UniRio dificulta matrícula de cotistas negros, denunciam alunos

    Aluna negra da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro teve matrícula cancelada por falta de uma folha em branco nas documentações: “racismo institucional permeia as faculdades federais”

    “A UniRio entendeu que era mais importante ter uma vaga ociosa do que me ter estudando”, afirmou a aluna Amanda | Foto: Divulgação / UniRio

    Nesta semana a aluna do curso de teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) Amanda Silva Gomes, 26 anos, foi às redes sociais denunciar a cassação de sua matrícula por não acrescentar uma folha em branco da carteira de trabalho em seu processo de matrícula na faculdade, na qual entrou por cota racial e econômica. 

    A jovem negra é moradora de Realengo, bairro da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro, e passou no vestibular de 2020 em primeiro lugar. Segundo ela aos cotistas é “exigida uma montanha de documentos para fazer a matrícula”. 

    Ela conta no vídeo que a universidade não a orientou devidamente no processo de matrícula e por isso teve de recorrer a um auxílio jurídico no início de 2020, quando conseguiu estudar com a autorização de um juiz. “Por falta de orientação, por falta de informação e por causa de uma folha em branco, a minha matrícula foi indeferida. Eu precisei contratar uma advogada e tirar dinheiro de onde não tinha para conseguir estudar em uma faculdade que é pública”. 

    Amanda diz que as dificuldades colocadas pela faculdade são um reflexo do racismo institucional. | Imagem: Reprodução / Instagram

    Meses depois do início do curso, a faculdade recorreu e cancelou a matrícula da estudante com um ofício de evasão. Apesar disso, Amanda afirma que cursou todas as matérias do primeiro semestre do curso no ensino à distância. “Fiz todas as matérias disponibilizadas pela UniRio em formato EaD, sem computador, sem notebook, apenas com meu celular, e fiquei com 10 em todas. Quando eu fui retornar para a faculdade, um dia antes sou comunicada que a faculdade recorreu à decisão do primeiro juiz que me dava o direito de estudar, cancelando a minha matrícula”.

    Em entrevista à Ponte, Amanda disse que as dificuldades colocadas pela faculdade são um reflexo do racismo institucional. “Acredito que o sistema de cotas é muito burocrático, o que torna pouco inclusivo. No meu caso especificamente houve também falta de orientação, informação. Além do racismo institucional que permeia as faculdades federais”. 

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    Em uma publicação no Instagram a jovem alegou que outros alunos também tiveram dificuldades para realizarem as matrículas. “A UniRio entendeu que era mais importante ter uma vaga ociosa do que me ter estudando. Estou tornando esse caso público porque não é uma exclusividade minha, outros cotistas também tiveram dificuldades, tiveram problemas na Justiça com sua matrícula da UniRio. Estou tornando esse caso público porque eu quero voltar a estudar”.

    Assim como Amanda, a estudante de teatro Isabel Corrêa Paulo, 21 anos, teve problemas na hora de sua matrícula. “Ingressei na UniRio como cotista e, mesmo não concordando com a definição ‘parda’, me autodeclarei dessa maneira, porque sei que minha leitura como preta talvez não fosse aceita. Participei do processo de heteroidentificação [método de identificação que utiliza a avaliação de um terceiro para a identificação étnico-racial de um indivíduo] presencialmente, passei pela banca avaliadora, que é composta também por pessoas brancas e para a minha surpresa tive minha matrícula indeferida, dizendo que eu não atendia aos fenótipos da minha autodeclaração, me colocando no lugar de fraudadora e que por isso estava inapta a preencher a vaga”.

    Em março de 2020 Isabel entrou com recurso na universidade com o auxílio de um advogado. “Entrei com o recurso, escrevi duas páginas que redigi com auxílio de um advogado justificando o porquê de eu não concordar com aquela decisão. Fui obrigada inclusive a anexar foto com meus pais, o que para mim foi extremamente humilhante. Não precisei levar adiante para a Justiça porque aceitaram meu recurso, que muito provavelmente só foi deferido porque junto com todos os documentos que anexei, enviei também a declaração de aprovação da Universidade Federal Fluminense (UFF) onde eu estudava antes em que eu preenchia exatamente a mesma cota e tinha passado pelo mesmo processo de heteroidentificação”.

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    Isabel diz que o processo causou a ela uma série de transtornos. “Por jamais imaginar que teria minha matrícula indeferida, assim que saiu o resultado de aprovação eu já pedi demissão do meu trabalho, que não daria para conciliar o horário e também cancelei minha matrícula da UFF. Por conta disso, me senti sem perspectiva e tive problemas com ansiedade durante todo esse processo. O descaso continuou na falta de resposta sobre o recurso e no final das contas o resultado só foi sair um dia antes das aulas começarem”.

    Um terceiro estudante negro, que preferiu não se identificar com medo de represálias, disse que quando foi aprovado no vestibular em 2018 não conseguiu se matricular como cotista. “Quando chegou a minha vez de fazer a matrícula eu estava sem alguns dos documentos e iria entregar em outro dia, mas eles não permitiram que eu fizesse isso. Solicitei ao reitor e em um primeiro momento ele permitiu, mas logo depois não quis que eu me matriculasse pois eu estaria ‘roubando uma vaga’. Eles preferiram deixar a vaga ociosa e disseram que se eu entrasse na Justiça a vaga seria minha”.

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    Após o desgaste sofrido, o estudante preferiu prestar novamente o vestibular no ano seguinte, passando em primeiro lugar. “Desisti e fiz o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) novamente, passei em primeiro lugar em 2019. Na UniRio tudo difícil e burocrático para os cotistas, quando entramos na universidade demoramos um mês ou dois para conseguirmos a inscrição ativa na faculdade. Ficamos sem um numero de matricula por meses e por consequência ficamos sem bilhete único e sem o direito a alimentação. Para quem mora em favela é mais difícil, muitas vezes não tem o comprovante de endereço, não se tem essa facilidade para conseguir os documentos. Já é um processo difícil para conseguir uma vaga”.

    O Diretório Acadêmico Vilma Melo repudiou as denúncias contra Amanda e exigiu o retorno imediato da aluba às aulas e que a reitoria pare de judicializar os recursos de matrículas de alunos cotistas e passe a dar o amparo necessário para regularizar essas documentações.

    Procurada, a UniRio enviou à reportagem um nota divulgada em seu site, onde aponta que que “a candidata não apresentou toda a documentação de situação socioeconômica requerida, e por esse motivo obteve indeferimento de sua solicitação de matrícula”.

    O texto também diz que a Procuradoria Regional Federal, órgão externo à Universidade, apresentou recurso à instância superior questionando a liminar concedida em primeira instância. “Uma turma formada por três Desembargadores Federais analisou as informações prestadas e, por unanimidade, reconheceu a lisura do processo, determinando o cancelamento da decisão provisória anteriormente proferida”.

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    Por fim, a nota afirma que “a Universidade nunca judicializou qualquer questão acerca do indeferimento de matrículas de graduação, limitando-se a, em caso de judicialização por parte de candidatos, apresentar suas contrarrazões quando devidamente intimada a fazê-lo”.

    Após a publicação da reportagem a UniRio respondeu que: “De posse da documentação apresentada, a comissão verifica se esta está condizente com a renda declarada. Caso haja alguma discrepância, a matrícula é indeferida e a documentação necessária para o esclarecimento é indicada em e-mail enviado ao candidato. É indicado também que tal documentação deve ser apresentada durante o período de recurso. Durante o período de recurso, o aluno deve entregar, em envelope lacrado, seu pleito e documentação complementar. O envelope é enviado à comissão, que analisará se a discrepância encontrada inicialmente foi sanada ou não. Caso seja sanada, a matrícula é deferida. Em caso contrário, permanece indeferida”. 

    Sobre o amparo a universidade disse que: “Os candidatos (não são alunos ainda) recebem por e-mail as Instruções para Matrícula, citadas anteriormente, além do site para consulta da íntegra do edital. Além disso, as dúvidas que venham a surgir são sanadas por meio de comunicação por e-mail e, alternativamente, via redes sociais”.

    Em relação a quantidade de cotistas a UniRio disse: “Temos 4.958 (43,4%) alunos cotistas, destes, 2.521 (22,1%) são negros, num universo de 11.416 alunos presenciais. Excluo aqui os alunos de educação a distância, uma vez que tal modalidade não participa do SiSU”.

    ATUALIZAÇÃO: Reportagem atualizada às 12h27 do dia 15/3 para incluir as respostas da UniRio.

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