‘Tendência é acontecer muito mais crimes, dentro e fora dos presídios’

    Especialista no sistema prisional do Amazonas, sociólogo Ítalo Lima explica que massacre com 55 presos mortos faz parte de histórico violento nas prisões e reflexo será ainda mais violência

    Em seu mestrado, Ítalo abordou a realidade prisional de unidades em Manaus, e explica como massacres atuais dialogam com histórico do sistema | Foto: Arquivo pessoal

    Os 55 assassinatos em série dentro de presídios privados (administrados pela empresa Umanizzare) de Manaus, capital do Amazonas, podem ser lidos como uma repetição de outro massacre recente, com 56 mortos há dois anos e meio. O sociólogo Ítalo Lima, que fez mestrado sobre a situação carcerária manauara pela Universidade Federal do Amazonas, explica que a nova matança, terceira maior no sistema prisional brasileiro, é apenas mais um capítulo sangrento no histórico do regime prisional local, uma síntese de desigualdades sociais que vem desde a formação da capital, como explica.

    Em entrevista à Ponte, Lima, que atualmente trabalha no LEV (Laboratório de Estudos da Violência) da UFC (Universidade Federal do Ceará), avalia que a privatização do sistema, ocorrida em 2006, agravou a crise já existente nas prisões, com massacres registrados no início do século. Como o Estado terceirizou a responsabilidade e não combateu a violência, levou a população a considerar que se pode matar sem problemas. “Manaus vive um cenário de intensificação dos conflitos”, sustenta. O pesquisador aponta o surgimento de milícias e o aumento da violência entre as facções que atuam no território: CV (Comando Vermelho), FDN (Família do Norte), e PCC (Primeiro Comando da Capital).

    Confira a entrevista:

    Ponte – Especialistas ouvidos pela Ponte consideram que o poder público poderia evitar tanto o massacre de 2017 como o deste ano. De fato, essas mortes eram esperadas?

    Ítalo Lima – Com certeza. O que aconteceu no domingo e segunda é mais um capítulo da violência das prisões do Amazonas. Em pesquisa de campo que fiz, quanto mais se vai pesquisando sobre os históricos das prisões, mais se encontra esse tipo de acontecimento. Exemplo: em 2002 teve uma chacina que matou 13 pessoas no seguro da unidade prisional. Naquele momento, o governo e a sociedade identificaram que o sistema prisional estava falido, seja por corrupção interna por parte de funcionários, seja pelo comando de xerifes do crime em pavilhões e unidades, e o permanente estado de insegurança. O Compaj, em 2017, já era uma unidade de segurança máxima.

    Ponte – Então a contratação de empresas terceirizadas visava acabar com esta crise. Por qual motivo não deu certo?

    Ítalo Lima – Em 2003, logo em resposta ao massacre, começa o processo de terceirização. A primeira empresa assumiu em caráter de urgência, sem processo licitatório. Fica fácil entender o motivo de não dar certo. Já tivemos várias empresas neste processo de terceirização no Amazonas. A ideia era de ser mais flexível com as questões trabalhistas e ter impacto na condição geral, mas o que acontece é que, logo depois que se teve a licitação, em 2006, relatórios do ano seguinte feitos por instituições de controle social, detectam que a terceirização não cumpriu o papel de imediato.

    Ponte – A política pública pelo governo do estado tem influência neste cenário?

    Ítalo Lima – Sim. As próprias polícias tiveram concursos no fim dos anos 2000, sofisticaram a ação nas ruas, que refletiram em programas, como o ronda do bairro, um modelo já de 2011. Esse programa é conhecido pela produtividade em termo de prisões. Ou seja: o policial prendia e ganhava até um 14º salário. Algumas prisões eram mais valorizadas, como de entorpecente, de usuário de drogas e traficantes, o que passava a sensação de que coisas estavam no rumo certo. Mas a situação nas prisões estavam piorando cada vez mais.

    Ponte – Qual reflexo dessa política de encarceramento?

    Ítalo Lima – Temos denúncias feitas constantemente por servidores e associações dos agentes. A superlotação estava cada vez maior e, ao mesmo tempo, a terceirização tem impactos severos na situação trabalhista. Os agentes terceirizados vivem uma discrepância salarial enorme em relação aos contratados pelo governo. Além das ameaças contantes que eles recebem dentro das unidades, das condutas autoritárias dos presos. As empresas dão pouca segurança para eles, tanto salarial, quanto atendimento psicológico. Alguns sofrem da Síndrome de Burnout (esgotamento físico e mental em decorrência do trabalho) dentro das unidades. Um trabalhador terceirizado começou a suar frio falando comigo, por exemplo, dizendo “nós trabalhamos sob constante ameaça todos os dias”. Não existe garantia para eles.

    Ponte – Os presídios do amazonas estavam em normalidade desde o massacre de 2017?

    Ítalo Lima – Não, esse massacre de agora é um massacre que vem em um período de intervenção, não de estado de normalidade no sistema. A força nacional estava no entorno das unidades, os mecanismos foram aprimorados, mas não foi o suficiente para conter a escala de violência que vimos. Manaus vive um cenário de intensificação dos conflitos. Há o avanço de milícias, como acontece no Rio de Janeiro, temos aumento da violência entre as facções, CV (Comando Vermelho), FDN (Família do Norte), e PCC (Primeiro Comando da Capital).

    Ponte – Então os massacres recentes não são isolados, integram um histórico similar?

    Ítalo Lima – Um histórico de matança, de conivência com a situação do sistema penitenciário. Quando se olha o nível de desigualdade social no estado e na capital, como em termos de saneamento básico, distribuição de renda, a própria ocupação da cidade, nós observamos um histórico de violação social. E as prisões têm a função de castigar, exclusivamente, e aprofunda essa desigualdade. São pessoas privadas de relações, por exemplo. As pessoas que morreram, algumas estão relacionadas às facções, mas nem todas. Agora, o governo de Wilson Lima (PSC) diz que não vai indenizar as famílias que tiveram seus familiares massacrados sob a tutela do estado. O estado assume a situação de miséria, é incapaz de melhorar o quadro, e deixa matar e deixa morrer. O recado é esse. Em 2017, no massacre de Compaj, o poder público declarou que ali ‘não tinha nenhum santo‘. As consequências de violências nas prisões são sentidas nas ruas. Alguns bairros são completamente conflagrados pelas facções, como União, o Centro, o Mutirão. Neles já se observa uso ostensivo de armas de fogo. Há maior circulação de armas na cidade e, ao mesmo tempo, as polícias são levadas à lógica de guerra e extermínio.

    Ponte – A letalidade policial aumentou desde o massacre de 2017?

    Ítalo Lima – Temos exemplos: houve um assalto à uma lotérica de Manaus, feito por uma quadrilha de ligação com FDN. Eles fizeram um cordão humano dentro da lotérica, pela avenida Grande Circular de Manaus, e entraram atirando numa rua de bairro popular. E a 1,5 km dali, a polícia exterminou essas pessoas. É um caso emblemático na história: a polícia pegou as armas, e saiu em passeata pela avenida. Dezenas de pessoas aplaudiram a situação que acabara de acontecer e ainda estavam gritando “Bolsonaro”. O esvaziamento que o governo estadual faz, em termos do que deveria ser a conduta pública, o que deveria ser isso, virou um aviso de que as pessoas poderiam resolver os seus problemas de forma autoritária e violenta.

    Ponte – Como avalia a política pública nos presídios do Amazonas?

    Ítalo Lima – A avaliação é que as prisões, no Brasil em um geral, estão distante da ressocialização, mas no Amazonas a política de segurança penitenciária foi conivente com a repressão. A medida que o próprio estado fortalece liderança desses grupos organizados, com atuação extremamente autoritária, a população carcerária fica em situação complicada. Por um lado, as lideranças oportunamente dizem que lutam pelos direitos e contra opressões, por outro, usam esse tipo de ação como a de domingo para justificar intervenções autoritárias. Temos aqui no Ceará, onde atuo hoje, a tortura sendo relativizada dentro do sistema, ela não é combatida. Os agentes daqui estão entre os que farão parte da força-tarefa do ministro Moro que irão para Manaus. E, na agenda da segurança do Ceará, os direitos humanos saíram de modo muito preocupante.

    Ponte – Alguns dos candidatos colocaram nas eleições de 2018 a privatização dos presídios como política pública, seja nacional ou estadual. Como o exemplo do Amazonas contribui nesse debate?

    Ítalo Lima – As condições no sistema penal não se modificaram. Na verdade, pioraram. As consequências são sentidas com os massacres. Geralmente, o modus operandi que essas empresas colocam nas crises evidenciam que estes fatos representam um projeto. No Espírito Santo já aconteceu situação similar. De modo geral, o Ceará também. As rebeliões, fugas, mortes… Com a terceirização, a empresa se isenta de responsabilidade. Em 2017 foi a mesma situação, a Umanizzare se isentou e utiliza como artificio o suposto segredo como requisito para a segurança e, por isso, não oferece informações. O controle social sobre a atuação das empresas é muito frágil. Não temos exatidão sobre o número de trabalhadores em serviço, sobre suas condições de trabalho. Temos controle de dinheiro gasto e, nos últimos cinco anos, foram mais de 50 milhões [números obtidos pelo site Brasil de Fato apontam para mais de R$ 836 milhões pagos pelo governo do Amazonas]. O artifício da não responsabilização é de que o dever era do estado, que ele não cumpriu a sua função, e no fim ninguém é responsável pelas mortes. Uma parte da culpabilidade foi para as pessoas que cometeram os atos, mas o estado não entra como responsável e indutor da situação.

    Ponte – Há algum reflexo imediato com o novo massacre?

    Ítalo Lima – Vão fazer um novo processo de licitação para conseguir uma nova empresa para administrar os presídios. Existe uma forte tendência de que as privatizações relativizem a relação trabalhista, que dificultem o controle social, a recusa para termos acesso às informações – supostamente baseado na segurança- e, pelo que nós sabemos, a terceirização está muito distante de conseguir suas missões. São poucas garantias aos trabalhadores, por exemplo, muitos deles estão adoecendo.

    Ponte – Há um direcionamento do motivo para esse matança?

    Ítalo Lima – Provavelmente, é decorrente e levará a diversos acontecimentos fora das prisões, até mesmo fora de Manaus. A hipótese é que existiu um racha interno na Família do Norte, mas isso não é uma novidade. A relação entre esses grupos, com décadas de tramas, são frágeis. Com cada nova situação de conflito entre as facções e aumento da truculência policial, tudo pode mudar muito rapidamente. São muitos indícios de disputa interna, mas em processo. As consequências começam a ser observadas com mais tempo, mas, de forma quase imediata, realmente é o aumento dos conflito. As disputas vão se intensificando na medida que os eventos vão acontecendo. Certamente, vamos ver que outros assassinatos têm relações com essas brigas de facções. A tendência é acontecer muito mais crimes, dentro e fora dos presídios.

    Ponte – Tem sido recorrente no Amazonas o uso do WhatsApp como ferramenta para divulgar casos violentos, como o próprio massacre de 2017. Isso contribui para o clima de insegurança?

    Ítalo Lima – O uso de celulares nas prisões não é novidade, já ocorre há mais de 20 anos. Temos em Manaus desde 2000. Hoje, o acesso à informação e a internet móvel têm trazido a qualidade de acompanhar em tempo real praticamente tudo, infelizmente esses casos também. Em Compaj, nos assassinatos de 2017, os boatos em WhatsApp eram terríveis. A cidade estava apavorada, pois a ascensão das facções contou com um tipo de capacidade de mobilização pro WhatsApp. Após os crimes no Compaj, havia boatos de que a polícia ia sair matando por causa das mortes dos presídios e as pessoas teriam que ficar em casa. O uso de celulares nas prisões não é novidade, já ocorre há mais de 20 anos. Temos em Manaus desde 2000. Hoje, o acesso à informação, a internet móvel, têm trazido a qualidade de acompanhar em tempo real praticamente tudo, infelizmente esses casos também. Em Compaj, nos assassinatos de 2017, os boatos em WhatsApp eram terríveis. A cidade estava apavorada, pois a ascensão das facções contou com um tipo de capacidade de mobilização pro WhatsApp. Após os crimes no Compaj, havia boatos de que a polícia ia sair matando por causa das mortes dos presídios e as pessoas teriam que ficar em casa.

    Ponte – Aconteceu antes do massacre de 2017?

    Ítalo Lima – Teve um final de semana sangrento em 2015, quando um assaltante cometeu latrocínio contra um suboficial da polícia que estava em bico um de segurança ao sacar dinheiro para um empresário e acabou morto pelo assaltante. O que aconteceu? A polícia e os grupos de extermínio promoveram uma série de assassinato naquele fim de semana. Só que as pessoas, quando descobriram quase em tempo real a morte do policial, já sabiam o que aconteceria em seguida. É algo histórico ter os grupos de extermínio agindo assim. As pessoas sabiam do revide e, de fato, aconteceu. A disseminação de boatos fez com que a série de assassinatos, mais de 30, fossem creditados à Família do Norte. No sábado daquele fim de semana, a facção lançou um comunicado dizendo que não eram eles os responsáveis por todas as mortes. Que eles eram responsáveis por algumas, mas não todas. Depois foi-se saber por uma operação da PF (Polícia Federal) que os eventos do fim de semana sangrento era por causa desses grupos de extermínio.

    Ponte – As milícias locais atuam como as do RJ?

    Ítalo Lima – Não temos informações precisas ainda. Tivemos uma operação recente, a Cidade das Trevas [comandada pela Secretaria da Segurança Pública local]. Mas os grupos são muito novos para saber a dinâmica.

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