Um a cada quatro mortos pelas polícias de SP foi morto por policial fora de serviço

De janeiro e setembro, 467 pessoas foram mortas pelas polícias, sendo 106 vítimas quando o policial estava de folga; 24 policiais foram mortos no mesmo período, 14 deles quando não estavam trabalhando

À esquerda, CNH do cabo Denis Augusto Amista Soares, à direita, Thiago Aparecido Duarte de Souza, morto pelo PM em abril | Foto: Reprodução

As polícias civil e militar de São Paulo mataram 467 pessoas nos primeiros nove meses de 2021, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado, sob o governo João Doria (PSDB). A maior parte, 361, ocorreu durante o serviço, como o caso de Murilo Henrique Junqueira, baleado mesmo com as mãos na cabeça, sem oferecer resistência, na cidade de Ourinhos em setembro e cujo caso ainda segue em investigação, após o Ministério Público Estadual solicitar diligências complementares, e com dois PMs presos. Esse é o menor número desde 2013 das ocorrências em serviço. Outras 106 foram vítimas quando os policiais estavam de folga, isso representa 22% ou uma em cada quatro casos.

Uma dessas vítimas foi o jovem Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20, que tinha deficiência intelectual e foi baleado com um tiro na cabeça em uma abordagem feita pelo PM Denis Augusto Amista Soares, que estava fora de serviço e alegou tentativa de assalto, em abril, embora a família conteste essa versão. A investigação sobre a morte do rapaz chegou a ser remetida à Justiça Militar e só voltou a Vara do Júri, na Justiça Comum, porque as advogadas da família de Thiago trouxeram à tona testemunhas que indicam que Denis chutou outro rapaz que foi abordado na ocasião e por causa de um vídeo que mostra o jovem andando em uma rua próxima sem nenhum sinal de estar armado. O Ministério Público Estadual também solicitou novas diligências para apuração.

Outro caso é de  Clayton Abel de Lima, 20, que recebeu um tiro no peito do cabo Silvio Pereira dos Santos Neto, 29, com quem estava em um bar zona norte da capital paulista, como a Ponte revelou em 7 de agosto. O policial disparou porque achou que Clayton tinha furtado seu celular, mas ele tinha esquecido no próprio carro, e ainda teria mentido de que reagiu a uma tentativa de roubo. Silvio está preso, foi acusado por homicídio qualificado, e está prevista uma audiência sobre o caso para 17 de novembro.

A Polícia Militar paulista é a que mais mata quando comparadas as ocorrências de morte praticadas pela Civil. Em setembro deste ano, foram 34 casos, tanto de folga quanto em serviço, sendo que no mesmo período em 2020 foram 52. Em setembro, houve um caso de morte praticada pela Polícia Civil neste ano. No ano passado, no mesmo mês, foram duas vítimas.

Na reportagem sobre 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o pesquisador e cientista em Humanidades pela UFABC (Universidade Federal do ABC) Dennis Pacheco explicou que um dos indicadores usados para medir o uso excessivo da força é comparar homicídios dolosos e mortes praticadas pela polícia. Segundo estudos de Ignacio Cano, o ideal é a proporção de 10%, e Paul Chevigny sugere que índice maior de 7% é considerado abusivo. Em setembro deste ano, a porcentagem no estado de São Paulo foi de 14%.

A diretora executiva do Instituto Sou da Paz Carolina Ricardo reitera que a secretaria e a corporação têm mantido medidas que começaram a reduzir os índices desde o segundo semestre do ano passado, incluindo a proporção de homicídios e mortes pela PM. “Os números seguem caindo e isso reflete há algum tempo que a Polícia Militar decidiu controlar o uso da força letal, acompanhar mais de perto com um conjunto de medidas que é uma comissão de mitigação de não conformidades para discutir casos de confronto letal, fazer uma discussão, acompanhamento psicológico célere de cada caso que acontece, investimento de equipamento menos letal, com armas de incapacitação neuromuscular, a implantação das câmeras [na farda] que vêm mostrando um compromisso e monitoramento dessa tendência”, explica.

Para ela, essas intervenções realizadas também se refletem na vitimização policial. De janeiro a setembro de 2020, foram 60 policiais, entre civis e militares, mortos, sendo 40 deles em serviço, modalidade que não se destacou desde 2010. Já no mesmo período deste ano, foram 24 mortes de profissionais da segurança pública, sendo quatro em serviço e 14 de folga, como o caso do soldado Leandro Patrocínio, assassinado em junho deste ano quando estava na Favela de Heliópolis, zona sul da capital paulista. A investigação está em segredo de justiça e três pessoas suspeitas pelo crime foram presas na ocasião.

A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública se esses dados contabilizam óbitos por Covid-19 já que, em todo o ano de 2020, o número de policiais mortos pela doença (43) foi o dobro do que em confronto (22), mas não houve resposta. Já sobre as mortes fora de serviço, tanto de policiais quanto de civis, Carolina Ricardo indica que ainda é difícil entender os índices em meio a este contexto porque os casos vêm caindo desde 2017 e entrou em estabilidade.

Em setembro, também houve aumento de registros em comparação com o mesmo mês do ano passado de estupro (de 1.038 para 1.076) e crimes patrimoniais: roubo (de 14.796 para 18.890), roubo de veículo (de 2.247 para 2.902), furto (30.571 para 42.722) e furto de veículo (de 5.180 para 6.984). Para Ricardo, a questão do estupro pode indicar não um aumento de casos, mas de notificações, considerando que em 2020 ainda existiam mais restrições por conta da pandemia do que neste ano, o que dificultou a possibilidade das vítimas procurarem as delegacias.

Já sobre os crimes patrimoniais, a pesquisadora compreende que a menor circulação de pessoas e de valores num período restritivo no ano passado também impactou esses índices. “A gente precisa observar a tendência a partir do momento em que abrir mesmo [a circulação] e ver um ciclo de meses com essa reabertura para saber o que vai acontecer com esses crimes”.

O que diz a polícia

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre os indicadores criminais bem como os indíces de letalidade e vitimização policiais. A In Press, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota*:

A Secretaria da Segurança informa que o Comando da Polícia Militar tem adotado diferentes medidas para reduzir mortes decorrentes de intervenção policial. Dentre elas estão a criação da Comissão de Mitigação de não conformidades e uso das câmeras corporais.  As medidas possibilitaram na redução de -222 casos de mortes de policiais em serviço e de redução de -224 policiais de folga se comparados os nove meses de 2021 com igual período de 2020.

Um fator que deve ser considerado é atipicidade do ano de 2020 em decorrência das medidas sanitárias e restritivas que precisaram ser adotadas durante a pandemia de Covid 19.  Prova disso é a redução de 12,7% nos roubos e 16,3% dos furtos entre janeiro a setembro de 2021 com igual período de 2019. Em relação aos estupros houve queda de 15,9% no mesmo período. O Estado de São Paulo tem intensificado as operações de combate à violência sexual e as ações para reduzir a subnotificação desses crimes, inclusive com a realização de campanhas para estimular a denúncia contra esses agressores. Todas as delegacias territoriais do Estado, incluindo as 138 DDMs, sendo 11 que funcionam 24 horas, que estão aptas a acolher as vítimas, registrar e investigar os casos desta natureza, além DDM online e do SOS Mulher.

*Reportagem atualizada às 10h10, de 12/11/2021, após recebimento de nota da SSP.

Metodologia

As estatísticas usadas nesta reportagem foram retiradas dos comunicados publicados mensalmente pelo gabinete do secretário da Segurança Pública no Diário Oficial do Estado de São Paulo, sendo que os dos meses anteriores já haviam sido compilados pela reportagem da Ponte, sempre com base nos relatórios do Diário Oficial. Também comparamos com os números divulgados pelo Instituto Sou da Paz, que usa essa mesma base de dados. Para chegar ao Número de mortos pela PM, somamos dois campos do relatório original: Pessoas mortas em confronto com a polícia militar em serviço e Pessoas mortas por policiais militares de folgaO número obtido por essa soma, em seguida é usado no cálculo da Porcentagem dos mortos pela PM sobre o total de homicídios (segundo gráfico). O item "total de homicídios" reúne tanto os homicídios dolosos no geral como as mortes cometidas pela polícia — embora o governo não chame os mortos pela PM de homicídios, os estudos sobre o tema, de Ignacio Cano e Paul Chevigny, apontam que, para efeitos de análise, essas mortes também devem ser incluídas quando se analisa o total de mortes violentas intencionais.

Citações

Instituto Sou da Paz, Diário Oficial do Estado de São Paulo, Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

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