truculenta.
Maioria das vítimas era negra
O levantamento aponta que, das vítimas documentadas, 11 eram homens negros, sendo um deles uma pessoa negra com deficiência, e a outra não teve a cor identificada.
Há relatos de vítimas que receberam tiros em tatuagens ou que tiveram os desenhos mutilados do corpo. Outro ponto em destaque é a omissão de socorro. No caso de Alex Macedo, a família denunciou a demora no atendimento médico após o jovem ser ferido. Ele chegou a ser levado ao hospital, mas estava morto quando chegou lá.
Em outro caso, da morte de um homem de 33 anos, morador da comunidade do Saboó, em Santos, testemunhas contaram que ele foi colocado sem vida em uma ambulância do Serviço Móvel de Atendimento de Urgência (Samu). A vítima teria sido atingida por policiais enquanto ia comprar pão.
Em meio às denúncias, as entidades criticam a fala de Tarcísio de Freitas, que disse “não to nem ai” ao ser questionado sobre queixa feita à Organização das Nações Unidas (ONU) contra sua atuação.
“Apesar da gravidade do contexto apresentado, no último 8 de março, o governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), declarou em coletiva de imprensa que as organizações que denunciam os crimes cometidos durante a operação Escudo/Verão podem ir ‘na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não tô nem aí’, legitimando a atuação violenta e ilegal dos agentes de segurança envolvidos nas ocorrências”, aponta o texto.
Para o presidente do Condepe, Dimitri Sales, o governador e o secretário Guilherme Derrite desdenham da gravidade das operações. “Temos um governador e um secretário que nem sequer tem cuidado de conhecer o estado que estão administrando. Não é possível, diante de tantas denúncias, tanta violação de direito, que eles não acompanhem o noticiário”, disse à Ponte.
Ainda na segunda-feira (23), o Condepe representou contra Derrite ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) por improbidade administrativa. O pedido foi justificado pela falta de transparência da gestão em meio a possíveis irregularidades e alta letalidade.
Presente na audiência, a promotora Daniela Favaro, da Secretaria Especial de Políticas Criminais, não comentou especificamente a representação. Contudo, ela defendeu a necessidade que a pasta de Derrite cobre que as tropas ajam na lei.
“Sem que haja um efetivo olhar, nem que seja obrigado a tanto, da Secretaria da Segurança Pública para essa necessidade de que a ação dos policiais seja feita conforme o que as leis mandam, sem que haja essa exigência, não basta só investigar posteriormente o fato”, disse em discurso.
Famílias presentes
A audiência pública lotou o Salão Nobre da FDUSP. Além de familiares das vítimas, o público foi composto por moradores de outras áreas do estado também afetadas pela violência policial.
“O evento ocorre neste espaço inacessível para toda essa multidão que está aqui. O que o Estado reserva para esses corpos, para essas pessoas, é uma política de morte, seja ela direta, pela bala, ou pela deficiência das políticas públicas”, diz Jacque Cipriany, articuladora e membro da equipe jurídica da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.
A esposa e a mãe de Allan Moraes, morto em 10 de fevereiro em Santos, sentaram na primeira fileira. Com amigas, que também perderam parentes na Operação, elas seguravam uma faixa com uma foto do auxiliar de roupeiro e com a frase: “A Rota matou o Allan saindo do trabalho”.
Allan foi apontado pela polícia como “Príncipe do PCC”. A esposa de Allan, Luciana Castro, diz que o marido já cumpriu todas as penas às quais foi sentenciado. “Ele não devia nada a ninguém. A Rota acabou com a minha vida”, afirmou à Ponte.
Os parentes puderam falar sobre as violações durante parte da audiência. A esposa de Leonel Andrade Santos, se emocionou ao lembrar do marido. “O Leonel era uma pessoa tão doce. Eu nunca ouvi o Leonel falar que tinha ódio da polícia”, contou. Mãe de três filhos, ela disse ter dificuldades em encontrar forças para lutar por justiça neste momento em que não tem renda para manter a família.
“Um moleque tão lindo, tão novo”, disse em meio a lágrimas a namorada de uma das vítimas, morta em um mangue em São Vicente. “Foi uma injustiça o que fizeram com ele.”
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a SSP-SP e o MP-SP. Para a SSP-SP foi questionada a continuidade da operação, o motivo da ausência de um representante na audiência pública, sendo pedidos dados sobre as ações.
Em nota, apenas o balanço foi respondido. “A 3ª fase da Operação Verão permanece em andamento por tempo indeterminado com o objetivo de asfixiar o crime organizado na Baixada Santista. Desde o início da ação, 1.010 criminosos foram presos, entre eles 407 procurados pela Justiça; 948 quilos de drogas foram retirados das ruas e 111 armas ilegais, incluindo fuzis de uso restrito, apreendidos. As mortes em confronto são resultados da reação violenta dos criminosos ao trabalho policial. Até o momento, 51 infratores morreram. Todos os casos são rigorosamente investigados pela Polícia Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário”
Ao MP-SP foi questionado a atuação diante das denúncias de violações na Operação na Baixada Santista, mas não houve retorno.