Um catava latinha, o outro pegava carona com ele. Ambos morreram em operação policial no RJ

    Os amigos Jefferson e Gabriel foram baleados no Morro do Santo Cristo nesta terça (5) em Niterói. Irmã de Gabriel ouviu de um policial que seu irmão morreu porque “chegou na hora errada”

    Os amigos Gabriel “Zulu” Machado e Jefferson Bispo, mortos com tiros de fuzil durante operação policial em Niterói (RJ) | Foto: Reprodução

    Dois jovens negros foram baleados durante ação da Polícia Militar na rua Doutor Pericles, no Morro Santo Cristo, em Niterói (RJ), na tarde da última terça-feira (5/1). Gabriel Machado, de 19 anos, estava recolhendo materiais recicláveis pelo bairro da Engenhoca, na Travessa Santo Cristo, junto com seu amigo, Jefferson Bispo, de 15, quando foram atingidos e encontrados feridos por vizinhos e familiares. O 12º Batalhão de Polícia Militar (BPM) de Niterói abriu o Inquérito Policial Militar e as armas dos PMs envolvidos já estão sendo periciadas. 

    “Era pouco depois de 12h30 quando eu estava dentro de casa e notei que os policiais passaram correndo e em seguida escutei os tiros. Em seguida, ficamos sabendo que dois jovens estavam baleados. Então, eu saí para ir atrás do meu irmão e fui avisada que ele estava caído”, conta a irmã de Gabriel, Jaqueline Teresa Machado, de 28 anos. Familiares chegaram na quarta (6/1) pela manhã ao Instituto Médico Legal (IML) de Barreto, em Niterói, para liberarem os corpos. Parentes afirmaram que eles são inocentes e não têm envolvimento com o tráfico de drogas.

    Gabriel Machado, chamado de “Zulu”, já era conhecido pela comunidade. Todos os dias, às 6h da manhã, ele saía de casa com um carrinho de mão para recolher materiais recicláveis, como latinhas, papéis e garrafas de plástico. Sua irmã relembra a vontade que Gabriel, o caçula da família, tinha de trabalhar e de ajudar as pessoas ao seu redor: “ele fazia favores para as pessoas. Ele era muito bom. Depois, usava o dinheiro para comprar biscoitos e balas. O policial matou meu irmão inocente. Ele estava catando latinha e subiu na hora errada. Aí, eles já chegaram no morro atirando. Eles mesmo falaram que, infelizmente, meu irmão chegou na hora errada”, relata.

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    Um morador que não quis ser identificado, conhecia a família desde que Gabriel era pequeno e relata que sua mãe morreu há 3 anos, quando houve uma invasão de rivais no Santo Cristo. “Ela escutou os tiros e saiu correndo para ver onde Gabriel estava e se deparou com um monte de homens armados, deu um infarto e morreu na hora”, relembra.

    Ele ainda tinha deficiências psicomotoras e tomava remédios diariamente. O pai, Gelson Estevão, de 50 anos, percebeu que ele estava demorando para voltar em casa pois precisava tomar uma medicação. “Foi aí que ficamos sabendo que ele havia sido baleado”, explica o pai, que tinha pedido para o filho não sair de casa naquela manhã. A irmã, Priscila, o pai e a mãe também foram diagnosticados com problemas psicossomáticos. Jaqueline, a irmã mais velha, mora perto e é responsável pelo acompanhamento do tratamento.

    Já a avó do adolescente Jefferson, a aposentada Maria Luiza Coelho, 62, diz que no momento da operação estava fazendo um trabalho voluntário na Paróquia do Senhor Santo Cristo dos Milagres (a Pastoral Social da igreja também ajudava a família de Gabriel com doações e acompanhava os meninos desde pequenos) e, ao ouvir os tiros, sentiu uma forte dor no peito. “Falei: ‘Jefferson’. Toda vez que eles subiam, davam tiros. Em seguida, a minha cunhada me disse que ele tinha sido baleado. Pedi para me levarem lá, mas eles já tinham retirado ele e levado”, explica a avó paterna, que tem a guarda do neto desde que ele nasceu. Ela ainda complementa que tinha visto Jefferson mais cedo, antes das 8h da manhã, quando foi ao médico: “me deu uma dor no peito e ainda senti vontade de voltar. Mas, como eu estou fazendo um tratamento muito rigoroso, fui. Mas, antes, eu fui no quarto dele e disse que estava saindo. E ainda me disse: ‘vai com Deus, vó’”, lembrou. 

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    Jefferson estudava na Escola Municipal Djalma Coutinho e a diretora e uma professora enviaram flores para o sepultamento, que ocorreu na tarde de quarta-feira (6/1), no Cemitério Maruí, em Barreto, Niterói. Elas tinham um carinho muito grande pelo menino, não somente elas, mas um morador que não quis ser identificado destaca que Jefferson, apesar de ser mais na dele, estudava e gostava muito de ajudar as pessoas. “É triste acompanhar eles e não poder fazer nada para mudar. As comunidades da redondeza, nenhuma tem um projeto social”, diz. Uma amiga que cresceu e estudou junto com Jefferson na Escola Municipal Noronha Santos o considerava como um irmão: ”ele era tudo pra mim. Ele gostava de ficar na minha casa, ia lá todo dia. O Zulu toda vez que passava na rua falava comigo, ele nunca faz mal pra ninguém. Agora eles só deixarão lembranças”, conta emocionada.

    O presidente de Associação dos Moradores de Amigos do Santo Cristo, Begerson Reis, 36, conhecia ambos e relembra que Jefferson era um “jovem como outro qualquer daqui da comunidade, quando tá estudando, tá dentro da escola, quando não tá estudando, tá correndo pelo morro, porque o que nós temos aqui é um campinho de futebol, não temos um projeto [social] nem nada. Ele vivia correndo pra cima e pra baixo, hora tava com o Gabriel catando latinha.” Os dois amigos foram enterrados um ao lado do outro.

    No dia da tragédia, moradores do bairro realizaram uma manifestação gritando por justiça: “Zulu vive! Salve a favela, abaixo a covardia! Justiça! Mataram um inocente!”. A transmissão foi realizada pelo presidente da Associação dos Moradores: “eu não deixaria de vir aqui e prestar minha solidariedade e manifestar também um ato de repúdio a esses dois assassinatos. Talvez você hoje pode estar pensando que é mais um povinho que tá defendendo seus bandidos, mas não! Nós estamos aqui pedindo para que a polícia faça o trabalho dela e não venha assassinar os nossos jovens. […] Eu peço aqui à polícia que faça o seu trabalho, mas tenha atenção e, quando errar, assuma os seus erros, assuma os seus erros!”, enfatiza Begerson.

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    Vizinhos de Gabriel dizem que se sentem revoltados com a situação e reforçam o quanto ele era um menino atencioso e que sempre soube respeitar o próximo. Uma pessoa que não quis ser identificada mora próximo a Gabriel e conta que já tinha juntado algumas latinhas para entregá-lo: “eu o vi crescer. Moro aqui há 13 anos e ele sempre catava as latinhas dele, o ganha pão dele. Eu mesma juntei umas latinhas aqui para ele na esperança de vê-lo ou me chamar no portão: ‘Tia!’ e agora tiraram ele da gente. Mesmo tendo dificuldade mental sempre soube respeitar o próximo. Agora, só restará a saudade no coração de todos que o conheciam desde pequeno”. 

    A vendedora autônoma Leny Gomes, 38, também é moradora do bairro Engenhoca e diz que o via todos os dias trabalhando na comunidade, sempre chamava para suas festas e era muito prestativo: “Zulu, menino bom! Por mais que tivesse os seus problemas mentais, não oferecia risco a ninguém. Estava passando com o seu carrinho de mão na hora de uma ação totalmente despreparada da Polícia Militar e acabou perdendo a sua vida brutalmente”, afirma Leny, que tinha o costume de doar roupas para a família. O pai de Gabriel não trabalha e a única renda da família é do benefício do governo recebido pela irmã, Priscila. Uma outra moradora que também não quis ser identificada contou à Ponte que o Gabriel por onde passava brincava com todos. “Todos gostavam muito dele! Como dizem: ‘a alegria da comunidade foi embora’”.

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    De acordo com nota do comando do 12º BPM, os policiais estavam em patrulhamento pela localidade e “quando foram atacados por disparos de arma de fogo ocorreu reação. Após cessar o confronto, dois indivíduos foram encontrados feridos e houve apreensão de uma pistola com ‘kit rajada’, uma granada, 163 trouxinhas de maconha e 196 pinos de cocaína”. Porém, o delegado Mário Lamblet, da Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Maricá (DHNSGI), confirmou à tarde que ambos os jovens não têm passagem pela polícia e a PM ainda não informou com quem estavam os produtos apreendidos. Dois policiais que estavam no momento confirmaram que dispararam e um deles em depoimento disse que atirou seis vezes. Além deles, os outros agentes que participaram da ação também prestarão depoimentos durante esta semana. Os fuzis de calibre 7.62 utilizados na operação estão sendo analisados no Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE).

    A vereadora de Niterói Benny Briolly (PSOL), 29, afirmou que a Comissão de Direitos Humanos da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) está prestando assistência jurídica e social para as duas famílias. Ela ainda esteve presente na manifestação desta quarta, onde relatou ter visto os mesmos policiais que estavam na operação:

    O caso repercutiu nas redes sociais com algumas hashtags “JustiçaPorGabriel”,  “JustiçaPorJefferson”, “VidasNegrasImportam” e “VidasBrasileirasImportam”:

    Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia da Covid-19 desde agosto de 2020, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. Segundo informações da assessoria de imprensa do STF, serão realizadas audiências públicas em Brasília e no Rio de Janeiro, no primeiro trimestre de 2021, para a coleta de informações que contribuirá com o “plano de redução da letalidade policial”. O relator da ADPF 635, Ministro Edson Fachin, informou que serão ouvidos representantes do governo do Estado do Rio de Janeiro, do Ministério da Justiça, das Defensorias Públicas, movimentos sociais, entre outros atores locais.

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